sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Medellín em gotas: 14ª- Violência institucionalizada


No documento “Paz” - depois de apresentar a “situação de antipaz”, em que vive a América Latina (e Caribe), e a utopia da “concepção cristã da paz” - os participantes da Conferência abordam “o problema da violência na América Latina” (e Caribe), destacando “a violência institucionalizada”.
“A violência - dizem os bispos - constitui um dos problemas mais graves da América Latina (e Caribe). Não se pode abandonar aos impulsos da emoção e da paixão uma decisão da qual depende todo o futuro dos países do continente. Faltaríamos a um grave dever pastoral se não recordássemos em termos de consciência, neste dramático dilema, os critérios que derivam da doutrina cristã do amor evangélico”.
    Com muita clareza, declaram: “Ninguém se surpreenderá se reafirmarmos firmemente nossa fé na fecundidade da paz. Esse é nosso ideal cristão. ‘A violência não é nem cristã nem evangélica’ (Discurso de Paulo VI em Bogotá, na Celebração Eucarística do Dia do Desenvolvimento, 23/08/68). O cristão é pacífico e não se envergonha disso. Não é simplesmente pacifista, porque é capaz de lutar (cf. Mensagem de Paulo VI, de 01/01/1968). Mas prefere a paz à guerra. Sabe que ‘as mudanças bruscas e violentas das estruturas seriam falhas, ineficazes em si próprias, e certamente em desacordo com a dignidade do povo, a qual exige que as transformações necessárias se realizem de dentro, isto é, mediante uma conveniente tomada de consciência, uma adequada preparação e efetiva participação de todos. A ignorância e as condições de vida, por vezes infra-humanas, impedem hoje que seja assegurada’ (Discurso de Paulo VI em Bogotá, ib.)”.  
Os participantes da Conferência afirmam ainda: “Se o cristão acredita na fecundidade da paz como meio de chegar à justiça, acredita também que a justiça é uma condição imprescindível para a paz. Não deixa de ver que a América Latina se acha, em muitas partes, em face de uma situação de injustiça que pode ser chamada (reparem!) de violência institucionalizada, porque as atuais estruturas violam os direitos fundamentais, situação que exige transformações globais, audaciosas, urgentes e profundamente renovadoras. Não é de estranhar, portanto, que nasça na América Latina, ‘a tentação da violência’ (PP 30). Não se deve abusar da paciência de um povo que suporta durante anos uma condição que dificilmente aceitaria os que têm maior consciência dos direitos humanos”.
Como são atuais essas palavras! A “violência institucionalizada”, na América Latina e Caribe, continua tendo muitas faces. Cito só um exemplo. Na Saúde Pública, é comum deixar uma pessoa morrer por “falta de vaga” na UTI. Essa prática não é uma das faces mais cruéis da “violência institucionalizada”? Não é - de fato - a “pena de morte” legalizada?
A Igreja, hoje, assume sua missão profética, denunciando que os países da América Latina e Caribe se acham em face de “uma situação de injustiça”, que pode ser chamada de “violência institucionalizada”, porque “as atuais estruturas violam os direitos fundamentais”? Ela exige “transformações globais, audaciosas, urgentes e profundamente renovadoras”?
Os bispos fazem um apelo ao povo cristão: “Em face de uma situação que atenta tão gravemente contra a dignidade do ser humano e, portanto, contra a paz, dirigimo-nos, como pastores, a todos os membros do povo cristão, para que assumam sua grave responsabilidade na promoção da paz na América Latina”.
Dizem ainda: Os que na América Latina e Caribe “têm maior participação na riqueza, na cultura ou no poder”, não podem invocar a posição pacífica da Igreja “para opor-se às transformações profundas que são necessárias”.
E denunciam: “Se mantiverem zelosamente seus privilégios e sobretudo, se os defenderem com o emprego de meios violentos, tornam-se responsáveis, perante a história, por provocar as ‘revoluções nascidas do desespero’ (Discurso de Paulo VI, em Bogotá, ib.). De sua atitude depende, portanto, em grande parte, o pacífico porvir dos países da América Latina”.   
Lembram, pois: “São também responsáveis pela injustiça todos os que não agem em favor da justiça na medida dos meios de que dispõem, e ficam passivos por temerem os sacrifícios e riscos pessoais que implica toda ação audaciosa e realmente eficaz. A justiça e consequentemente a paz conquista-se (reparem novamente!) por uma ação dinâmica de conscientização e de organização dos setores populares, capaz de urgir os poderes públicos, muitas vezes, impotentes nos seus projetos sociais, sem o apoio popular”.
A Igreja, hoje, pensa e age dessa forma? Muitos cristãos e cristãs - inclusive padres e religiosos/as - não afirmam com todas as letras que a “ação dinâmica de conscientização e de organização dos setores populares” não tem nada a ver com o trabalho evangelizador da Igreja? Qual foi a prática de Jesus de Nazaré? De que lado Ele esteve?
Por fim - afirmam os participantes da Conferência - “nos dirigimos aos que, diante da gravidade da injustiça e da reação ilegítima às mudanças, colocam suas esperanças na violência. Reconhecemos que sua atitude, como diz Paulo VI, ‘tem frequentemente sua última motivação em nobres impulsos de justiça e solidariedade’ (Discurso de Paulo VI, em Bogotá, ib.). Não falamos, aqui, por puro verbalismo que não implica em nenhuma responsabilidade pessoal e afasta as ações pacíficas e fecundas imediatamente realizáveis... É verdade que (reparem mais uma vez!) a insurreição revolucionária pode ser legítima no caso ‘de tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa e danificasse perigosamente o bem comum do país’ (PP 31) - provenha esta tirania de uma pessoa ou de estruturas evidentemente injustas -, também é certo que a violência ou ‘revolução armada’ geralmente ‘acarreta novas injustiças, introduz novos desequilíbrios e provoca novas ruínas: não se pode combater um mal real ao preço de um mal maior’ (PP 31)”.
Então, concluem: “Se considerarmos o conjunto das circunstâncias de nossos países e levarmos em conta a preferência dos cristãos pela paz, a enorme dificuldade da guerra civil, sua lógica de violência, os males cruéis que provoca, o perigo de atrair a intervenção estrangeira (por mais ilegítima que seja), a dificuldade de construir um regime de justiça e de liberdade, através de um processo de violência, ansiamos que o dinamismo do povo conscientizado ponha-se a serviço da justiça e da paz. Fazemos nossas, finalmente, as palavras do Santo Padre, dirigidas aos sacerdotes e diáconos em Bogotá, quando referindo-se a todos os que sofrem, lhes disse: ‘Seremos capazes de compreender suas angústias e transformá-las não em ódio e violência, mas em energia forte e pacífica para obras construtivas’”.
E nós? “Ansiamos que o dinamismo do povo conscientizado ponha-se a serviço da justiça e da paz”? Pensemos!

Descrição: Descrição: Resultado de imagem para Fotos da II Conferência Episcopal da América Latina e Caribe em Medellín, 1968

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Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 29 de agosto de 2018

sábado, 25 de agosto de 2018

Medellín em gotas: 13ª- Concepção cristã da paz



Falando da “concepção cristã da paz”, a II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho de Medellín reconhece que “a realidade descrita constitui uma negação da paz (uma situação de antipaz), tal como a entende a tradição cristã”.
Os participantes da Conferência destacam três notas que caracterizam a concepção cristã da paz.
  1. “A paz é, antes de mais nada, obra da justiça (Gaudium et Spes - GS 73); ela supõe e exige a instauração de uma ordem justa (Pacem in Terris - PT 167; Populorum Progressio - PP 76) na qual todos os seres humanos possam realizar-se como seres humanos, onde sua dignidade seja respeitada, suas legítimas aspirações satisfeitas, seu acesso à verdade reconhecido e sua liberdade pessoal garantida. Uma ordem na qual os seres humanos não sejam objetos, senão agentes de sua própria história”.  
Que utopia bonita! É a Sociedade do Bem Viver e do Bem Conviver, que todos e todas nós buscamos; é o Reino de Deus que todos e todas nós queremos que aconteça na história do ser humano e do mundo!
Portanto - dizem os bispos - “onde existem injustiça, desigualdade entre os seres humanos e as nações, atenta-se contra a paz (Mensagem de Paulo VI, 01/01/1968)”. E ainda: “A paz, na América Latina (e Caribe), não é a simples ausência de violências e de derramamento de sangue. A opressão exercida pelos grupos de poder pode dar a impressão de que a paz e a ordem estão sendo mantidas, mas na realidade, não se trata senão do ‘germe contínuo e inevitável de rebeliões e guerras’” (Ib.).
A paz “não se consegue senão criando uma ordem nova que ‘comporte uma justiça mais perfeita entre os seres humanos’ (PP 76). Nesse sentido, o desenvolvimento integral do ser humano, a passagem de condições menos humanas para condições mais humanas é o nome novo da paz”.
  1. “A paz é, em segundo lugar, uma tarefa permanente (GS 78). A comunidade humana realiza-se no tempo e está sujeita a um movimento que implica constantemente em mudanças de estrutura, transformações de atitudes, conversão de corações”.
Reparem: em Medellín, os bispos colocam as “mudanças de estrutura”, em primeiro lugar. E a Igreja, hoje? Tem essa maneira de ver a realidade?
Os participantes da Conferência afirmam ainda: “A ‘tranquilidade da ordem’, segundo a definição agostiniana da paz, não é, portanto, passividade nem conformismo. Não é, tampouco, algo que se adquira de uma vez por todas, é o resultado de um contínuo esforço de adaptação às novas circunstâncias, às exigências e desafios de uma história em mutação. Uma paz estática e aparente pode ser alcançada com o emprego da força; uma paz autêntica implica luta, capacidade inventiva, conquista permanente (Cf. Paulo VI, ib.)”.
Declaram, pois: “A paz não se acha, há que construí-la. O cristão é um artesão da paz (Mt 5,9) . Esta tarefa, dada a situação descrita acima, reveste-se de um caráter especial, em nosso continente; por isso, o Povo de Deus na América Latina (e Caribe), seguido o exemplo de Cristo, deverá enfrentar com audácia e valentia o egoísmo, a injustiça pessoal e a coletiva”.
Reparem novamente: “com audácia e valentia”! A Igreja tem hoje “essa audácia e essa valentia”?
  1. “A paz é, finalmente, fruto do amor (GS 78), expressão de uma real fraternidade entre os seres humanos. Fraternidade trazida por Cristo, príncipe da paz, ao reconciliar todos os seres humanos com o Pai. A solidariedade humana não pode ser realizada senão em Cristo, que dá a paz que o mundo não pode dar (cf. Jo 14,27). O amor é a alma da justiça. O cristão que trabalha pela justiça social deve cultivar sempre a paz e o amor em seu coração”. Reparem, mais uma vez: “o amor é a alma da justiça”!
Enfim, os participantes da Conferência reconhecem: “A paz com Deus é o fundamento último da paz interior e da paz social... Por isso mesmo, onde a paz social não existe, onde há injustiças, desigualdades sociais, políticas, econômicas e culturais, rejeita-se o dom da paz do Senhor; mais ainda, rejeita-se o próprio Senhor (Mt 25,31-46)”.
Como são atuais as palavras de Medellín sobre a “concepção cristã da paz”! São palavras proféticas que precisam ser meditadas e, sobretudo, vividas! “A paz esteja com vocês!”. É a saudação de Jesus de Nazaré! Sejamos construtores da verdadeira paz!

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Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 22 de agosto de 2018

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Medellín em gotas: 12ª- Situação de antipaz (2ª parte)


No documento “Paz”, entre os diversos “rostos” da “situação de injustiça” como “situação de pecado”, a II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho de Medellín destaca - além das “tensões entre classes e colonialismo interno” (que vimos no artigo anterior) - as “tensões internacionais e neocolonialismo externo” e as “tensões entre os países da América Latina” (e Caribe).
A respeito das “tensões internacionais e neocolonialismo externo”, os participantes da Conferência afirmam: “Referimo-nos aqui, particularmente, às consequências que traz para nossos países sua dependência de um centro de poder econômico em torno do qual gravitam. Daí resulta que nossas nações, com frequência, não são donas de seus bens e de suas decisões econômicas”.
E ainda: “Como é óbvio, isto não deixa de ter suas incidências no plano político, dada a interdependência que existe entre os dois campos. Para nós interessa assinalar especialmente dois aspectos deste fenômeno”: o econômico e o político.
Em relação ao “aspecto econômico”, “analisamos somente aqueles fatores que mais influem no empobrecimento global e relativo de nossos países, constituindo uma fonte de tensões internas e externas”.
  1. “Distorção crescente do comércio internacional - Por causa da perda de preço relativa aos termos de troca, as matérias-primas valem cada vez menos em relação ao custo dos produtos manufaturados. Isso significa que os países produtores de matérias-primas - sobretudo em se tratando de monocultores – permanecem sempre pobres, enquanto os países industrializados enriquecem cada vez mais. Esta injustiça, denunciada claramente pela Populorum Progressio (56-61), anula o eventual efeito positivo das ajudas externas; constitui, além disso, uma ameaça permanente para a paz, porque nossos países percebem que ‘uma mão tira o que a outra dá’.
  2. Fuga de capitais econômicos e humanos - A busca de segurança e o critério do lucro individual leva muitos membros dos setores abastados de nossos países a inverter seus lucros no estrangeiro. A injustiça desse procedimento já foi denunciada categoricamente pela Populorum Progressio (24). A isso se acrescenta a fuga de técnicos e pessoal competente, fato tanto ou mais grave quanto a fuga de capitais, devido ao alto custo de sua formação e valor multiplicador de sua ação.
  3. Evasão de impostos e envio de lucros e dividendos - Diversas companhias estrangeiras que atuam em nossos meios (também algumas nacionais) costumam burlar com sutis subterfúgios os sistemas tributários vigentes. Constatamos também que por vezes enviam ao estrangeiro os lucros e os dividendos sem contribuir com adequadas reversões para o progressivo desenvolvimento de nossos países.
  4. Endividamento progressivo - Não é raro constatar que, no sistema de créditos internacionais, nem sempre são levadas em conta as verdadeiras necessidades e possibilidades de nossos países. Corremos assim o risco de afundarmo-nos em dívidas, cujo pagamento absorve a maior parte de nossos lucros (PP 54).
  5. Monopólios internacionais e o imperialismo internacional do dinheiro - Com isso queremos sublinhar que os principais culpados da dependência econômica de nossos países são aquelas forças que, inspiradas no lucro sem freios, conduzem (reparem!) à ditadura econômica e ao ‘imperialismo internacional do dinheiro’ condenado por Pio XI na Quadragésimo Ano e por Paulo VI na Populorum Progressio”.
Em relação ao “aspecto político”, “denunciamos aqui o imperialismo de qualquer matiz ideológico, que se exerce na América Latina, em forma indireta e até com intervenções diretas”.
Como essa análise continua atual! Trata-se realmente de uma “situação de injustiça” (injustiça estrutural ou institucionalizada) que é uma “situação de pecado” (pecado estrutural ou institucionalizado), internacional e mundial - hoje talvez até mais grave - que clama a Deus e exige de nós - cristãos e cristãs - um compromisso permanente com a mudança de estruturas.
Por que atualmente a Igreja latino americana e caribenha - em seus documentos - não retoma, com a mesma clareza e firmeza (e com as devidas adaptações), essas denúncias proféticas de Medellín? Não é um pecado de omissão?
A respeito das “tensões entre os países da América Latina” (e Caribe), os bispos afirmam: “Denunciamos um fenômeno especial de origem histórico-política, que perturba as relações cordiais entre alguns países e levanta obstáculos a uma colaboração realmente construtiva: sem dúvida, o processo de integração apresenta-se como uma necessidade imperiosa para a América Latina” (e Caribe).
Continuam dizendo: “Sem pretender ditar normas sobre os aspectos técnicos, realmente complexos desta necessidade, julgamos oportuno destacar seu caráter pluridimensional. A integração, com efeito, não é um processo exclusivamente econômico; apresenta-se antes com amplas dimensões, que abrangem o ser humano todo, considerado em sua totalidade: dimensão social, política, cultural, religiosa, racial etc.”.
Entre os fatores que favorecem essas tensões, salientam:
  1. “Um nacionalismo exacerbado em alguns países - Já a Populorum Progressio (62) denunciou o que de nocivo tem esta atitude, precisamente onde a fraqueza das economias das nações exige a cooperação comum de esforços, de conhecimentos, de meios financeiros etc.
  2. Armamentismo - Em determinados países, verifica-se uma corrida armamentista que supera o limite do razoável. Trata-se, muitas vezes, de uma necessidade fictícia que responde a interesses diversos e não a uma verdadeira necessidade da comunidade nacional. A propósito, uma frase da Populorum Progressio é particularmente válida: ‘Quando tantos povos têm fome, quando tantos lares sofrem miséria, quando tantos seres humanos vivem submersos na ignorância, toda corrida armamentista torna-se um escândalo intolerável’”.
Infelizmente, essa continua sendo a nossa realidade. Como pessoas humanas e, sobretudo, pessoas de fé (radicalmente humanas) - conscientes dessa situação de injustiça (situação de pecado) - continuemos a nossa luta por outra América Latina (e Caribe) e outro mundo possíveis.


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Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 15 de agosto de 2018

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Medellín em gotas: 11ª- Situação de antipaz (1ª parte)


No documento “Paz” - que é o segundo - a II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho de Medellín começa afirmando: “’Se o desenvolvimento é o novo nome da paz’, o subdesenvolvimento latino-americano, com características próprias nos diversos países, é uma injusta situação promotora de tensões que conspiram contra a paz”: uma situação de antipaz.
     Estas tensões são sistematizadas em três grandes grupos, “destacando em cada caso aquelas variáveis que, por exprimir uma situação de injustiça, constituem uma ameaça positiva contra a paz em nossos países”.
     Mesmo reconhecendo que, às vezes, “a miséria em nossos países pode ter causas naturais difíceis de superar”, os participantes da Conferência dizem: “Ao falar de uma situação de injustiça fazemos referência àquelas realidades que exprimem uma situação de pecado”. Reparem: uma “situação de injustiça” é uma “situação de pecado”.  
Hoje, a Igreja tem a coragem profética de denunciar que a situação de injustiça em que vivem os nossos povos da América Latina e do Caribe é uma situação de pecado? A Igreja não é, muitas vezes, omissa e conivente com os poderosos que fazem de tudo para manter essa situação de injustiça e legitimá-la, até em nome de Deus?
“Ao realizar esta análise - dizem os bispos - não ignoramos e nem deixamos de valorizar os esforços positivos que se realizam em diferentes níveis para a construção de uma sociedade mais justa. Não os incluímos aqui porque nossa intenção é a de chamar a atenção, precisamente, para aqueles aspectos que constituem uma ameaça ou negação da paz”.
Do ponto de vista filosófico-teológico, todos os seres humanos, homens e mulheres, são iguais: irmãos e irmãs. A sociedade de classes é uma sociedade estruturalmente desigual (desigualdade estrutural ou institucionalizada), uma sociedade estruturalmente violenta (violência estrutural ou institucionalizada), e uma sociedade estruturalmente injusta (injustiça estrutural ou institucionalizada).
Portanto, a desigualdade estrutural é a maior violência e a maior injustiça, que - sem negar a responsabilidade individual, situada e datada, de cada ser humano, homem ou mulher - gera outras violências e outras injustiças: pessoais, familiares e de grupos.
Mesmo não aprofundando o assunto, a Conferência - falando de “situação de injustiça” como “situação de pecado” - inspirou a Teologia da Libertação, que fez do “pecado social ou estrutural” um dos temas centrais da Ética Teológica.
No documento “Paz”, os bispos destacam os diversos “rostos” da “situação de injustiça” como “situação de pecado”: as “tensões entre classes e colonialismo interno”, as “tensões internacionais e neocolonialismo externo” e as “tensões entre os países da América Latina” (e Caribe). Na realidade, essas tensões são o reflexo da “situação de injustiça” como “situação de pecado” (injustiça estrutural como pecado estrutural) e revelam seu caráter iníquo e cruel.
A respeito das “tensões entre classes e colonialismo interno”, a Conferência enumera:
  1. “As diversas formas de marginalização: socioeconômicas, políticas, culturais, raciais, religiosas, tanto nas zonas urbanas como nas rurais.
  2. As desigualdades excessivas entre as classes sociais: especialmente, embora não de forma exclusiva, naqueles países que se caracterizam por um acentuado biclassismo: poucos têm muito (cultura, riqueza, poder, prestígio) enquanto muitos nada têm. (...)
  3. Frustrações crescentes: o fenômeno universal das expectativas crescentes assume na América Latina uma dimensão particularmente agressiva. A razão é óbvia: as desigualdades excessivas impedem sistematicamente a satisfação das legítimas aspirações dos setores postergados. Geram-se assim frustrações crescentes. Semelhante estado de espírito constata-se também nas classes médias que, diante de graves crises, entram em um processo de desintegração e proletarização.
  4. Formas de opressão de grupos e setores dominantes: sem excluir eventual vontade de opressão, elas se exprimem mais frequentemente numa forma de insensibilidade lamentável dos setores mais favorecidos perante a miséria dos setores marginalizados. (...) Não é raro comprovar que estes grupos ou setores, com exceção de algumas minorias lúcidas, qualificam de ação subversiva toda tentativa de modificar um sistema social que favorece a permanência de seus privilégios.
  5. Poder exercido injustamente por certos setores dominantes: como consequência normal das atitudes mencionadas, alguns membros dos setores dominantes recorrem, por vezes, ao uso da força para reprimir drasticamente toda tentativa de reação. Será muito fácil para eles encontrar aparentes justificativas ideológicas (anticomunismo) ou práticas (conservação da ‘ordem’) para coonestar este procedimento.
  6. Crescente tomada de consciência dos setores oprimidos: tudo o que ficou dito torna-se cada vez mais intolerável diante da progressiva tomada de consciência que os setores oprimidos fazem de sua situação. (...) A visão estática descrita nos parágrafos precedentes agrava-se quando se projeta para o futuro: a educação de base e a alfabetização aumentarão a tomada de consciência e a explosão demográfica multiplicará os problemas e tensões. Não se deve esquecer, tampouco, a existência de movimentos de todo tipo, interessados, cada vez mais, em aproveitar e exacerbar estas tensões. Portanto, se hoje a paz já é vista seriamente ameaçada, o agravamento automático dos problemas provocará consequências explosivas”.
Em grande parte - às vezes até agravada - é essa, ainda hoje, a nossa realidade, mas - graças a Deus - existem muitos sinais de esperança que fazem crescer a organização popular e fortalecem a luta por outra América Latina (e Caribe) e outro mundo possíveis.



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Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 08 de agosto de 2018