domingo, 29 de março de 2020

Igreja da Caminhada


“O Vaticano II faz-nos passar:  
  • de uma Igreja-instituição ou de uma Igreja-sociedade perfeita para uma Igreja-comunidade, inserida no mundo, a serviço do Reino de Deus; 
  • de uma Igreja-poder para uma Igreja pobre, despojada, peregrina; 
  • de uma Igreja-autoridade para uma Igreja serva, servidora, ministerial; 
  • de uma Igreja piramidal para uma Igreja-povo
  • de uma Igreja pura e sem mancha para uma Igreja santa e pecadora, sempre necessitada de conversão, de reforma; 
  • de uma Igreja-cristandade para uma Igreja-missão, uma Igreja toda ela missionária” (Dom Aloísio Lorscheider. Fotografia da Igreja que o Concílio Vaticano II sonhou). 
Depois do Concílio Vaticano II (1962-1965) e da Conferência de Medellín (1968) - que aplicou à nossa realidade os ensinamentos do Concílio - nasceu no Brasil, na América Latina e no Caribe a “Igreja da Caminhada”: uma Igreja que - mesmo nas contradições do processo histórico - viveu intensamente, com muita fé e entusiasmo, a “passagem” (páscoa) da qual fala Dom Aloísio. 
Para a Igreja (lembro-me da experiência da Arquidiocese de Goiânia) foi um tempo de conversão e mudança de vida, pessoal e comunitária; foi um tempo de renovação e libertação; enfim, foi um tempo forte de graça de Deus. A Igreja redescobriu a “radicalidade evangélica”, que tinha sido ofuscada pela tentação do poder: autoritarismo, triunfalismo, patriarcalismo e clericalismo. Infelizmente, a Igreja-Instituição, no decorrer de sua história, deixou-se corromper e absorveu - sempre buscando uma legitimação farisaica - contribuições do Imperialismo, do Feudalismo e do Capitalismo, que não têm nada a ver com o Evangelho.
A “Igreja da Caminhada” é a Igreja da Libertação, é a Igreja das CEBs, “uma Igreja que nasce do Povo pelo Espírito de Deus” (1º Encontro Intereclesial das CEBs. Vitória - ES, 1975). Quando - nas nossas Comunidades Eclesiais de Base - apresentávamos um novo membro, com naturalidade e espontaneidade dizíamos: esse irmão ou irmã é da Caminhada! Com isso, estávamos revivendo - em nossa realidade - aquilo que as pessoas diziam dos primeiros seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré. Eles e elas eram conhecidos como “os/as do Caminho”. 
Saulo (após a conversão: Paulo) - quando ainda era perseguidor da Igreja nascente - “apresentou-se ao Sumo Sacerdote e lhe pediu cartas de recomendação para as sinagogas de Damasco, a fim de levar presos para Jerusalém todos os homens e mulheres que encontravam-se seguindo o Caminho” (At 9,1-2). Dizia ainda: “Persegui mortalmente este Caminho, prendendo e lançando à prisão homens e mulheres, como o sumo sacerdote e todos os anciãos podem testemunhar” (At 22,4-5).
Depois de convertido, Paulo “foi à sinagoga e, durante três meses, falava com toda convicção, discutindo e procurando convencer os ouvintes sobre o Reino de Deus. Como alguns se obstinavam na incredulidade e falavam mal do Caminho diante da multidão, Paulo rompeu com eles, separou os discípulos e, diariamente, os ensinava na escola de um homem chamado Tiranos (At 19,8-9). Enquanto Paulo estava ainda na Ásia, “estourou um grave tumulto a respeito do Caminho” (At 19,23). Por fim, o Apóstolo confessa: “eu estou a serviço do Deus de nossos pais, segundo o Caminho” (At 24,14).
O próprio Jesus, ao falar de si mesmo, usou a expressão: ”Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6).
Infelizmente, de uns anos para cá - ao menos oficialmente - não se fala mais de “Igreja da Caminhada”. Parece que - em muitos cristãos e cristãs, inclusive padres e bispos - bateu a “saudade” da Igreja pré-conciliar e, com atitudes autoritárias e triunfalistas, vivem ostensivamente a “passagem” de volta.
Como exemplo, que mostra claramente essa tendência, cito o comportamento da Igreja no Brasil em relação a dois acontecimentos recentes: o “1º Encontro Latino-americano de Juventudes das CEBs” (7-8/03/20, em Guayaquil - Equador) e, logo em seguida, o “11º Encontro Continental das CEBs” (9-12/03/20, no mesmo lugar). 
Pasmem! Silêncio total - ou quase total - dos meios de comunicação e redes sociais da Igreja no Brasil. Trata-se de dois acontecimentos marcantes para a vida da Igreja do pós-Concílio e do pós-Medellín: a “Igreja da Caminhada”. Os/as participantes dos Encontros fizeram uma experiência muito forte da presença do Espírito Santo. Pelo seu conteúdo e pela representatividade dos/das participantes, os Encontros deveriam ter sido noticiados, antes e depois de sua realização, em letras garrafais na primeira página de todos os jornais diocesanos, como - por exemplo - o “Encontro Semanal” da Arquidiocese de Goiânia, que não disse uma palavra. Ainda bem que o Espírito Santo sopra onde quer e não está sujeito à vontade de ninguém, nem de padres e bispos. 
Esse comportamento nos mostra uma grande verdade: “É somente no trabalho de base e na convivência com o Povo (trabalhadores/as e pobres em geral) que Deus nos dá a graça de “experienciar” a sabedoria que vem do Espírito Santo. Infelizmente, muitas vezes, somos justamente nós, padres e bispos, que - com o nosso autoritarismo, triunfalismo, patriarcalismo e clericalismo - mais resistimos à ação do Espírito Santo. 
    A “Igreja da Caminhada” - mesmo sendo silenciada e vivendo nas catacumbas - está muito viva e muito presente; é a Igreja “desde a manjedoura” de Belém, é a Igreja de Jesus de Nazaré.
    Tratarei dos dois Encontros, citados acima, nos próximos artigos. 





Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 24 de março de 2020

quinta-feira, 19 de março de 2020

Comunidades Eclesiais de Base missionárias


A Carta compromisso da XX Assembleia Eclesial do Regional Centro-Oeste (Goiás e Distrito Federal) começa dizendo: “Nós, Povo de Deus do Regional Centro-Oeste da CNBB, reunidos em Assembleia na cidade de Goiânia - GO, de 18 a 20 de outubro de 2019, com o tema: “Desafios da evangelização no mundo urbano”, realizamos uma profunda experiência de comunhão entre bispos, sacerdotes, diáconos, religiosos/as e leigos/as”. Reparem: “uma profunda experiência de comunhão”!
Continua afirmando: “Convocados a ser Igreja em estado permanente de missão, promovendo a unidade e respeitando cada uma das arqui/dioceses, e as atividades das pastorais, movimentos, organismos e serviços, realizamos uma retrospectiva e avaliação da caminhada dos últimos quatro anos”. 
Declara ainda: “Após o estudo das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (DGAE 2019-2023), e como resposta aos desafios da evangelização em uma realidade cada vez mais urbana, queremos ser cristãos em Comunidades Eclesiais Missionárias”. 
Como expressão deste compromisso, os participantes da Assembleia assumem as seguintes propostas de ação conjunta para o quadriênio 2019-2023: 
  1. “Motivar as pastorais, movimentos, organismos e serviços, para que integrem em sua vivência os elementos específicos das Comunidades Eclesiais Missionárias, com seus pilares: Palavra, Pão, Caridade e Ação Missionária.
  2. Propor itinerários e elaborar subsídios que favoreçam a animação bíblica nas Comunidades Eclesiais Missionárias, especialmente por meio da Lectio Divina.
  3. Formar Ministros Leigos da Palavra, com espírito missionário, conforme Documento 108 da CNBB - Ministério e Celebração da Palavra.
  4. Capacitar leigos no conhecimento da Doutrina Social da Igreja.
  5. Implantar e aperfeiçoar os Conselhos Missionários em todos os níveis:  paroquial, arqui/diocesano e regional”.
A Carta termina com uma oração: “Na busca de sermos discípulos/as missionários/as de Jesus Cristo e com a intercessão de Maria Santíssima, rogamos a Deus Pai, que os frutos desta Assembleia sejam uma grande benção para as Igrejas Particulares de Goiás e do Distrito Federal” (Uma voz no Centro-Oeste. Revista do Regional Centro-Oeste CNBB. Nº 11, 2019, p. 9)
Depois de apresentar o conteúdo dessa Carta Compromisso, sinto a necessidade de - fraternalmente - fazer algumas observações críticas.
Mesmo reconhecendo o valor que a Carta - por ser fruto de “uma profunda experiência de comunhão” entre os participantes da Assembleia - tem para as Igrejas do Centro-Oeste (Goiás e Distrito Federal), lamento que os ensinamentos da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho (Medellín,1968) - que é o Concílio Vaticano II para a América Latina e Caribe - tenham sido totalmente esquecidos. 
Na concepção de Igreja da Conferência - que continua plenamente atual - a Comunidade Eclesial de Base (CEB) é “o primeiro e fundamental núcleo eclesial” ou “a célula inicial da estrutura eclesial” (Medellín. XV, 10) e a Paróquia, “um conjunto pastoral unificador de Comunidades de Base” (Ib. 13). Reparem: de Comunidades de Base!
As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) são a Igreja “Pobre, para os Pobres, com os Pobres e dos Pobres”. São a Igreja de Jesus de Nazaré. Para as CEBs, a Opção pelos Pobres (oprimidos, excluídos e descartados da sociedade) é “essencial” (não “preferencial”) e “constitutiva” do ser Igreja. Ela não exclui ninguém. Todos e todas somos chamados e chamadas a fazer hoje - em nossa realidade - o caminho que Jesus fez na época d’Ele.
As CEBs - por estarem comprometidas com a realização do Reino de Deus (a Boa Notícia de Jesus de Nazaré) na história do ser humano e do mundo - são Comunidades que escutam os sinais dos tempos, ou seja, que:
  • se inserem na realidade do lado dos Pobres (inserção, encarnação);
  • interpretam “desde os Pobres” essa realidade à luz do Evangelho e vice-versa (discernimento, julgamento); 
  • transformam a realidade, fazendo acontecer - unidas a todas as Forças Sociais Populares que lutam pela mesma causa - um Mundo Novo, a Utopia do Reino de Deus (libertação, vida).
Por isso - à luz dessas observações críticas e sempre “como resposta aos desafios da evangelização em uma realidade cada vez mais urbana” - o compromisso das Igrejas do Centro-Oeste deveria ser assim reformulado e expresso: queremos ser cristãos e cristãs em Comunidades Eclesiais de Base missionárias (em saída). Uma Comunidade Eclesial só é “missionária” se for “de Base”.  
Que o Espírito Santo nos ilumine para que sejamos uma Igreja renovada e libertadora! Vida Nova para todos e para todas!
(Cf.:  Concílio Vaticano II. A atividade missionária da Igreja - AG, 10; Ib. A Igreja no mundo de hoje - GS, 4; Documento de Aparecida - DA, 33; A Alegria do Evangelho - EG, 20 e 49). 

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Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 17 de março de 2020

terça-feira, 10 de março de 2020

É ideológico!

Toda vez que pessoas, grupos e movimentos populares assumem, clara e publicamente, um posicionamento - prático e/ou teórico - contra a “ordem estabelecida” (ou, melhor, a “desordem estabelecida”), a acusação é sempre a mesma: é ideológico! Ora, por que ser contra a “ordem estabelecida” é ideológico e ser a favor não é ideológico? 
Na condição do ser humano - no mundo e com o mundo - não há nenhum posicionamento que não seja ideológico. O ser humano é um ser histórico, situado (no espaço) e datado (no tempo): um “vir-a-ser”, um ser em construção. Por isso, toda práxis humana (unidade dialética de prática e teoria) é ideológica, ou seja, expressa um posicionamento ideológico. A práxis humana como prática é a “ação” consciente (a ênfase é colocada na “ação” ou militância que - por ser consciente - integra também o conhecimento). A práxis humana como teoria é o “conhecimento” atuante (a ênfase é colocada no “conhecimento” que - por ser atuante ou militante - integra também a ação).
A ação e o conhecimento (comum, científico, filosófico e/ou teológico) do ser humano acontecem sempre dentro de um contexto histórico concreto, mesmo que sua influência - positiva ou negativa - possa ir além do contexto que os produziu. Isso é válido também quando o objeto da ação e do conhecimento são valores que - à luz da fé - consideramos meta-históricos (absolutos, eternos). A nossa maneira de praticar (viver) e conhecer esses valores é histórica (situada e datada) e, portanto, ideológica.
A ciência (conhecimento científico) não é neutra. A chamada “neutralidade científica” não existe. A “não-neutralidade” diz respeito não somente ao uso que se faz da ciência (não-neutralidade externa), mas também à maneira como se faz ciência (não-neutralidade interna). A práxis humana do conhecer cientificamente não deve ser confundida com o produto final dessa práxis: a televisão, o computador, etc. 
O que dissemos sobre a não-neutralidade do conhecimento científico vale também para o conhecimento comum e para o conhecimento filosófico e/ou teológico.
Portanto - diante do exposto - a questão fundamental que se coloca não é saber se um determinado posicionamento é ou não é ideológico, mas saber qual é a ideologia que esse posicionamento expressa. É uma ideologia que oprime e leva à morte ou é uma ideologia que liberta e promove a vida do ser humano e do planeta Terra: a nossa Irmã - Mãe Terra, a nossa Casa Comum?
Entre os muitos que - na sociedade e na Igreja - poderiam ser lembrados, cito e, ao mesmo tempo, denuncio um fato que, de alguns anos para cá, está acontecendo na Igreja Crista Católica e que - por ser a minha Igreja - me deixa profundamente indignado. 
A II Conferência do Episcopado Latino-americano e Caribenho de Medellín (1968) - que aplica os ensinamentos do Concílio Vaticano II à realidade da América Latina e do Caribe - em seus documentos usa com frequência e naturalidade as palavras “Pastoral Popular”, Comunidade Cristã de Base ou - simplesmente - “Comunidade de Base” (sem a palavra “Eclesial”, que - por tratar da “Igreja” - está subentendida). 
A opção da Igreja - que também é ideológica - é a Opção pelos Pobres (sem a palavra “preferencial”), que é o caminho de Jesus de Nazaré: o caminho que leva à vida e que não exclui ninguém. (A palavra “preferencial” foi colocada em documentos posteriores para aqueles que não entenderam o que significa “Opção pelos Pobres”).
Depois de Medellín, no processo de “restauração eclesial” e, sobretudo, “eclesiástica” desses últimos anos (apesar do testemunho evangélico e renovador do Papa Francisco), a Igreja “institucional” da América Latina e do Caribe - em suas diversas instâncias - não usa mais as palavras “Popular” e “de Base” por serem - dizem - palavras “ideológicas” (ou, com “conotação ideológica”).
Conheço “bispos” e “padres” que - quando convidados para participar de Encontros de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) ou de Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP) - falam de Comunidades Eclesiais (destacando - sobretudo hoje - a palavra “Missionárias”) ou de Pastoral da Juventude, mas nunca pronunciam (parece que há um bloqueio psicológico) as palavras “de Base” ou “do Meio Popular”: palavras perigosas por serem “ideológicas” (leia: do lado dos Pobres). 
Lembro a essa Igreja (para a qual só é “ideológico” aquilo que está do lado dos pobres) que uma Comunidade Eclesial só é Missionária (Comunidade “em saída”) se for “de Base”, ou seja, encarnada na vida do Povo, na vida dos pobres (como fez Jesus de Nazaré, que nasceu na manjedoura de um estábulo e - a partir da manjedoura - anunciou a Boa Notícia do Reino de Deus a todos e todas)
Por outro lado (reparem!), essa mesma Igreja “institucional” usa - de boca cheia e sem nenhum receio de ser “ideológica” - as palavras “Pastoral do empreendedor” (“empreendedor” não é pobre, portanto, não é ideológico), “Grupo de empresários católicos” (“empresários católicos” não são pobres, portanto, não são ideológicos), “Grupo de advogados católicos” (“advogados católicos” - sobretudo se forem “juízes”  ou “desembargadores” - não são pobres, portanto, não são ideológicos), e assim por diante. O “perigo” do ideológico só existe em relação aos pobres, ou seja, para quem fica do lado dos pobres.
Por fim, pergunto: qual foi o posicionamento “ideológico” de Jesus de Nazaré? Ele ficou do lado dos poderosos ou do lado dos pobres? A resposta encontra-se no motivo que foi apresentado para justificar a sua “criminalização” pelos “desembargadores” da época, com as “bênçãos” do Sinédrio. “Achamos este homem (Jesus) fazendo subversão entre o nosso povo” (Lc 23,2).
Só para citar um exemplo, hoje no prédio do Tribunal de Justiça de Goiás tem até Capela Católica com Sacrário e capelão: uma prática clara e indiscutivelmente inconstitucional. A razão da Capela deve ser para que os “desembargadores católicos” possam orar diante do Santíssimo Sacramento e - quem sabe - “assistir” à Missa do capelão, antes de “criminalizar” trabalhadores e trabalhadoras “sem terra” e “sem teto” (ou seja, o próprio Jesus na pessoa dos pobres que lutam pelo direito à terra e à moradia), assinando “ordens de despejo” (legais, mas antiéticas e anticristãs) de suas Ocupações. Que descaramento! Quanta hipocrisia! 
Os cristãos e cristãs perguntemo-nos: que Igreja queremos ser? A dos fariseus hipócritas ou a de Jesus de Nazaré? Que o tempo da Quaresma seja para nós de meditação e decisão! E que o Espírito Santo nos transforme em verdadeiros profetas e profetisas da Boa Notícia do Reino de Deus.

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Águas e Profecias:
Luzes do Meio Popular gerando Vidas  


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 10 de março de 2020



sexta-feira, 6 de março de 2020

Campanha da Fraternidade 2020: sua mensagem



 A mensagem da Campanha da Fraternidade 2020 (tema: “Fraternidade e Vida: Dom e Compromisso”; lema: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” - Lc 10,33-34) - que ilumina a nossa Quaresma - é a da Parábola do Bom Samaritano. 
Depois de responder à indagação de Jesus, lembrando o mandamento do amor a Deus e ao próximo, “o especialista em leis, querendo se justificar, perguntou-Lhe: ‘E quem é o meu próximo?’ Jesus respondeu: ‘Um homem ia descendo de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos de assaltantes, que lhe arrancaram tudo e o espancaram. Depois foram embora e o deixaram quase morto. Por acaso um sacerdote estava descendo por aquele caminho; quando viu o homem, passou adiante, pelo outro lado. O mesmo aconteceu com um levita: chegou ao lugar, viu e passou adiante, pelo outro lado. Um samaritano, que estava viajando, chegou perto dele, viu e sentiu compaixão. Aproximou-se dele e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas. Depois colocou o homem em seu próprio animal e o levou a uma pensão, onde cuidou dele.  No dia seguinte, pegou duas moedas de prata e as entregou ao dono da pensão, recomendando: ‘Tome conta dele. Quando eu voltar, vou pagar o que ele tiver gasto a mais’. E Jesus perguntou: ‘Na sua opinião, qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?’  O especialista em leis respondeu: ‘Aquele que praticou misericórdia para com ele’. Então Jesus lhe disse: ‘Vá, e faça a mesma coisa’ (Lc 10,29-37)”. 
Na Parábola do Bom Samaritano, Jesus nos apresenta duas maneira de olhar: “um olhar que vê e passa em frente, vivido pelo sacerdote e pelo levita; e um olhar que vê e permanece, se envolve, se compromete, vivido pelo samaritano” (Texto-Base, 26). O primeiro olhar é o da indiferença, que destrói a vida e a natureza; o segundo, é o da compaixão (do amor acontecendo), que cuida da vida e da natureza. O olhar de Jesus - que foi o olhar de Santa Dulce dos Pobres e deve ser também o nosso - é o olhar do Bom Samaritano.
“Ir e fazer a mesma coisa” significa “ver, sentir compaixão e cuidar” dos irmãos e irmãs que caíram e caiem nas mãos de assaltantes. 
No Brasil e no mundo - sobretudo hoje - temos: assaltos pessoais (nas relações pessoais ou interpessoais) e - o que é pior - assaltos institucionalizados (nas relações sociais ou estruturais).
Os assaltos pessoais - sem querer negar totalmente a responsabilidade individual de cada ser humano - são, em grande parte, consequência de um sistema sócio-econômico-político-ecológico-cultural estruturalmente injusto e desumano. Os assaltos institucionalizados são assaltos que excluem, descartam e matam legalmente os trabalhadores e os pobres em geral: a maioria do povo. Por exemplo, no Brasil, as chamadas Reformas Trabalhista e da Previdência são verdadeiros assaltos institucionalizados e, portanto, legais (embora, antiéticos) à vida e aos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras. Nesses assaltos - frutos do pecado estrutural (ou, da estrutura de pecado) - onde estão os Bons Samaritanos e as Boas Samaritanas!?
O Texto-Base da CF 2020 lembra-nos que o Brasil é um dos países mais desiguais e injustos do mundo. Denuncia o olhar da indiferença que gera ameaças à vida: abandona a vida das pessoas, destrói a natureza e exclui a vida. Afirma que “compaixão” é ter mais coração nas mãos e mais justiça no coração; que o amor é o verdadeiro sentido da vida. Destaca a solidariedade social e a disposição de servir como compromisso com a vida.  
“Não podemos esquecer o testemunho de quem defende a vida atuando nas diversas entidades, nos Conselhos de Direitos, Organizações Não Governamentais, nos Movimentos Sociais e Populares, nos Sindicatos, nas Associações de Bairros e em muitas outras organizações comprometidas com a vida” (Ib. 72).
Mesmo reconhecendo seus aspectos positivos, o Texto-Base da CF 2020 é expressão da Igreja que - com exceções - temos hoje no Brasil: uma Igreja que, em suas instâncias institucionais, não assume uma posição profética clara e objetiva, como exigência do Evangelho (embora haja muitos cristãos e cristãs que são verdadeiros profetas e profetisas). Não denuncia o sistema capitalista neoliberal, ou melhor, ultraliberal - que, como diz o Papa Francisco, exclui, descarta e mata - como sendo o maior assaltante dos pobres e a causa principal da gritante desigualdade e injustiça de nossa sociedade.
A Igreja não se coloca - com firmeza e sem ambiguidades ou atitudes diplomáticas - do lado dos Pobres. A Opção pelos Pobres não é “preferencial”, ou seja, não é uma alternativa entre duas ou mais alternativas. Ela é - para os cristãos e cristãs - a única Opção: o caminho de Jesus de Nazaré, o caminho que leva à vida. Todos e todas - inclusive Zaqueu e o jovem rico - são chamados a entrar nesse caminho. Ah, se a Igreja cumprisse realmente sua missão profética! Ah, se a Igreja - em todas as suas instâncias institucionais - fizesse o lançamento da Campanha da Fraternidade ou de outras atividades do lado dos Pobres e não do lado dos governantes e poderosos! Com certeza, o Brasil seria outro! 
Lembremos: Jesus nunca convidou Herodes e Pilatos - que eram autoridades políticas - ou outros poderosos para fazer, do lado deles, o lançamento do Sermão da Montanha ou de qualquer outra atividade. A Igreja não está traindo Jesus de Nazaré? Ela não está se prostituindo?
Que o Espírito Santo - o Amor de Deus - esteja sempre presente na vida de todos e todas que lutam por um Mundo Novo: o Reino de Deus na história do ser humano e da nossa Casa Comum: a Irmã - Mãe Terra.
(Leia também: “Campanha da Fraternidade 2020: seu sentido”, em: http://www.ihu.unisinos.br/596530-campanha-da-fraternidade-2020-seu-sentido)


Estudo e resumo do texto-base da CF-2020

Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 03 de março de 2020