“O Vaticano II faz-nos passar:
- de uma Igreja-instituição ou de uma Igreja-sociedade perfeita para uma Igreja-comunidade, inserida no mundo, a serviço do Reino de Deus;
- de uma Igreja-poder para uma Igreja pobre, despojada, peregrina;
- de uma Igreja-autoridade para uma Igreja serva, servidora, ministerial;
- de uma Igreja piramidal para uma Igreja-povo;
- de uma Igreja pura e sem mancha para uma Igreja santa e pecadora, sempre necessitada de conversão, de reforma;
- de uma Igreja-cristandade para uma Igreja-missão, uma Igreja toda ela missionária” (Dom Aloísio Lorscheider. Fotografia da Igreja que o Concílio Vaticano II sonhou).
Depois do Concílio Vaticano II (1962-1965) e da Conferência de Medellín (1968) - que aplicou à nossa realidade os ensinamentos do Concílio - nasceu no Brasil, na América Latina e no Caribe a “Igreja da Caminhada”: uma Igreja que - mesmo nas contradições do processo histórico - viveu intensamente, com muita fé e entusiasmo, a “passagem” (páscoa) da qual fala Dom Aloísio.
Para a Igreja (lembro-me da experiência da Arquidiocese de Goiânia) foi um tempo de conversão e mudança de vida, pessoal e comunitária; foi um tempo de renovação e libertação; enfim, foi um tempo forte de graça de Deus. A Igreja redescobriu a “radicalidade evangélica”, que tinha sido ofuscada pela tentação do poder: autoritarismo, triunfalismo, patriarcalismo e clericalismo. Infelizmente, a Igreja-Instituição, no decorrer de sua história, deixou-se corromper e absorveu - sempre buscando uma legitimação farisaica - contribuições do Imperialismo, do Feudalismo e do Capitalismo, que não têm nada a ver com o Evangelho.
A “Igreja da Caminhada” é a Igreja da Libertação, é a Igreja das CEBs, “uma Igreja que nasce do Povo pelo Espírito de Deus” (1º Encontro Intereclesial das CEBs. Vitória - ES, 1975). Quando - nas nossas Comunidades Eclesiais de Base - apresentávamos um novo membro, com naturalidade e espontaneidade dizíamos: esse irmão ou irmã é da Caminhada! Com isso, estávamos revivendo - em nossa realidade - aquilo que as pessoas diziam dos primeiros seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré. Eles e elas eram conhecidos como “os/as do Caminho”.
Saulo (após a conversão: Paulo) - quando ainda era perseguidor da Igreja nascente - “apresentou-se ao Sumo Sacerdote e lhe pediu cartas de recomendação para as sinagogas de Damasco, a fim de levar presos para Jerusalém todos os homens e mulheres que encontravam-se seguindo o Caminho” (At 9,1-2). Dizia ainda: “Persegui mortalmente este Caminho, prendendo e lançando à prisão homens e mulheres, como o sumo sacerdote e todos os anciãos podem testemunhar” (At 22,4-5).
Depois de convertido, Paulo “foi à sinagoga e, durante três meses, falava com toda convicção, discutindo e procurando convencer os ouvintes sobre o Reino de Deus. Como alguns se obstinavam na incredulidade e falavam mal do Caminho diante da multidão, Paulo rompeu com eles, separou os discípulos e, diariamente, os ensinava na escola de um homem chamado Tiranos (At 19,8-9). Enquanto Paulo estava ainda na Ásia, “estourou um grave tumulto a respeito do Caminho” (At 19,23). Por fim, o Apóstolo confessa: “eu estou a serviço do Deus de nossos pais, segundo o Caminho” (At 24,14).
O próprio Jesus, ao falar de si mesmo, usou a expressão: ”Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6).
Infelizmente, de uns anos para cá - ao menos oficialmente - não se fala mais de “Igreja da Caminhada”. Parece que - em muitos cristãos e cristãs, inclusive padres e bispos - bateu a “saudade” da Igreja pré-conciliar e, com atitudes autoritárias e triunfalistas, vivem ostensivamente a “passagem” de volta.
Como exemplo, que mostra claramente essa tendência, cito o comportamento da Igreja no Brasil em relação a dois acontecimentos recentes: o “1º Encontro Latino-americano de Juventudes das CEBs” (7-8/03/20, em Guayaquil - Equador) e, logo em seguida, o “11º Encontro Continental das CEBs” (9-12/03/20, no mesmo lugar).
Pasmem! Silêncio total - ou quase total - dos meios de comunicação e redes sociais da Igreja no Brasil. Trata-se de dois acontecimentos marcantes para a vida da Igreja do pós-Concílio e do pós-Medellín: a “Igreja da Caminhada”. Os/as participantes dos Encontros fizeram uma experiência muito forte da presença do Espírito Santo. Pelo seu conteúdo e pela representatividade dos/das participantes, os Encontros deveriam ter sido noticiados, antes e depois de sua realização, em letras garrafais na primeira página de todos os jornais diocesanos, como - por exemplo - o “Encontro Semanal” da Arquidiocese de Goiânia, que não disse uma palavra. Ainda bem que o Espírito Santo sopra onde quer e não está sujeito à vontade de ninguém, nem de padres e bispos.
Esse comportamento nos mostra uma grande verdade: “É somente no trabalho de base e na convivência com o Povo (trabalhadores/as e pobres em geral) que Deus nos dá a graça de “experienciar” a sabedoria que vem do Espírito Santo. Infelizmente, muitas vezes, somos justamente nós, padres e bispos, que - com o nosso autoritarismo, triunfalismo, patriarcalismo e clericalismo - mais resistimos à ação do Espírito Santo.
A “Igreja da Caminhada” - mesmo sendo silenciada e vivendo nas catacumbas - está muito viva e muito presente; é a Igreja “desde a manjedoura” de Belém, é a Igreja de Jesus de Nazaré.
Tratarei dos dois Encontros, citados acima, nos próximos artigos.
Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br
Goiânia, 24 de março de 2020