quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Jônathas Silva esqueceu um "Detalhe": o despejo da Ocupação "Sonho Real"

 

No artigo “Não à politicagem” (O Popular, 03/02/21, p. 3) o professor Jônathas Silva fez um relato de sua atuação no cargo de Secretário de Segurança Pública do Estado de Goiás, no período 2002/2006. Afirma: “Nunca fiz politicagem. Ao contrário, optei por fazer uma autêntica política de segurança pública, como previa o programa do governo, que foi legitimado no processo eleitoral pela maioria absoluta dos votos dos eleitores, que elegeram o governador (Marconi Perillo), no contexto de uma proposta social democrática”.

O artigo é uma auto-exaltação. O professor apresenta-se como um modelo a ser seguido. “Não fiz política com segurança pública, mas uma política de segurança pública”.

Infelizmente, Jônathas Silva esqueceu um “detalhe”: o despejo da Ocupação “Sonho Real” do Parque Oeste Industrial, que foi um verdadeiro massacre.  No dia 16 do mês corrente completam-se 16 anos desse lamentável acontecimento: a pior barbárie praticada em toda a história de Goiânia e uma das piores do Brasil. Cada ano fazemos a memória da data - lembrada também pelo Livro-Agenda Latino-americana Mundial - para que nunca mais se repita uma iniquidade humana como essa.

O despejo da Ocupação “Sonho Real” do Parque Oeste Industrial, foi uma operação militar de guerra do governo Marconi Perillo - comandada pelo então Secretário de Segurança Pública Jônathas Silva - chamada, fria e cinicamente, “Operação triunfo”. Como se não bastasse, para que o requinte da brutalidade e da crueldade humana fosse ainda maior, ela foi precedida da “Operação inquietação”: 10 dias - de 0 a 6 horas - assustando os moradores e provocando traumas nas crianças com as chamadas bombas de efeito moral (que de “moral” não tem nada).

Em resumo, a história da “Operação Triunfo” consistiu no seguinte: em uma hora e quarenta e cinco minutos, cerca de 14 mil pessoas (reparem: 14 mil pessoas) foram despejadas de suas moradias de maneira violenta, truculenta, sem nenhum respeito pela dignidade da pessoa humana e jogadas na rua. A Operação produziu duas vítimas fatais (Pedro e Vagner), 16 feridos à bala, tornando-se um desses paraplégico (Marcelo Henrique) e 800 pessoas detidas (suspeita-se com razão que o número dos mortos e feridos seja bem maior).

Essa história, professor Jônathas, o senhor não conta no seu artigo. Trata-se de um crime cruel, perverso e totalmente desumano cometido pelo senhor - então Secretário de Segurança Pública - e por Marconi Perillo - então governador do Estado de Goiás, com a conivência de Iris Rezende - então prefeito de Goiânia. Infelizmente, o crime - que clama por justiça - continua impune até hoje. Lembre-se, professor Jônathas, que a (In)Justiça humana falha, mas a Justiça de Deus nunca falha.

O governo estadual da época foi totalmente subserviente e submisso aos interesses especulativos dos “coronéis urbanos” (leia: donos das grandes imobiliárias). Só os adoradores do deus dinheiro - que consideram a propriedade privada um direito absoluto - são capazes de uma barbárie como essa.

No caso da Ocupação “Sonho Real” do Parque Oeste Industrial, mesmo do ponto de vista meramente jurídico - sem precisar recorrer à questão da justiça e da ética - existiam todos os argumentos legais e constitucionais para a desapropriação da área. Inclusive, o governador Marconi Perillo - poucos dias antes do despejo - afirmou em entrevista coletiva que estava decidida a desapropriação. Lembro que o povo fez até festa.

Poucos dias depois, cedendo à pressão dos “coronéis urbanos” - que não queriam dar a vitória ao povo para não criar um precedente - o governador, covardemente e demostrando ser um homem sem palavra, voltou atrás e aconteceu o que todos nós sabemos.

Termino com as palavras do papa Francisco: “A Bíblia lembra-nos que Deus escuta o clamor do seu povo e também eu quero voltar a unir a minha voz à voz de vocês: terra, teto e trabalho (os três “T”) para todos os nossos irmãos e irmãs. Disse-o e repito: são direitos sagrados. Vale a pena, vale a pena lutar por eles. Que o clamor dos excluídos seja escutado na América Latina e em toda a terra” (2º Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Santa Cruz de la Sierra - Bolívia, julho de 2015).

Que a voz dos Movimentos Populares e do nosso irmão o papa Francisco seja também a nossa voz! 










Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

Goiânia, 16 de fevereiro de 2021




quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

CFE 2021: Unidade na diversidade

 

No dia 17 do mês corrente - quarta-feira de Cinzas - inicia a Quaresma, um tempo de preparação para a Páscoa. “Quaresma, na tradição cristã, é período de conversão e autorreflexão. São 40 dias dedicados à oração, ao jejum, à partilha do pão e à conversão pela revisão de nossas práticas e posturas diante da vida, do Planeta e das pessoas”.

É a prática da contrição, “resultado da graça de Deus, que nos permite o reconhecimento dos nossos pecados e o sincero arrependimento. Deus nos perdoa porque é amor misericordioso” (V Campanha da Fraternidade Ecumênica - CFE 2021. Texto-Base, p. 14)

Durante a Quaresma (embora continue depois o ano todo) realizamos a CFE 2021, promovida pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), que tem como tema “Fraternidade e diálogo: compromisso de amor” e como lema “Cristo é a nossa paz: do que era dividido fez uma unidade” (Ef 2,14a).

O objetivo geral da CFE 2021 é: “Convidar as Comunidades de fé e pessoas de boa vontade a pensarem, avaliarem e identificarem caminhos para superar as polarizações e violências através do diálogo amoroso, testemunhando a unidade na diversidade”.

Os objetivos específicos - para alcançar o objetivo geral - são: 

  • "Redescobrir a força e a beleza do diálogo como caminho de relações mais amorosas;
  • Denunciar as diferentes violências praticadas e legitimadas indevidamente em nome de Jesus";
  • Comprometer-nos com as causas que defendem a casa comum, denunciando a instrumentalização de fé de Jesus Cristo que legitima a exploração e a destruição socioambiental;
  • Contribuir para superar as desigualdades;
  • animar o engajamento em ações concretas de amor ao próximo;
  • Promover a conversão para a cultura do amor, como forma de superar a cultura do ódio;
  • Estimular o diálogo e a convivência fraterna como experiências humanas irrenunciáveis, em meio a crenças, ideologias e concepções, em um mundo cada vez mais plural;
  • compartilhar experiências concretas de diálogo e convívio fraterno" (Ib. p.11)
Falando de “unidade na diversidade”, nos referimos a todos aqueles/as que - embora diversos ou diferentes - estão comprometidos/as com o Projeto de Libertação e Vida (Projeto de um Mundo Novo), que à luz da fé, é o Reino de Deus na história do ser humano e do mundo. Não nos referimos aos que estão comprometidos/as com o Projeto de Opressão e Morte, que é o Antirreino de Deus. Esses são nossos inimigos e a única maneira de amá-los é ser contra o seu Projeto de Opressão e Morte.

Jesus pede ao Pai pelos seus discípulos “para que todos sejam um” (Jo 17, 21), mas não pede para que todos sejam um com Herodes e Pilatos. Aos discípulos, porém, que estavam “enciumados” por encontrarem pessoas que realizavam as mesmas obras deles sem serem do grupo, Jesus - com muita naturalidade - diz: “Quem não está contra nós, está a nosso favor” (Mc 9, 40).   

Como de costume, a CFE 2021 vivencia o Método (caminho) “ver, julgar, agir” (“analisar, interpretar, libertar”) e “celebrar”. Ele "nos permite articular, de modo sistemático, a perspectiva cristã de ver a realidade; a assunção de critérios que provêm da fé e da razão (ou seja, da razão iluminada pela fé) para seu discernimento e valorização com sentido crítico; e, em consequência, a projeção do agir como discípulos/as missionários/as de Jesus Cristo" (Documento de Aparecida - DA 19).

A CFE 2021 convida as Comunidades de fé a viverem a espiritualidade quaresmal, realizando o caminho de Emaús em quatro paradas:


  • Primeira: VER - "conversar sobre os acontecimentos mais recentes (fazendo, sobretudo, uma análise contextualizada e crítica da pandemia da Covid - 19) que marcam nossa história e observar se as alternativas e saídas que identificamos são opções coerentes com a Boa Nova do Evangelho".
  • Segunda: JUGAR - "a partir da inspiração bíblica, lançar luzes sobre o contexto histórico vivido por nós".
  • Terceira: AGIR - "as partir de experiências de boas práticas realizadas pelo CONIC, indicar exemplos que podem contribuir para derrubar os muros das divisões".
  • Quarta: CELEBRAR - "afirmar que a diversidade presente na Criação não é negativa, mas é a revelação da imensa e irrestrita amorosidade de Deus para com a humanidade" (Ib. p. 16-17. Leia e medite o Texto-Base).
Termino com as palavras da Oração da CFE - 2021: “Deus da vida, da justiça e do amor, nós Te bendizemos pelo dom da fraternidade e por concederes a graça de vivermos a comunhão na diversidade” (Ib, p. 82).





 

Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

Goiânia, 10 de fevereiro de 2021


quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Ser Igreja ministerial

    

“O Vaticano II faz-nos passar de uma Igreja-autoridade para uma Igreja serva, servidora, ministerial” (Dom Aloísio Lorscheider).

 A passagem que o Concílio sonhou está acontecendo. A Igreja - sempre com avanços e recuos - já deu diversos passos nesse sentido, mas ainda tem um longo percurso a fazer para ser - no mundo de hoje - a Igreja que Jesus quis.

A proposta de vida de Jesus de Nazaré é revolucionária. É uma proposta de amor radical. A igualdade, a justiça (a partilha) e a fraternidade (a vida de irmãos e irmãs) são os pilares dessa proposta. Não podemos permitir que ela seja farisaicamente deturpada, amenizada e instrumentalizada para defender os interesses dos poderosos.

Do ponto de vista histórico, surpreende e impressiona ver com que facilidade a Igreja consegue se adaptar às exigências de sistemas sociais desumanos e anticristãos, convivendo com eles e dando seu apoio pela ação ou pela omissão.

Como exemplo, basta lembrar o caso da escravidão no Brasil do século 19. A Igreja aceita e legitima - na sociedade e em suas estruturas internas - a instituição da escravidão. “Acaba confiando praticamente a catequese do negro ao próprio senhor de escravos e este paradoxo marcará a posição da Igreja no Brasil perante o escravo. Sua pastoral vai se orientar mais para o senhor do que para o escravo” (CEHILA. História da Igreja no Brasil, tomo II/2, Vocês, Petrópolis, 1980, p. 264).

A Igreja prega a submissão como sendo a virtude do escravo e a benevolência, a virtude do senhor. Que aberração! É essa a “opção pelos pobres”? A Igreja trai - total e radicalmente - o Evangelho de Jesus de Nazaré. Sem dúvidas, trata-se de uma das faces mais perversas e hipócritas do pecado estrutural da Igreja: uma verdadeira “situação de pecado” eclesial e, sobretudo, eclesiástica.

“Na história, não faltaram exemplos de padres (os profetas da época) que se insurgiram contra a legitimidade mesma da escravidão, mas estes foram implacavelmente afastados pelo poder religioso e temporal” (Ib. p. 265).

 A Igreja na qual acreditamos - e que por ela lutamos - é a Igreja-comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus: Igreja pobre, para os pobres, com os pobres e dos pobres. Essa Igreja é - toda ela - servidora, ministerial.

Tradicionalmente, “na reflexão teológica e pastoral, têm-se distinguido (sem serem exclusivos) os seguintes grupos de ministérios: a) ministérios simplesmente ‘reconhecidos’ (às vezes, impropriamente, chamados ministérios ‘de fato’), quando ligados a um serviço significativo para a comunidade, mas considerado não tão permanente, podendo vir a desaparecer, quando variarem as circunstâncias; b) ministérios ‘confiados’, quando conferidos ao seu portador por algum gesto litúrgico simples ou alguma forma canônica; c) ministérios ‘instituídos’ (leitores, acólitos), quando a função é conferida pela Igreja através de um rito litúrgico chamado ‘instituição’; d) ministérios ‘ordenados’ (também chamados apostólicos ou pastorais), quando o carisma é, ao mesmo tempo, reconhecido e conferido ao seu portador através de um sacramento específico, o sacramento da Ordem (diáconos, presbíteros ou padres, bispos), que visa a constituir os ministros da unidade da Igreja na fé e na caridade, de modo que a Igreja se mantenha na tradição dos Apóstolos e, através deles, fiel a Jesus,  ao seu Evangelho e à sua missão. O ministério ordenado, numa eclesiologia de totalidade e numa Igreja toda ministerial, não detém o monopólio (reparem: não detém o monopólio!) da ministerialidade da Igreja. Não é, pode-se dizer, a ‘síntese dos ministérios’, mas o ‘ministério da síntese’” (CNBB. Missão e Ministérios dos Cristãos Leigos e Leigas - 62, 1999, n. 87).

O ministério ordenado é o da coordenação (presidência) da Comunidade, na animação da vida fraterna (de irmãos e irmãs), no discernimento dos sinais dos tempos e no cumprimento de sua missão no mundo.

Para responder humana e cristãmente aos desafios da realidade, os ministérios poderão ser reformulados e - muitos deles - mudados, criando novos ministérios. Esperamos que, no chamado e no exercício de todos os ministérios, venham a ser reconhecidos - o quanto antes - direitos iguais aos homens e às mulheres, como aconteceu recentemente com os ministérios de leitores e acólitos.

Por fim, os ministérios - embora diferentes e de maior ou menor responsabilidade - têm o mesmo valor e a mesma importância. O que confere “qualidade” aos ministérios é o amor, a profundidade do amor. Meditemos o texto do Lava-pés: Jo 13,1-17.


Papa Francisco na Quinta-Feira Santa no cárcere “Regina Coeli” (2018)



Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

Goiânia, 01 de janeiro de 2021