quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O aumento salarial dos parlamentares: uma bandalheira que não pode ser esquecida

   No dia 15 de novembro/10, numa votação relâmpago, a toque de caixa e no apagar das luzes, "os parlamentares se deram um aumento salarial real que nenhum brasileiro teve" (Revista "Veja", 22 de dezembro de 2010, capa). São os crimes de "colarinho branco", são os crimes das "pessoas de bem", das pessoas que - com sorriso cínico, mas sem perder a fineza e a elegância - debocham do povo.
            O aumento salarial dos parlamentares foi uma bandalheira, uma farra, um escândalo, um verdadeiro festival de irresponsabilidades. Que vergonha!
            Embora a celeridade não seja uma das virtudes do Parlamento brasileiro, no caso em questão, foram necessários apenas vinte minutos na Câmara e menos de cinco minutos no Senado para que os deputados e senadores aprovassem um aumento de 61,83% nos próprios salários, de 136,93% no salário do presidente da República e de 148,63% no salário do vice-presidente e dos ministros de Estado. Que eficiência, quando se trata dos próprios interesses!  O novo salário entrará em vigor em primeiro de fevereiro de 2011 e todos receberão 26.723,13 reais por mês, que corresponde ao teto salarial do funcionalismo público.
            Para a votação do aumento salarial, 279 deputados federais aprovaram o regime de urgência, abrindo caminho para que o decreto legislativo fosse aprovado, primeiro, pelos deputados federais e, depois, pelos senadores. Apenas 35 deputados federais se posicionaram contra o regime de urgência. Pergunto: não são 513 os deputados federais? Em pleno dia de trabalho, 199 não se encontravam na Câmara e não votaram. Será que estavam de licença-prêmio?
            No Senado só três senadores se manifestaram contra o aumento salarial. Marina Silva (PV-AC), dizendo que seria mais correto um ajuste equivalente à inflação, como defende o PSOL, José Nery (PSOL-PA), apresentando o voto contrário do partido e Álvaro Dias (PSDB-PR), afirmando que o aumento só seria plausível se viesse com um corte das verbas de gabinete.
            Devido a aprovação do regime de urgência, "nas duas Casas, a votação foi simbólica, ou seja do tipo em que o congressista não declara seu voto. Na simbólica, quem preside a sessão anuncia: 'Aqueles que aprovam, permaneçam como estão'. Para, em seguida, emendar: 'Aprovado'" (www.congressoemlfoco.uol.com.br). Por se tratar de decreto legislativo, o texto não precisa ser enviado à sanção presidencial, expediente que permite eventuais vetos. Diga-se de passagem, o presidente-operário Lula se manifestou a favor do aumento. Será que esqueceu o sofrimento dos seus ex-companheiros?
            No site citado acima, podemos encontrar a lista completa, por Estado, dos deputados federais que apoiaram e dos que não apoiaram a votação do aumento salarial. No site www.noticias.uol.com.br, podemos encontrar essa mesma lista, por Partido. Só lembro os nomes dos deputados federais de Goiás que votaram a favor do aumento salarial: Carlos Alberto Leréia (PSDB), Luiz Bittencourt (PMDB), Marcelo Melo  (PMDB), Pedro Wilson (PT), Raquel Teixeira (PSDB) e Roberto Balestra (PP).
Não podemos esquecer tamanho oportunismo político. Vamos divulgar, alto e bom som, o nome dos que praticaram, na calada da noite e sem nenhum escrúpulo, essa falcatrua, para que todos/as tomem conhecimento. Precisamos banir da vida pública os corruptos e os aproveitadores, que - no lugar de servir ao povo - se servem do povo para seus próprios interesses. Todos os que têm senso de justiça, devem estar profundamente indignados com tudo o que aconteceu e dispostos, como nunca, a lutar na defesa dos Direitos Humanos e da Ética.
            Tem mais: Com o aumento do salário do Legislativo e os benefícios indiretos (verbas de gabinete, verbas indenizatórias para custear despesas políticas, auxílio-moradia, cotas de passagens aéreas, cotas de telefone, celulares, correios), "cada um dos 594 congressistas representa custo médio de R$ 128 mil por mês aos cofres públicos" (Folha de S. Paulo, 17 de dezembro/10, p. A7). Nem falamos aqui do custo dos deputados estaduais e dos vereadores municipais, em consequência do efeito cascata, provocado pelo aumento do salário dos deputados federais. Trata-se realmente de um verdadeiro assalto, de um verdadeiro roubo legalizado e institucionalizado.
            Quem sabe, um dia, uma Constituinte Popular estabeleça que os Políticos (que já  têm sua profissão) devem ser voluntários e que os Parlamentares não podem legislar em causa própria? O sonho pode se tornar realidade. Não podemos perder a esperança de "uma outra política possível".
            No entanto, precisamos urgentemente avaliar o que pode ser feito agora, do ponto de vista legal e constitucional, para reverter essa situação de iniquidade. Com a palavra os nossos advogados “populares”, para que nos orientem sobre o que fazer e como fazer.
            Pergunto: Se todos/as os cidadãos/ãs são iguais perante a lei - como afirma a Constituição - por que o salário mínimo tem um aumento de 6%, enquanto o salário dos políticos tem um aumento de até 148,63%? Não é inconstitucional? Por que os parlamentares não cumprem o Decreto-Lei 2.162 de 1940, que criou o salário mínimo com a finalidade de suprir as necessidades básicas do trabalhador e de sua família? Conforme estudo divulgado pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócioeconômicos (Dieese), o salário mínimo deveria ser atualmente de R$ 2.047,58. Se os vencimentos dos políticos devem corresponder ao teto salarial do funcionalismo público, por que o salário mínimo não deve, pelo menos, corresponder à finalidade do Decreto-Lei que o criou? É só uma questão de opção política.
            Esse aumento do salário dos políticos "soa como um desatino e mostra o tamanho do abismo que separa a atual legislatura da sociedade, agindo, inclusive de costas para ela, a ponto de se premiar quando deveria expiar em público os próprios pecados" (Revista "Veja", 22 de dezembro de 2010, p. 76). O cientista político David Fleischer afirma: "Os parlamentares têm preocupação zero com a opinião pública. Tentaram fazer um negócio bem disfarçado, contemplando também o Poder Executivo" (Ib., p. 77).
            Segunda feira, dia 27 de dezembro/10, cerca de 100 estudantes universitários e secundaristas, indignados, ocuparam a rampa do Palácio do Planalto, protestando contra o aumento do salário dos parlamentares e reclamando da “ditadura parlamentar”. Diziam em coro: “Ô Dilma, que papelão, tem dinheiro para ministro, mas não tem para a educação” (cf. Diário da Manhã, 28/12/10. p. 13). Parabéns jovens! O Brasil  precisa muito de vocês.
            Termino com as palavras de Dom Manuel Edmilson, bispo emérito da Diocese de Limoeiro do Norte - CE, que num gesto profético - em discurso firme e coerente, proferido no Senado Federal – teve a coragem cívica de recusar a Comenda de Direitos Humanos dom Helder Câmara, conferida no dia 21 de dezembro/10. Dom Edmilson diz: "A condecoração é um atentado, uma afronta ao povo brasileiro, ao cidadão, à cidadã contribuintes para o bem de todos com o suor de seu rosto e a dignidade de seu trabalho. É seu direito exigir justiça e equidade em se tratando de honorários e de salários. Se é seu direito e eu aceitar, estou procedendo contra os Direitos Humanos. Perderia todo o sentido este momento histórico. O aumento a ser ajustado deveria guardar sempre a mesma proporção que o aumento do salário mínimo e da aposentadoria. Isto não acontece. O que acontece, repito, é um atentado contra os Direitos Humanos do nosso povo" (Discurso durante sessão no Senado, 21 de dezembro/10).
                          Diário da Manhã , Opinião Pública, Goiânia, 29/12/10, p. 18



Fr. Marcos Sassatelli, Frade Dominicano 
    Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Dom Fernando: pastor-profeta

Por ter tido a felicidade de ser amigo e colaborador direto de Dom Fernando Gomes dos Santos como Coordenador da Pastoral e Vigário Geral da Arquidiocese de Goiânia, não posso deixar passar o ano do seu centenário de nascimento sem dar publicamente o meu testemunho.
Por ocasião de sua morte, ou, melhor dizendo, do dia em que, há 25 anos, "completou sua Páscoa", falei que Dom Fernando foi "um Pastor-Profeta dos nossos tempos", "fiel à Palavra de Deus e fiel aos apelos da realidade" (cf. Revista da Arquidiocese. Goiânia, ano 28, n. 6/7, junho/julho 1985, p. 393 e 426-427).
Dom Fernando tinha uma personalidade forte, mas um coração muito grande. Era uma figura de extraordinária profundidade humana; sabia compreender, com amor de pai e ternura de mãe, as fraquezas do ser humano; ele foi sempre um irmão solidário de todos/as, especialmente dos mais pobres.
No depoimento, que ele deu à Revista Eclesiástica Brasileira (REB), poucos meses antes de sua Páscoa definitiva, depois de falar da ação pastoral do Secretariado da Pastoral Arquidiocesana (SPAR), diz que ela "se complementa naturalmente no gabinete do arcebispo, sempre aberto a ouvir a todos, a qualquer hora. Nesses encontros - em sua maior parte com pessoas pobres, marginalizadas e oprimidas - tem acontecido que, além das palavras de estímulo, recebam, alguma vez, o sacramento da Penitência, sem que ninguém saiba ou perceba. Transforma-se, assim, em lugar privilegiado de reconciliação e de perdão" (REB, março de 1985).
Quando, por causa de sua tomada de posição clara, destemida e firme em defesa do povo, o acusavam de ser contra o governo, dom Fernando  dizia: “eu sou a favor do povo; quando o governo estiver a favor do  povo, eu estarei com ele, quando estiver contra o povo, eu estarei contra ele". 
Dom Fernando nunca foi um homem bajulador e oportunista, como é bastante comum  acontecer, mesmo em ambientes de igreja. Por ser sempre um homem reto, coerente e franco, ele não conseguia entender e não tolerava, de forma alguma, a traição, que na realidade é um comportamento covarde e mesquinho. Percebendo que uma pessoa, em quem ele tinha confiado, o traia, sofria calado, mas perdia completamente a confiança. Quando, porém, confiava em alguém, sua confiança era total e irrestrita
Como tive a graça de conviver com Dom Fernando e ser, pela afinidade que tínhamos, pessoa da sua confiança, quando alguém o procurava para tratar de um assunto que podia ser resolvido no Secretariado da Pastoral Arquidiocesana (Spar), o ouvi diversas vezes dizer: "isso é com Frei Marcos". Dom Fernando - sobretudo depois do Concílio Vaticano II - era um homem que acreditava na "Igreja dos Pobres" e vivia a comunhão e participação, numa Igreja toda ela ministerial. Por isso, partilhava com os Padres, as Religiosas e os Agentes pastorais leigos/as a responsabilidade do pastoreio.
Embora tenha consciência que não é mérito meu, mas dom de Deus, honra-me muito o reconhecimento de Dom Fernando a respeito do  SPAR, no depoimento já citado: "O Spar tem sido o grande centro de convergência e de irradiação de tudo o que se passa na Arquidiocese no campo pastoral. Dotado de sede própria, que integra o conjunto Catedral-Cúria Metropolitana-Spar, no centro da cidade, constitui o ponto mais dinâmico da Arquidiocese. Hoje o Spar conta com o coordenador da Pastoral, Frei Marcos Sassatelli, que é também vigário geral, e com uma extraordinária equipe de sacerdotes, religiosas e leigos competentes, de rara dedicação e eficiência. No Spar, funcionam oito Comissões que dinamizam as atividades fundamentais, referentes às prioridades do Plano Pastoral, elaborado em Assembleia Arquidiocesana e constantemente estudado nas reuniões e encontros. O Spar produz, também, grande número de boletins e impressos, que são divulgados nas paróquias da Arquidiocese, principalmente nas comunidades da periferia, e que são encomendados por outras Igrejas particulares do Brasil afora. Grande é também o número de cursos ministrados nas comunidades da capital e do interior" (REB, ib.).
Como todo ser humano, Dom Fernando tinha também suas limitações e seus defeitos, mas era um homem de uma só palavra, um homem íntegro, um homem "sem violência e sem medo". Com inabalável fidelidade, amava muito a Mãe Igreja, mesmo, às vezes, sofrendo profunda e silenciosamente por causa das incompreensões de irmãos da própria Igreja.
No seu Testamento, dom Fernando confessa: "Não obstante as minhas deficiências, fraquezas, e falhas, sempre me consagrei com tudo o que sou e com tudo o de que dispus, à Santa Igreja e ao sagrado ministério" (O Testamento de Dom Fernando. Revista da Arquidiocese. Goiânia, ano 28, n. 6/7, junho/julho 1985, p. 356).
Dom Fernando, como "pastor-profeta dos nossos tempos" e como "defensor e advogado do Povo" (capa da REB de março de 1985), era também implacável na denúncia e na luta contra as injustiças sociais. Era respeitado e temido pelos poderosos, sobretudo nos tempos difíceis da ditadura militar.
Dom Fernando, como homem "fiel à Palavra de Deus e fiel aos apelos da realidade", viveu intensamente os ensinamentos do Concílio Vaticano II.
"Como Cristo, por sua Encarnação ligou-se às condições sociais e culturais dos seres humanos com quem conviveu; assim também deve a Igreja inserir-se nas sociedades, para que a todas possa oferecer o mistério da salvação e a vida trazida por Deus” (Concílio Vaticano II. A atividade missionária da Igreja - AG, 10).
            "Para desempenhar sua missão, a Igreja, a todo momento, tem o dever de perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal modo que possa responder, de maneira adaptada a cada geração, às interrogações eternas sobre os significados da vida presente e futura e de suas relações mútuas. É necessário, por conseguinte, conhecer e entender o mundo no qual vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole frequentemente dramática" (Concílio Vaticano II, A Igreja no mundo de hoje - GS, 4).

            Que a memória do legado do primeiro arcebispo da Arquidiocese de Goiânia, Dom Fernando Gomes dos Santos, no centenário do seu nascimento e nos 25 anos de sua Páscoa definitiva, sirva-nos de estímulo para que sejamos, sempre mais, uma Igreja evangélica, uma Igreja pobre e uma Igreja comprometida com a Boa-Notícia do Reino de Deus no mundo de hoje.
                            Diário da Manhã, Opinião Pública, Goiânia, 23/12/10, p. 17



Fr. Marcos Sassatelli, Frade Dominicano 
    Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Crimes do Poder Público contra a vida do povo

Considerar a política econômica como algo que não pertence à área dos direitos humanos, é um crime do Poder Público contra a vida do povo.
"Enquanto Lula tenta escapulir de rótulos ideológicos, a presidenta Dilma assume claramente uma opção pela esquerda. Essa opção tende a se revelar não na política econômica, mas na área de direitos humanos" (Eliane Cantanhêde. Presidenta eleita assume opção clara de esquerda na área de direitos humanos. Folha de S. Paulo, 06/12/10, p. A4). Como se pode separar a política econômica da área de direitos humanos ou, em outras palavras, da ética?
Se o presidente Lula "tenta escapulir de rótulos ideológicos", quer dizer que apoia e defende a ideologia dominante. Aliás, a vitória eleitoral do governo de "esquerda" do Lula no Brasil (e tudo indica que o governo Dilma dará continuidade ao governo Lula), antes de significar "a ascensão do povo" ao poder do Estado, perpetua "sua subordinação" ao "jugo neoliberal".
Na verdade, como aconteceu também em outros países da América Latina, o partido dos "trabalhadores" ascendeu ao poder "para concluir o trabalho que a direita não teria condições (por falta de legitimidade) de acabar" (Cf. Alexander Maximilian Hilsenbech Filho. Governos de "esquerda" e movimentos sociais na América Latina: entre a cooptação e a construção de uma democracia autônoma. Revista Espaço Acadêmico, N. 62, julho 2006). Segundo alguns cientistas sociais, o governo Lula "consolidou" o capitalismo no Brasil.  
Por ser o ser humano um ser histórico, situado e datado, a ideologia é uma mediação necessária. Faz parte da nossa condição humana; não há como não ter ideologia. O importante é que a ideologia seja uma ferramenta a favor da vida ou uma ferramenta libertadora e humanizadora, e não uma ferramenta a favor da morte ou uma ferramenta opressora e desumanizadora.
A área dos direitos humanos integra a política econômica, que é a base material necessária para uma vida digna para todos/as. A defesa e a promoção dos direitos humanos deve acontecer não só nas relações pessoais ou interpessoais, mas também e sobretudo nas relações estruturais (sócioeconômico-político-ecológico-culturais). A política econômica do sistema capitalista neoliberal, que a nova presidenta quer manter e fortalecer, é uma violação estrutural, silenciosa e permanente, dos direitos humanos.
A situação da educação é um outro crime do Poder Público contra a vida do povo. "Sinceramente, não entendo por que mais pessoas não se sentem revoltadas diante das condições da educação pública neste país. Somos uma nação em que cerca de 50% das crianças brasileiras da 5a série são semianalfabetas. Dos 3,5 milhões de alunos que ingressam no ensino médio (antigo colegial), apenas 1,8 milhão se formam. (…) Estas estatísticas refletem décadas - ou melhor, centenas de anos - de descaso com a educação" (Jair Ribeiro. Revolução na educação. Folha de S. Paulo, 05/12/10, p. A3).
A avaliação internacional, chamada Pisa e coordenada pela OCDM (Organização de Nações Desenvolvidas), analisou a educação em 65 países e constatou: "Os estudantes brasileiros com 15 anos melhoraram em leitura, ciências e matemática nos últimos 9 anos. Seguem, porém, entre os mais atrasados do mundo. (…) No ranking, o Brasil está na 53a posição, com nota semelhante a Colômbia e Trinidad e Tabago" (Folha de S. Paulo, 08/12/10, p. C1).
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) sobre a Evolução do Analfabetismo e do Analfabetismo funcional (quem tem menos de quatro anos de estudo) no Brasil - Período 2004-2009, realizada anualmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), constatou: "No Brasil, a taxa de analfabetismo entre pessoas com mais de 15 anos recuou 1,8% no período e hoje é de 9,7% - ou cerca 14 milhões de habitantes que não sabem ler nem escrever" (O Popular, 10/12/10, p. 8).
Segundo os dados, divulgados no dia nove de dezembro/10 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e que se referem a pessoas com mais de 15 anos de idade, "mesmo com uma queda de 2,1 pontos porcentuais nos índices de analfabetismo em cinco anos, Goiás ainda tinha 384 mil pessoas analfabetas e outras quase 500 mil analfabetas funcionais em 2009" (Ib.).
O aumento (que está na ordem do dia) de 133,96% do salário do presidente da República, de 148,63% do salário do vice-presidente da República e dos ministros de Estado, e de 61,83% do salário dos deputados federais e senadores que, por efeito cascata, provoca automaticamente o aumento do salário dos deputados estaduais, é também um crime do Poder Público contra a vida do povo. O projeto federal de aumento salarial foi aprovado na quarta feira, dia 15 de dezembro/10.
Com isso, o salário do presidente e vice-presidente da República, dos ministros de Estado, e dos deputados federais e senadores passa a ser de R$ 26.723,13. O salário dos parlamentares goianos, que antes era de R$ 12.384,06, passa a ser de R$ 20.042,25. Além do salário, os deputados goianos têm o direito legal (mas não o direito ético) a R$ 21 mil mensais de verba indenizatória para gastos com viagens, telefonia, escritório, combustíveis, etc. Que vergonha! É realmente um pontapé na cara do povo, que ganha um salário de fome.
Poderíamos enumerar uma lista enorme de crimes do Poder Público contra a vida do povo, como, por exemplo, o caos na saúde pública e muitos outros, que o espaço limitado de um artigo não permite.
Os três casos citados são suficientes para mostrar que os crimes do Poder Público contra a vida do povo são uma consequência lógica de um “sistema econômico iníquo” (DA - Documento de Aparecida, 385) ou de um “sistema nefasto”, porque considera “o lucro como o motivo essencial do progresso econômico, a concorrência como lei suprema da economia, a propriedade privada dos bens de produção como um direito absoluto, sem limites nem obrigações correspondentes” (PP - Populorum Progressio, 26).
Em outras palavras, os crimes do Poder Público contra a vida do povo são uma consequência lógica de "estruturas de morte" (DA 112) e de "estruturas de pecado" (DA 92, 532) ou "situações de pecado" (DA 95).
Diante desse sistema de competição, de dominação e de exploração, diante de tanta injustiça e iniquidade, o que fazer? Os Movimentos sociais populares e todos aqueles/as que acreditam que é possível mudar esta realidade precisam se unir, não se deixar cooptar pelo sistema vigente e lutar rumo à vitória de maneira organizada, para que um "mundo novo" aconteça, um mundo de cooperação, de igualdade, de solidariedade e de fraternidade. 
Para os cristãos católicos, o Advento é um tempo forte de alegria e de esperança ativa, que - unidos a todas as forças sociais que buscam a transformação e a mudança - os leva a ser sujeitos de uma história diferente, de "uma outra história possível".

"O senhor é fiel para sempre, faz justiça aos que são oprimidos; ele dá alimento aos famintos, é o Senhor quem liberta os cativos" (Salmo 146).   

                Diário da Manhã , Opinião Pública, Goiânia, 16/12/10, p. 17 




Fr. Marcos Sassatelli, Frade Dominicano 
    Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção -  SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra


quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Torneiras fechadas e torneiras abertas


O ministro da Fazenda Guido Mantega afirmou que o novo governo terá "torneiras fechadas" e repetiu várias vezes que é necessário "frear gastos públicos". Acrescentou que "todos os ministérios terão de dar a sua contribuição". Declarou também que negociar um salário mínimo superior aos R$ 540 previstos no projeto de Orçamento-2011, é "uma ameaça à consolidação fiscal". Disse ainda "ser fundamental que não sejam aprovados projetos em tramitação no Congresso, como a PEC 300, que eleva salários na área de segurança". Além de "cortar despesas de custeio e aumentar a poupança pública", o ministro "se comprometeu a economizar o suficiente para reduzir a dívida pública de 41% para 30% do PIB em 2014" (Folha de S. Paulo, 25/11/10, p. A6).
Como se pode perceber pela fala do ministro, está claro que - embora mudando algumas pessoas - a política econômica continua a mesma. Ela está voltada para os interesses do grande capital. "Mudança, mas sem virada de mesa. Executivos do mercado de capitais viram na indicação da equipe econômica da presidenta eleita, Dilma Rousseff, um esforço de renovação, porém, conservando o status quo longamente testado e aprovado" (Ib., p. A8).
O povo empobrecido, oprimido e excluído continuará recebendo do poder público "esmolinhas" para que não se revolte e para que continue alimentando o "populismo" dos nossos governantes, tão necessário para fins político eleitoreiros.
As torneiras, senhor ministro, deveriam estar fechadas para o desvio de verbas, para o superfaturamento nas licitações públicas, para os mensalões, para a barganha política na distribuição de cargos, para a prática da corrupção e para todos os gastos desnecessários, como, por exemplo, a compra do Aerodilma.
Quem leu a notícia "governo negocia a compra de novo avião presidencial" e tem um mínimo de senso de justiça deve ter ficado profundamente indignado. É um acinte que subestima a inteligência do nosso povo. Não dá para entender como um governo que pretende ser "dos trabalhadores" (mas que, de fato, traiu "os trabalhadores") se preocupe tanto com posturas ostensivas e luxuosas. Parece que os nossos governantes estão se lambuzando com o poder às custas do povo sofrido. Lembrem-se que não é o cargo que dá valor e dignidade a pessoa humana, mas é a pessoa humana que dá valor e dignidade ao cargo.
O Aerodilma "custa até cinco vezes os US$ 56,7 milhões (…) pagos em 2005 pelo Aerolula, um Eirbus-A319 em versão executiva". Que vergonha! As próprias autoridades estão escondendo a cara. "Justificar tal despesa seria complicado, como foi em 2005, e seria fonte certa de desgaste para Dilma (…) Assim, juntou-se a fome com a vontade de comer, e a nova compra está sendo camuflada por uma necessidade real" (Folha de S. Paulo, 29/11/10, p. A12). Vejam só a preocupação do nosso governo. É realmente ridículo. É realmente assustador ver tanta irresponsabilidade.  
As torneiras, senhor ministro, deveriam estar abertas para implementar políticas públicas que criem condições permanentes de vida digna para o nosso povo (isso não se faz com "esmolinhas"); que defendam e promovam os direitos humanos; que implantem um sistema de educação pública de qualidade, um sistema de saúde com atendimento respeitoso e competente, um verdadeiro sistema de segurança (sem violência policial), um  transporte coletivo eficiente; enfim, políticas públicas voltadas para a geração de empregos com salário justo para todos, principalmente para os jovens, tirando-os do mundo da violência e das drogas (não com salário mínimo de R$ 540, que é uma afronta aos trabalhadores/as). Isso sim, significa "virar a mesa" e pôr em prática uma política econômica diferente, uma política econômica humana e a serviço do bem comum.
Infelizmente, no sistema capitalista neoliberal, as relações econômicas, internacionais e nacionais, são estruturalmente criminosas e assassinas. Matam os pobres paulatinamente. Basta lembrar que, em 2009, o governo gastou 36% do orçamento da União (380 bilhões de reais) para pagar os juros da dívida pública, enquanto gastou 4,8% para a saúde e 2,8% para a educação. Trata-se de uma verdadeira sangria, que torna os ricos sempre mais ricos à custa dos pobres sempre mais pobres.
Por que o governo, dito "popular" e "dos trabalhadores" (não "dos capitalistas") não promove uma auditoria a respeito da dívida pública, interna e externa, como seus membros sempre defenderam antes de chegar ao poder? A própria Constituição Federal de 1988, a respeito da dívida externa, diz que o governo devia fazer a auditoria, no prazo de um ano, a partir da data de sua promulgação. Não o fez. Por que?
 Se o governo promovesse a auditoria da dívida pública, descobriria quem fez a dívida, como o dinheiro foi usado, quem se beneficiou (não foi certamente o povo)  e, talvez, descobriria que, na realidade, a dívida já foi paga muitas vezes e que o credor é o próprio povo. Isso poderia justificar, legal e moralmente, o cancelamento e o não pagamento da dívida pública e o PIB poderia ser usado integralmente para implementar políticas públicas em benefício do povo.
Mas, mesmo admitindo a hipótese que, depois da auditoria, sobrasse algumas dívidas (o que é muito improvável), o governo teria a obrigação moral de pagar a dívida só depois de resolver os problemas sociais básicos do nosso povo e depois que todos tivessem uma vida humana digna. Isso justificaria a moratória.
Graças a Deus, ainda tem muita gente que acredita num "outro mundo possível" e num "outro Brasil possível". E é por isso que continua lutando para que o "sonho" se torne realidade. "Vem, Senhor, não tardes mais, és o anseio das nações! Vem curar os nossos 'ais' e expulsar as opressões! (Canto litúrgico do Advento). 






      
                                    Diário da Manhã , Opinião Pública, Goiânia, 02/12/10, p. 10


 
Fr. Marcos Sassatelli, Frade Dominicano 
    Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra