sábado, 25 de fevereiro de 2017

Fraternidade: biomas brasileiros e defesa da vida


Cultivar e guardar a criação (Gênesis 2,15)

Há 12 anos, em 16 de fevereiro de 2005, cerca de 14 mil pessoas foram brutalmente despejadas da Ocupação “Sonho Real”, no Parque Oeste Industrial, em Goiânia, através das Operações Criminosas - cínica e maldosamente chamadas - “Inquietação” e “Triunfo”.
Apresentando a Campanha da Fraternidade 2017, não posso deixar de fazer - mais uma vez - a memória desse fato, que considero o maior pecado contra a fraternidade de toda a história de Goiânia. É difícil acreditar que seres humanos - em nome do deus dinheiro (ganância financeira e especulação imobiliária) - possam chegar a praticar tamanha barbárie e com tanta crueldade!
Infelizmente, as autoridades responsáveis pelas Operações “Inquietação” e “Triunfo” - verdadeiras Operações de guerra nazistas - continuam impunes até hoje. Elas não perdem por esperar! A Justiça de Deus tarda, mas não falha! Que aguardem!
A Campanha da Fraternidade deste ano tem como tema “Fraternidade: biomas brasileiros e defesa da vida” e como lema “Cultivar e guardar a criação” (Gênesis 2,15).
O objetivo geral é: “Cuidar da criação, de modo especial dos biomas brasileiros, dons de Deus, e promover relações fraternas com a vida e a cultura dos povos, à luz do Evangelho”.
Os objetivos específicos são:
  1. Aprofundar o conhecimento de cada bioma, de suas belezas, de seus significados e importância para a vida no planeta, particularmente para o povo brasileiro.
  2. Conhecer melhor e nos comprometer com as populações originárias, reconhecer seus direitos, sua pertença ao povo brasileiro, respeitando sua história, suas culturas, seus territórios e seu modo específico de viver.
  3. Reforçar o compromisso com a biodiversidade, os solos, as águas, nossas paisagens e o clima variado e rico que abrange o chamado território brasileiro.
  4. Compreender o impacto das grandes concentrações populacionais sobre o bioma em que se insere.
  5. Manter a articulação com outras igrejas, organizações da sociedade civil, centros de pesquisa e todas as pessoas de boa vontade que querem a preservação das riquezas naturais e o bem-estar do povo brasileiro.
  6. Comprometer as autoridades públicas para assumir a responsabilidade sobre o meio ambiente e a defesa desses povos.
  7. Contribuir para a construção de um novo paradigma econômico ecológico que atenda às necessidades de todas as pessoas e famílias, respeitando a natureza.
  8. Compreender o desafio da conversão ecológica a que nos chama o nosso Papa Francisco na carta encíclica Laudato Si’ e sua relação com o espírito quaresmal” (Texto-Base, 10).
Um bioma, é "um conjunto de vida (vegetal e animal) definida pelo agrupamento de tipos de vegetação contíguos e identificáveis em escala regional, com condições geoclimáticas similares e história compartilhada de mudanças, resultando em uma diversidade biológica própria" (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Mapa de Biomas e Vegetação, 2004). Em outras palavras, um bioma é uma grande área de vida formada por um conjunto de ecossistemas com características semelhantes.
No Brasil temos seis biomas: a Mata Atlântica, a Amazônia, o Cerrado, o Pantanal, a Caatinga e o Pampa. Nesses biomas vivem pessoas e povos, que são o resultado da miscigenação brasileira.
O Papa Francisco propõe uma ecologia integral, “entrelaçando todas as dimensões do ser humano com a natureza. Para ele, cada criatura tem sua mensagem, que precisa ser respeitada e entendida. Mas todas elas estão interligadas. Toda a Laudato Si’ é um hino de espanto maravilhado diante da natureza criada que nos fala de Deus, que é um dom de Deus, da qual nós seres humanos somos parte integrante, mas também seus zeladores e cultivadores”. Francisco nos coloca também “diante dos desafios colossais enfrentados pela humanidade, que está em uma verdadeira encruzilhada, em uma mudança de época”.
As Igrejas particulares, Comunidades Eclesiais de Base, Pastorais Sociais, Semanas Sociais Brasileiras, Fóruns das Pastorais Sociais, o Grito dos Excluídos, muitos se aproximaram do nosso povo para defender seus direitos e para promover a convivência harmônica com o meio ambiente em todo o Brasil” (Texto-Base, 8 e 9)
Os cristãos e cristãs e todas as pessoas de boa vontade precisam ser uma voz profética que - com consciência crítica - chama a atenção para os desafios e problemas da questão ecológica, aponta suas causas e, sobretudo, indica caminhos para sua superação.
A Campanha da Fraternidade 2017 nos ajuda a entender mais profundamente o sentido da Quaresma, que é um tempo forte de mudança de vida e de preparação para a Páscoa: passagem para a Vida Nova em Cristo, vida de amor verdadeiro, baseado na gratuidade e na busca de radicalidade. Sem esse amor verdadeiro não há Fraternidade (ou Irmandade). Meditemos e Oremos!
Oração da CF 2017:
Deus, nosso Pai e Senhor, nós vos louvamos e bendizemos, por vossa infinita bondade. Criastes o universo com sabedoria e o entregastes em nossas frágeis mãos para que dele cuidemos com carinho e amor. Ajudai-nos a ser responsáveis e zelosos pela Casa Comum. Cresça em nosso imenso Brasil o desejo e o empenho de cuidar mais e mais da vida das pessoas e da beleza e riqueza da criação, alimentando o sonho do novo céu e da nova terra que prometestes. Amém!

(Leiam o Texto-Base da Campanha da Fraternidade 2017. Edições CNBB).



Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 22 de fevereiro de 2017 

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Discurso do Papa Francisco no 3º EMMP 5. A relação entre povo e democracia (2ª parte)


Na 2ª parte do artigo continuo destacando o quinto e último ponto marcante do Discurso do Papa Francisco aos participantes do 3º Encontro Mundial dos Movimentos Populares (3º EMMP): A relação entre povo e democracia.
O Papa diz que - na relação entre Movimentos Populares e política - “o segundo risco é o de se deixar corromper”. Com muito realismo, ele afirma: “Assim como a política não é uma questão de ‘políticos’, também a corrupção não é um vício exclusivo da política. Há corrupção na política, há corrupção nas empresas, há corrupção nos meios de comunicação, há corrupção nas igrejas e há corrupção também nas organizações sociais e nos movimentos populares”.
E ainda: “É justo dizer que há uma corrupção radicada em alguns âmbitos da vida económica, em particular na atividade financeira, e que faz menos notícia do que a corrupção diretamente relacionada com o âmbito político e social. É justo dizer que muitas vezes se utilizam os casos de corrupção com más intenções. Mas também é justo esclarecer que todos os que escolheram uma vida de serviço têm uma obrigação ulterior que se acrescenta à honestidade com a qual qualquer pessoa deve agir na vida. A medida é muito alta: é preciso ter a vocação para servir (reparem: vocação para servir!) com um forte sentido de austeridade e humildade”.
Conclui afirmando: “Isto é válido para os políticos, mas também para os dirigentes sociais e para nós pastores (reparem mais uma vez: para nós pastores!). Disse ‘austeridade’ e gostaria de esclarecer ao que me refiro com a palavra austeridade, porque pode ser uma palavra equívoca. Pretendo dizer austeridade moral, austeridade no modo de viver, austeridade na maneira como levo por diante a minha vida, a minha família. Austeridade moral e humana. Porque em âmbito científico, científico-econômico, se quiserem, ou das ciências do mercado, austeridade é sinônimo de adaptação... Não me refiro a isto, não estou falando disso”.
Francisco dá um conselho: “A qualquer pessoa que seja demasiado apegada às coisas materiais ou ao espelho, a quem ama o dinheiro, os banquetes exuberantes, as casas sumptuosas, roupas de marca, carros de luxo, aconselharia que compreenda o que está acontecendo em seu coração e que reze a Deus para que o liberte destes laços. Mas, parafraseando o ex-presidente latino-americano que está aqui, todo aquele que seja apegado a estas coisas, por favor, que não entre na política, não entre numa organização social ou num movimento popular, porque causaria muitos danos a si mesmo, ao próximo e sujaria a nobre causa que empreendeu. E que também não entre no seminário!”.
O Papa volta a falar do sentido e da importância da austeridade: “Diante da tentação da corrupção, não há remédio melhor do que a austeridade moral e pessoal. Praticar a austeridade é, ainda mais, pregar com o exemplo. Peço a vocês que não subestimem o valor do exemplo porque tem mais força do que mil palavras, mil panfletos, mil ‘gosto’, mil retweets, mil vídeos no youtube. O exemplo de uma vida austera ao serviço do próximo é o modo melhor para promover o bem comum e o projeto-ponte dos ‘3 t’. Peço a vocês dirigentes que não se cansem de praticar esta austeridade moral, pessoal e peço a todos que exijam dos dirigentes esta austeridade, que - de resto - os fará sentir-se muito felizes”.
Sempre com muita fraternidade e ternura, Francisco faz um caloroso desabafo: “Queridos irmãos e irmãs, a corrupção, a soberba e o exibicionismo dos dirigentes aumentam o descrédito coletivo, a sensação de abandono e alimenta o mecanismo do medo que apoia este sistema iníquo (reparem outra vez: este sistema iniquo”).
O Papa conclui com um pedido bem concreto: “Gostaria de pedir a vocês que continuem a contrastar o medo com uma vida de serviço, solidariedade e humildade a favor dos povos e sobretudo dos que sofrem. Poderão errar muitas vezes, todos erramos, mas se perseverarmos neste caminho, cedo ou tarde, veremos os frutos. O amor cura tudo”!
Por fim, Francisco refere-se ao documento “A Alegria do amor”, “sobre o amor nas famílias, mas também naquela outra família que é o bairro, a comunidade, o povo, a humanidade”. A pedido de um participante, distribui - com sua benção - uma parte do quarto capítulo, onde “se encontram alguns ‘conselhos úteis’ para praticar o mandamento mais importante de Jesus”.
O Papa lembra que na “A alegria do Amor” cita o saudoso líder afro-americano, Martin Luther King, “que sabia escolher sempre o amor fraterno até no meio das piores preocupações e humilhações”. Quero recordá-lo hoje com vocês: “Quando - diz Luther King - você se eleva ao nível do amor, da sua grande beleza e poder, a única coisa que você procura derrotar são os sistemas malignos. Você ama as pessoas que caíram na armadilha daquele sistema, mas você procura derrotar aquele sistema (...). Ódio por ódio só intensifica a existência do ódio e do mal no universo. Se eu firo você e você me fere, e restituo a você a pancada e você me restitui a pancada, e assim por diante, é evidente que se continua sem fim. Simplesmente nunca acaba. Em alguma parte, deve haver alguém que tem um pouco de bom senso, e aquela é a pessoa forte. A pessoa forte é aquela que é capaz de cortar a cadeia do ódio, a cadeia do mal” (Sermão na Igreja Batista de Dexter Avenue, Montgomery, Alabama, 17 de novembro de 1957, n. 118)”. E sublinha: “disse isto em 1957”.
Francisco termina dizendo: “Agradeço novamente o trabalho de vocês, a presença de vocês. Desejo pedir a Deus nosso Pai que acompanhe vocês e lhes abençoe, que encha vocês do seu amor e lhes defenda no caminho, dando a vocês em abundância a força que nos mantém em pé e nos dá a coragem para cortar a cadeia do ódio: aquela força é a esperança. Peço, por favor, a vocês que rezem por mim, e aos que não podem rezar - sabiam-no - pensem bem de mim e me mandem uma boa onda. Obrigado!”.

Quanta profundidade humana e cristã nas palavras do Papa! Elas fortalecem a nossa fé e renovam a nossa esperança em um outro mundo possível. Meditemos!









Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 15 de fevereiro de 2017

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Discurso do Papa Francisco no 3º EMMP 5. A relação entre povo e democracia (1ª parte)



Neste artigo - sempre sobre o tema “A falência e o resgate” - destaco (em duas partes) o quinto e último ponto marcante do Discurso do Papa Francisco aos participantes do 3º Encontro Mundial dos Movimentos Populares (3º EMMP): A relação entre povo e democracia.
Referindo-se à solidariedade dos Movimentos Populares para com os migrantes e refugiados, Francisco continua a compartilhar suas reflexões dizendo: “Dar o exemplo e reclamar é um modo de fazer política, e isto leva-me ao segundo tema que vocês debateram no seu Encontro: a relação entre povo e democracia. Uma relação que deveria ser natural e fluida, mas que corre o perigo de se ofuscar, até se tornar irreconhecível”.
Diz ainda: “O fosso entre os povos e as nossas atuais formas de democracia alarga-se cada vez mais, como consequência do enorme poder dos grupos econômicos e mediáticos, que parecem dominá-las”.
Aos participantes do 3º EMMP, o Papa declara: “Sei que os Movimentos Populares não são partidos políticos, e permitam-me dizer a vocês que, em grande parte, é nisto que se encontra a sua riqueza, porque expressam uma forma diferente, dinâmica e vital de participação social na vida pública. Mas não tenham medo de entrar nos grandes debates, na Política com letra maiúscula, e volto a citar Paulo VI: ‘A política é uma maneira exigente - mas não é a única - de viver o compromisso cristão a serviço do próximo’ (Carta Apostólica Octogesima Adveniens, 14 de maio de 1971, n. 46). Ou então esta frase, que repito muitas vezes e sempre me confundo, não sei se é de Paulo VI ou de Pio XII: ‘A política é uma das formas mais altas da caridade, do amor’”.
Na relação entre os Movimentos Populares e a política Francisco alerta para dois riscos: “o de ser absorvido pelo sistema e o de se deixar corromper”. Primeiro, “não ser absorvido, porque alguns dizem: a cooperativa, o refeitório, a horta agroecológica, as microempresas, o projeto dos planos assistenciais… até aqui tudo bem. Enquanto vocês se mantêm no âmbito das ‘políticas sociais’, enquanto não põem em questão a política econômica ou a Política com ‘p’ maiúsculo, são tolerados. Aquela ideia das políticas sociais concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres e muito menos inserida num projeto que reúna os povos, às vezes se parece com uma espécie de carro mascarado para conter os descartes do sistema. Quando vocês, da sua afeição ao território, da sua realidade diária, do bairro, do local, da organização do trabalho comunitário, das relações de pessoa a pessoa, ousam pôr em questão as ‘macrorrelações’, quando levantam a voz, quando gritam, quando pretendem indicar ao poder uma organização mais integral, então deixam de ser tolerados, porque colocam em risco o sistema, se metendo no terreno das grandes decisões, que alguns pretendem monopolizar mantendo-as nas mãos de pequenas castas”.
Assim - diz o Papa - “a democracia atrofia-se, torna-se um nominalismo, uma formalidade, perde representatividade, vai-se desencarnando porque deixa fora o povo (reparem: deixa fora o povo!) na sua luta diária pela dignidade, na construção do seu destino”.
Francisco lembra aos participantes do 3º EMMP: “Vocês, organizações dos excluídos e tantas organizações de outros setores da sociedade, são chamados a revitalizar e a refundar as democracias (reparem mais uma vez: revitalizar e refundar as democracias!), que atravessam uma verdadeira crise. Não caiam na tentação do sistema que os reduz a agentes secundários ou, pior, a meros administradores da miséria existente. Nestes tempos de paralisia, desorientação e propostas destruidoras, a participação como protagonistas dos povos que procuram o bem comum pode vencer, com a ajuda de Deus, os falsos profetas que exploram o medo e o desespero, que vendem fórmulas mágicas de ódio e crueldade, ou de um bem-estar egoísta e uma segurança ilusória”.
Continua o Papa: “Sabemos que ‘enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais’ (Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho, 202). Por isso, disse e repito-o, ‘o futuro da humanidade não está unicamente nas mãos dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente nas mãos dos povos; na sua capacidade de se organizarem e também nas mãos de vocês que regem, com humildade e convicção, este processo de mudança’ (Discurso no 2º EMMP, Santa Cruz de la Sierra, 9 de julho de 2015). Também a Igreja pode e deve, sem pretender ter o monopólio da verdade, pronunciar-se e agir, especialmente face a ‘situações nas quais se tocam as chagas e os sofrimentos dramáticos e nas quais estão envolvidos os valores, a ética, as ciências sociais e a fé’ (Intervenção no Encontro de juízes e magistrados contra o tráfico de pessoas e o crime organizado, Vaticano, 3 de junho de 2016)”.
Vejam novamente a confiança que o Papa deposita nos Movimentos Populares e a maneira humilde e fraterna - sem a arrogância e o dogmatismo de quem se considera dono absoluto da verdade - com que ele fala da missão da Igreja hoje! Meditemos!




Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 08 de fevereiro de 2017

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Discurso do Papa Francisco no 3º EMMP 4. O drama dos migrantes e refugiados: como agir diante desta tragédia?


No tema “A falência e o resgate” destaco (neste artigo e nos dois próximos) o quarto e o quinto pontos marcantes do Discurso do Papa Francisco aos participantes do 3º Encontro Mundial dos Movimentos Populares (3º EMMP): O drama dos migrantes e refugiados: como agir diante desta tragédia? e A relação entre povo e democracia.
A respeito destes pontos, Francisco - logo de início - diz: “Queridos irmãos, quero compartilhar com vocês algumas reflexões sobre outros dois temas (ou subtemas) que, junto com os ‘3 t’ e a ecologia integral, foram centrais em seus debates dos últimos dias e são centrais neste tempo histórico”.
O Papa começa a compartilhar suas reflexões sobre o primeiro tema dizendo: “Sei que vocês dedicaram um dia ao drama dos migrantes, dos refugiados e dos deslocados. Como agir diante desta tragédia?”.
Com a coragem de um profeta, o Papa denuncia: “Trata-se de uma situação infamante (reparem: infamante!), que só posso descrever com uma palavra que me brotou espontaneamente em Lampedusa: vergonha! Ali, assim como em Lesbos, pude sentir de perto o sofrimento de numerosas famílias expulsas da sua terra por motivos ligados à economia ou por violências de todos os tipos, multidões exiladas - eu o disse diante das autoridades do mundo inteiro - por causa de um sistema socioeconômico injusto (reparem mais uma vez: por causa de um sistema socioeconômico injusto!) e das guerras que não foram procuradas nem criadas por aqueles que hoje padecem a dolorosa erradicação da sua pátria, mas ao contrário por muitos daqueles que se recusam a recebê-los”. Quanta clareza e quanta firmeza nas palavras do Papa!
Francisco continua dizendo: “Faço minhas as palavras do meu irmão, o Arcebispo Hieronymos da Grécia: ‘Quem fita os olhos das crianças que encontramos nos campos de refugiados é capaz de reconhecer imediatamente, na sua totalidade, a ‘falência’ da humanidade’” (Discurso no Campo de Refugiados de Moria, Lesbos, 16 de abril de 2016).
Com profunda dor no coração, faz um desabafo: “O que acontece com o mundo de hoje que, quando se verifica a falência de um banco, imediatamente aparecem quantias escandalosas para salvá-lo, mas quando ocorre esta falência da humanidade praticamente não aparece nem uma milésima parte para salvar aqueles irmãos que sofrem tanto? E assim o Mediterrâneo tornou-se um cemitério, e não apenas o Mediterrâneo… muitos cemitérios perto dos muros, muros manchados de sangue inocente”. Que desumanidade! Que iniquidade!
Em sua denúncia profética, o Papa afirma: “O medo endurece o coração e transforma-se em crueldade cega, que se recusa a ver o sangue, a dor, a face do próximo. Quem o disse foi o meu irmão, o Patriarca Bartolomeu: ‘Quem tem medo de vocês, não fitou vocês nos olhos. Quem tem medo de vocês não viu os rostos de vocês. Quem tem medo de vocês não viu os filhos de vocês. Esquece-se que a dignidade e a liberdade transcendem o medo e superam a divisão. Esquece-se que a migração não é um problema do Médio Oriente e da África setentrional, da Europa e da Grécia. Trata-se de um problema do mundo’ (Discurso no Campo de Refugiados de Moria, Lesbos, 16 de abril de 2016)”.
Francisco, com muito realismo, conclui: “É verdadeiramente um problema do mundo. Ninguém deveria ver-se obrigado a fugir da sua pátria. Mas o mal é duplo quando, diante destas circunstâncias terríveis, os migrantes se veem lançados nas garras dos traficantes de pessoas, para atravessar as fronteiras; e é triplo se, chegando à terra na qual julgavam encontrar um futuro melhor, são desprezados, explorados e até escravizados! Pode-se ver isto em qualquer recanto de centenas de cidades. Ou simplesmente não os deixam entrar”.
O Papa faz, pois, um fraterno e caloroso pedido aos Movimentos Populares: “Peço a vocês que façam tudo o que for possível; e que nunca se esqueçam que inclusive Jesus, Maria e José experimentaram a condição dramática dos refugiados. Peço a vocês que exerçam aquela solidariedade tão singular que existe entre quantos sofreram. Vocês sabem recuperar fábricas falidas, reciclar aquilo que outros abandonam, criar postos de trabalho, cultivar a terra, construir habitações, integrar bairros segregados e reclamar de modo incessante, como a viúva do Evangelho que pede justiça insistentemente (cf. Lc 18, 1-8)”.
Quanta confiança Francisco tem para com os Movimentos Populares! E nós, será que temos a mesma confiança? Ah, se os nossos Governos (Federal e Estaduais), ao invés de criminalizar os Movimentos Populares, seguissem o exemplo do Papa!
Enfim, Francisco, que nunca perde a esperança, diz: “Talvez com o exemplo e a insistência de vocês, alguns Estados e Organizações internacionais abram os olhos e adotem medidas adequadas para acolher e integrar plenamente todos aqueles que, por um motivo ou por outro, procuram refúgio longe de casa. E também para enfrentar as profundas causas pelas quais milhares de homens, mulheres e crianças são expulsos cada dia da sua terra natal”.
Lutemos para que os Estados e outras Organizações internacionais adotem realmente “medidas adequadas para acolher e integrar” todos os migrantes e “para enfrentar as profundas causas” deste drama humano, que é hoje uma das faces mais cruéis do “pecado do mundo”! Não sejamos indiferentes! Precisamos agir! É urgente!




Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 01 de fevereiro de 2017