quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Combater o estupro e defender a vida

 


O caso da menina de 10 anos de idade, grávida, vítima - desde os 6 - de cruéis estupros de um parente próximo, foi muito comentado nos meios de comunicação e nas redes sociais pelas reações que - mesmo involuntariamente - suscitou: ameaças, condenações levianas e manifestações inspiradas num fanatismo religioso fundamentalista que nada tem a ver com a fé cristã.

Lamentavelmente, “a cada hora, 4 meninas de até 13 anos são estupradas no país, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019” (Folha de S. Paulo, 25/08/20, p. B4). “O Brasil registra 6 abortos por dia em meninas entre 10 e 14 anos estupradas” (https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/08/17/brasil-registra-6-abortos-por-dia-em-meninas-entre-10-e-14-anos-estupradas.ghtml).

Diante de uma realidade como essa, ninguém pode ficar indiferente. Todo ser humano (homem e mulher) e, mais ainda, todo cristão e cristã (chamado e chamada a ser radicalmente ser humano) deve condenar o estupro como crime hediondo e uma das violências mais perversas contra a vida da mulher, principalmente da mulher-criança, transformada em mero objeto de prazer do homem. O estupro é uma violência que faz parte da cultura machista da sociedade capitalista e deve ser combatido com todos os meios possíveis, a partir da opção pelos pobres (descriminados, explorados, excluídos e descartados), que foi o caminho de Jesus de Nazaré. 

Todo ser humano e todo cristão e cristã deve também defender a vida humana em todas as suas fases desde a concepção: antes de nascer, depois de nascer e durante toda sua existência no mundo. 

No caso em questão - como em todos os outros - o comportamento ético do ser humano (homem ou mulher) - seja do ponto de vista filosófico (racional), seja do ponto de vista teológico (racional à luz da fé) - é o comportamento mais humano possível (sublinho: possível!) na situação concreta (individual, familiar e social) na qual ele ou ela se encontra.

Sem querer julgar a consciência das pessoas pelas decisões já tomadas a respeito do caso acima, mas tendo presente o direito à vida da menina-mãe e, ao mesmo tempo, o direito à vida da criança com 5 meses de gestação (inclusive, ela não era culpada pelo crime de estupro), duas atitudes éticas - humanas e cristãs - teriam sido possíveis. 

Primeira: se a menina grávida - de acordo com o parecer de especialistas – estivesse correndo real risco de vida, os médicos deviam fazer todo o possível para salvar a vida da menina, mesmo que o tratamento causasse - indiretamente - a interrupção da gravidez (que não poderia ser chamada aborto, mas seria uma demonstração concreta da nossa limitação humana). 

Segunda: se, porém, houvesse a possibilidade de salvar as duas vidas, deveria ter sido dado o seguinte encaminhamento:

  • Cercar a menina de todo amor e carinho para que - mesmo grávida - pudesse continuar a viver sua vida de criança (pré-adolescente).

  • Formar uma equipe multidisciplinar de especialistas voluntários e voluntárias (em princípio seria dever do Poder Público) que - também com amor e carinho - acompanhasse e cuidasse da menina grávida até o nascimento da criança e depois do seu nascimento.

  • Definir (se possível, com o acompanhamento do Poder Público) a equipe de pessoas (familiares e outras) que - sempre com amor e carinho - continuariam cuidando das duas crianças (mãe - pré-adolescente e filha) para que pudessem superar os traumas vividos, se sentir felizes e valorizadas. O amor e carinho resolvem tudo, ou melhor, quase tudo!

Pode ser um sonho, mas é real, possível e muito gratificante. Graças a Deus, apesar de tudo, existem muitas pessoas boas e generosas no Brasil e no mundo. Espero que as atitudes indicadas sejam luzes para a solução de outros casos semelhantes. 

Na minha visão filosófica e teológica, a vida humana pertence a Deus. É pela “presença ontológica” (em linguagem filosófica) ou “presença criadora” (em linguagem teológica) de Deus que nós existimos. Mesmo que a ciência conseguisse explicar o funcionamento de tudo o que existe (incluindo o ser humano), nunca iria conseguir responder à pergunta: por que eu existo? Na hipótese absurda que Deus neste exato momento não me criasse, eu não existiria. Deus é a fonte do ser. “Em Deus vivemos, nos movemos e existimos” (At 17,28).

Antes de terminar as minhas reflexões, não posso deixar de denunciar com toda indignação a hipocrisia de pessoas (políticas ou não) de extrema direita que - num caso como esse da menina grávida - para se autopromover apresentam-se (usando muitas vezes o nome de Deus em vão) como defensoras intransigentes da vida antes de nascer, mas apoiam um sistema social (sócio-econômico-político-ecológico-cultural), que - de maneira legal e institucionalizada - mata milhões de vidas já nascidas todos os dias.

“Estima-se que 6,3 milhões de crianças menores de 15 anos morreram em 2017 - 1 a cada 5 segundos - principalmente de causas preveníveis, segundo as novas estimativas de mortalidade divulgadas pelo UNICEF, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), pela Divisão de População das Nações Unidas e pelo Banco Mundial”. 

Pasmem! “A grande maioria dessas mortes, 5,4 milhões, ocorre nos primeiros cinco anos de vida. Os recém-nascidos representam cerca de metade das mortes.

‘Sem uma ação urgente, 56 milhões de crianças menores de cinco anos morrerão até 2030 - metade delas recém-nascidas’, disse Laurence Chandy, Directora de Dados, Pesquisas e Política do UNICEF.

‘Milhões de bebés e crianças não deveriam morrer todos os anos por falta de acesso a água, saneamento, nutrição adequada ou serviços básicos de saúde’, disse a Dra. Princess Nono Simelela, Diretora Geral de Saúde da Família, da Mulher e da Criança da OMS. ‘Devemos priorizar - diz ainda - o acesso universal a serviços de saúde de qualidade para todas as crianças, particularmente na época do nascimento e nos primeiros anos, para que elas tenham a melhor chance possível de sobreviver e prosperar’” (https://www.unicef.org/angola/comunicados-de-imprensa/cada-cinco-segundos-morre-no-mundo-uma-crian%C3%A7a-com-menos-de-15-anos).

Por fim, pergunto: Por que os movimentos e grupos de extrema direita - inclusive grupos que se dizem religiosos (católicos ou evangélicos) - que são contra o “aborto biológico”, nunca promovem manifestações de protesto contra o “aborto social” de crianças já nascidas, principalmente de 0 a 5 anos de idade? 

Apresentar uma parte da verdade como sendo toda a verdade, significa ser mentirosos e mentirosas. Ser contra o “aborto biológico” sem ser contra o “aborto social”, significa ser hipócritas.

Contra o crime hediondo do estupro! Vida em primeiro lugar!



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Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

Goiânia, 25 de agosto de 2020

domingo, 23 de agosto de 2020

Tudo dentro da legalidade imoral


No início deste mês de agosto foi publicada mais uma reportagem sobre a remuneração líquida mensal dos magistrados - juízes e desembargadores - do Estado de Goiás (parece-me que nos outros Estados a situação não é muito diferente). O conteúdo da reportagem deixa qualquer pessoa, que tem um mínimo de consciência moral, profundamente indignada. “Juízes têm ganhos acima de R$ 100 mil desde 2017”. “Ao todo 127 magistrados de Goiás receberam remuneração líquida que extrapola em mais de R$ 60 mil o teto constitucional do setor público (que é de R$ 39,3 mil mensais), ao menos uma vez, desde setembro daquele ano”. “Desse total, 38 magistrados contaram com valores acima de R$ 200 mil e, em 1 caso, o pagamento foi de mais de R$ 300 mil” (O Popular, 1-2/08/20, p. 4). Na remuneração mensal dos magistrados (ao menos de setembro de 2017 a abril deste ano) - além do salário (de R$ 28.884,25 a R$ 35.462,28) - constam também os chamados “pagamentos retroativos” das diferenças de direitos (que direitos?) que ficaram para trás (de até R$ 97,2 mil), o “auxílio-saúde” (de R$ 1,28 mil), o “auxílio-alimentação” (R$ 1,21 mil) e outros (Cf. Ib.). O Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) afirma “que todos os pagamentos ocorreram dentro da legalidade” e a Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (ASMEGO) diz que “restaura a verdade dos fatos, reafirmando seu compromisso com a ética (que ética?) e a transparência na gestão pública” (Ib.). É um descaramento e um cinismo tão revoltante que dá vômito! Não entro no mérito da questão da legalidade ou não dos “pagamentos extra”. Podem até ser legais, mas - com certeza - são imorais. Caso sejam legais, trata-se de uma imoralidade pública institucionalizada. Ora, diante de uma lei imoral, os magistrados - como também todos e todas nós em casos semelhantes - deveríamos praticar a objeção de consciência e desobedecer. Não o fazendo, nos tornamos coniventes com a imoralidade da lei. Com os altos salários que recebem, conceder aos magistrados o “auxílio-saúde”, o “auxílio-alimentação” e outros “auxílios” não é imoral e uma afronta a todos os trabalhadores e trabalhadoras? Não é um pontapé na cara dos pobres, que são a grande maioria do povo brasileiro? Não é uma injustiça que clama a Deus? Podem os pobres confiar na “justiça” desses magistrados? “Ai daqueles que fazem decretos iníquos e daqueles que escrevem apressadamente sentenças de opressão, para negar a justiça ao fraco e fraudar o direito dos pobres do meu povo” (Is 10,1-2). Diante desses absurdos, como entender, por exemplo, as inúmeras dificuldades que o Governo Federal coloca para conceder e manter o “auxílio emergencial” de R$ 600 para os trabalhadores e trabalhadoras que se encontram em situação de extrema necessidade por causa da pandemia do novo coronavírus (a Covid-19)? Percebendo, porém, que o “auxílio” (mesmo sendo uma mixaria) aumenta sua popularidade, o Governo muda de estratégia. Quanto oportunismo! Por que o Governo Federal não taxa as grandes fortunas, sobretudo nesse tempo de pandemia, para socorrer todos e todas que estão passando fome? Não é isso um sinal mais do que evidente que o Governo é dos ricos para os ricos? Como cristão - numa situação injusta como essa - o que mais me doe é o silêncio e a omissão da Arquidiocese de Goiânia. Não dá para entender! A Igreja não deve cumprir a missão profética de anunciar ao mundo o Projeto de vida de Jesus e denunciar tudo aquilo que é contrário a esse Projeto? Além do mais - reafirmando o que já disse no escrito sobre o “auxílio-saúde” dos magistrados (veja em: http://freimarcos.blogspot.com/2020/05/o-auxilio-saude-do-tj-go-uma.html ou em outros sites) - como pode ser mantida no TJ-GO (que, inclusive, é claramente inconstitucional) uma Capela Católica com o Santíssimo Sacramento da Eucaristia? Sem querer julgar a consciência das pessoas (só Deus pode fazer isso), esse comportamento da Arquidiocese não é conivência com a imoralidade e traição do Evangelho? “A vida se encontra no caminho da justiça; o caminho da injustiça conduz para a morte” (Pr 11, 28).



Foto da fachada da sede do Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO)



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Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG



quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Pedro Casaldáliga: Evangelho vivo

 “Jesus, que tinha amado os seus que estavam no mundo, 

amou-os até o fim” (Jo 13,1)


No dia 8 deste mês, o nosso irmão Pedro Casaldáliga - com 92 anos de idade (dos quais, 52 vividos na Prelazia de São Felix do Araguaia - MT, da qual foi bispo de 1971 a 2005 e depois bispo emérito) - fez sua Páscoa definitiva: a Páscoa em plenitude, a Vida Nova em Cristo no Amor. Pedro nasceu para Deus, jogou-se nos braços de Deus, mergulhou no mistério da Santíssima Trindade, Comunidade de Amor: “a melhor Comunidade”. Pedro está na glória do Reino, na felicidade eterna.

“Venham vocês, que são abençoados por meu Pai. Recebam como herança o Reino que meu Pai lhes preparou desde a criação do mundo. Pois eu estava com fome e vocês me deram (condições) de comer; eu estava com sede e vocês me deram (condições) de beber; eu era estrangeiro e vocês me receberam em sua casa; eu estava sem roupa e vocês me vestiram; eu estava doente e vocês cuidaram de mim; eu estava na prisão e vocês foram me visitar”. E ainda: “Todas as vezes que fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram” (Mt 25,34-36.40). 

Pedro foi - e continua sendo para nós - Evangelho vivo. Como cristão, seguidor e discípulo missionário de Jesus de Nazaré, foi radicalmente humano; anunciou a Boa Notícia do Reino de Deus aos pobres (oprimidos, explorados, excluídos e descartados). “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos e para proclamar o ano de graça do Senhor” (Lc 4,18-19). 

Como Religioso da Congregação Claretiana (e - gostava de dizer - dominicano honorário) foi radicalmente cristão. Como pastor - padre e bispo - cuidou dos seus irmãos e irmãs pobres.

Pedro despojou-se de todo e qualquer sinal de poder. Infelizmente, ao longo dos séculos, a Igreja Instituição caiu na tentação do poder e - consciente ou inconscientemente - absorveu da sociedade imperial, feudal e capitalista maneiras de ser e agir que não tem nada a ver com o Evangelho. E - o que é pior - sempre procurou justificar e legitimar essas maneiras de ser e agir com argumentos religiosos (exemplos: as mitras e os báculos dos bispos cobertos de ouro e pedras preciosas; a sagrada púrpura dos cardeais, que de sagrado não tem nada; a tiara com três coroas - usada pelo papa até o Concílio Vaticano II - simbolizando que o poder religioso do papa estava acima do poder dos reis e dos imperadores). Quanta hipocrisia!

Em sua ordenação episcopal, à beira do rio Araguaia, Pedro - no lugar da mitra, do báculo e do anel tradicionais - usou um chapéu de palha, um remo de pescador e o anel de tucum (palmeira amazônica). Pedro viveu intensamente a com-paixão (o sofrer juntos). Ele sempre esteve ao lado dos índios (os povos indígenas), dos posseiros e de todos os trabalhadores e trabalhadoras. Ele se fez pobre com os pobres, oprimido com os oprimidos, explorado com os explorados, excluído com os excluídos, descartado com os descartados e marcado para morrer com os marcados para morrer. Como escritor e poeta - em parceria com outros escritores e poetas e com músicos - Pedro cantou as lutas do povo por outro mundo e outra Igreja possíveis.

O nosso irmão Pedro - junto com seus companheiros e companheiras, irmãos e irmãs de caminhada - lutou incansavelmente contra o latifúndio, a grilagem de terras públicas, o trabalho escravo, a violência contra as mulheres, o racismo e todo tipo de discriminação. Combateu as atrocidades da ditadura civil e militar; lutou pela democracia e integração latino-americana e caribenha (a Pátria Grande); pela demarcação das terras indígenas; pela Reforma Agraria Popular e pela produção agroecológica familiar. Lutou ainda em defesa da Amazônia, do Cerrado, do meio ambiente em geral e da Irmã Mãe Terra, Nossa Casa Comum. Enfim, lutou em favor da vida e da vida para todos e para todas. “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

Pedro participou da criação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT); promoveu - com seus companheiros e companheiras - as Romarias da Terra e das Águas e as Romarias dos Mártires; apoiou a Teologia da Libertação e a caminhada das CEBs: novo jeito de ser Igreja e - como ideal e meta - novo jeito de toda a Igreja ser. 

O nosso irmão Pedro se encarnou na vida do povo e viveu radicalmente a Opção pelos Pobres: o caminho de Jesus de Nazaré. A partir dos Pobres, ele esteve sempre antenado com o mundo (a Pátria Maior) na escuta dos sinais dos tempos. “Para desempenhar sua missão (ser “Igreja em saída”), a Igreja, a todo momento, tem o dever de escutar (perscrutar) os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho”. Por conseguinte, “é necessário conhecer e entender o mundo no qual vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole frequentemente dramática” (Concílio Vaticano II. A Igreja no mundo de hoje - GS 4).

Por fim, não se encontra nada verdadeiramente humano que não tenha ressoado no coração de Pedro (Cf. Ib. 1).

Termino com as palavras do mártir vivo, jornalista Pinheiro Sales - vítima dos horrores da ditadura e intrépido defensor dos Direitos Humanos - em sua bonita Carta sobre Pedro: “Na vida, solidificou uma histórica parceria com todos os homens e mulheres que, neste momento, não aceitam a violência, o ódio e a estupidez de um governo indiferente à tragédia de mais de 100 mil pessoas mortas nos cinco meses de pandemia” (O Popular, 10/08/20, p. 3). 

Pedro foi um verdadeiro profeta de Deus. Seu corpo está agora sepultado à sombra de um pequizeiro, às margens do Rio Araguaia, mas ele vive entre nós. Como Jesus, nos garante: “Estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28,20).

Na nossa luta por outro mundo e outra Igreja possíveis, em comunhão de fé, digamos: São Pedro Casaldáliga, ora por nós!



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Foto do Vatican News



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Foto Concierto (2013)



Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

Goiânia, 12 de agosto de 2020


sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Uma forte ventania profética

 


Nestes últimos dias, em todos os recantos do Brasil, irrompeu na Igreja Católica - pelo sopro do Espírito Santo, o Amor de Deus - uma forte ventania profética.

Um grupo de mais de 150 irmãos bispos - conscientes de seu ministério (serviço) de pastores (cuidadores) do povo - para defender suas ovelhas, ou seja, seus irmãos e irmãs pobres, oprimidos, explorados, excluídos e descartados contra os ataques dos lobos, divulgaram uma Carta denominada “Carta ao Povo de Deus”.

 Nela, os nossos irmãos bispos assumem - com coragem e sem medo - a missão profética de anunciar o Projeto de Jesus de Nazaré, que é a Boa Notícia do Reino de Deus (na linguagem dos nossos irmãos e irmãs indígenas, a Sociedade do Bem Viver e do Bem Conviver), denunciando e condenando o Governo Federal (incluindo o Presidente da República) como sendo um Governo - cínica e descaradamente - perverso, iníquo e totalmente contrário ao Projeto de Jesus. 

"O sistema do atual Governo - diz a Carta - não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos e todas, mas a defesa intransigente dos interesses de uma 'economia que mata' (Alegria do Evangelho, 53), centrada no mercado e no lucro a qualquer preço". 

A Carta - depois de várias denúncias - faz um veemente apelo: “Despertemo-nos do sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares de mortes e da violência que nos assolam. Com o apóstolo São Paulo, alertamos que ‘a noite vai avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e vistamos a armadura da luz’ (Rm 13,12)”. 

Enfim, conclui, invocando a benção de Deus: “O Senhor vos abençoe e vos guarde. Ele vos mostre a sua face e se compadeça de vós. O Senhor volte para vós o seu olhar e vos dê a sua paz! (Nm 6,24-26)”.

(Leia a íntegra da Carta em: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/27/em-carta-ao-povo-de-deus-152-bispos-criticam-incapacidade-de-jair-bolsonaro ou em outros sites).

Diante de tantos desmandos e de tantas injustiças praticadas pelo Governo Federal contra os trabalhadores e trabalhadoras, os povos indígenas, os quilombolas, os pobres em geral e contra a Mãe Terra, Nossa Casa Comum, não podemos mais silenciar e nos omitir.

Numa situação grave como essa - que se tornou mais grave ainda por causa da pandemia da Covid-19 - o silêncio e a omissão significam conivência com a criminalidade. Quem silencia e se omite não pode ser chamado de cristão (mesmo que seja bispo ou padre) ou cristã.

Graças a Deus, no Brasil inteiro, surgiu também - sempre pelo sopro do Espírito Santo - uma corrente de apoio e solidariedade à “Carta ao Povo de Deus” dos bispos: uma Carta assinada por aproximadamente mil e quinhentos padres e que continua tendo novas adesões; um Manifesto de Cristãos Leigos e Leigas com 1440 assinaturas no primeiro dia e outras que estão sendo acrescentadas posteriormente; diversas Moções de entidades e organizações como a Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil, o Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduino e outras. A corrente aumenta a cada dia que passa. 

Por outro lado - infelizmente - há também na Igreja Católica muita resistência à forte ventania profética provocada pelo sopro do Espírito Santo. É o mistério da liberdade humana que Deus respeita! A resistência - aberta ou silenciosa - encontra-se em todos os lugares do Brasil, mas em algumas regiões é mais forte. Na Região Centro-Oeste (Goiás e Distrito Federal), por exemplo, só um bispo assinou a “Carta ao Povo de Deus”. O fato é revelador!

Nessa Região - pela atuação prolongada de algumas lideranças religiosas ultraconservadoras - há vários anos desencadeou-se um processo de retorno a um modelo de Igreja pré-conciliar: piramidal, clerical, autoritária, triunfalista e preocupada consigo mesma. A chamada “Igreja da caminhada” - que, por anos, viveu intensamente e com muita garra a renovação pós-conciliar, sendo considerada, sobretudo em algumas dioceses ou arquidioceses (como Goiânia, Cidade de Goiás e outras), um modelo de Igreja para os dias de hoje - sofreu um forte golpe. Na Região Centro-Oeste, a resistência à ventania profética provocada pelo Espírito Santo tornou-se - com várias e louváveis exceções - estrutural ou seja, um estilo de vida eclesial. 

Precisamos derrubar essa resistência institucionalizada e abrir as janelas para que a ventania profética possa entrar com toda força. Temos certeza que o sopro do Espírito Santo é muito mais forte do que qualquer resistência. Se Deus quiser, a Igreja da Caminhada - que, mesmo nas catacumbas, continua muito viva - logo voltará e com mais vigor. 

Para a nossa reflexão, deixo três questionamentos:


  1. Denunciando sua hipocrisia e falsidade, Jesus chama os fariseus (e os doutores da Lei) de “serpentes, raça de cobras venenosas!” (Mt 23,33). Avisado que devia ir embora, porque Herodes queria mata-lo, Jesus responde: “Vão dizer àquela raposa (...)” (Lc 13,32). 

Nós Igreja - cristãos e cristãs - temos a coragem profética de chamar - como fez Jesus - os fariseus de hoje de “serpentes, raça de cobras venenosas” e os Herodes de hoje de “raposas”? 

  1. Jesus foi acusado de subversivo. “Achamos este homem fazendo subversão entre o nosso povo” (Lc 23,2).

Nós Igreja - cristãos e cristãs - somos acusados/as, por causa de nossa prática - como foi Jesus - de pessoas que hoje “fazem subversão entre o nosso povo”?

  1. Para Jesus a fé é uma prática. “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino do Céu. Só entrará aquele que põe em prática a vontade de meu Pai” (Mt 7,21). A “vontade do meu Pai” é o projeto de igualdade, justiça e irmandade que Jesus veio anunciar ao mundo.

Nas eleições de 2018, os que se dizem cristãos/ãs, em sua maioria, votaram na “extrema direita”, cujo projeto político é aquele que temos: um projeto injusto (denunciado e condenado pelos bispos na “Carta ao Povo de Deus”) e totalmente contrário ao projeto de Jesus. Os que se dizem ateus, em sua maioria, votaram na “democracia”, que se for verdadeira (“democracia popular”) e não “elitocracia” é um grande valor humano e, portanto, também cristão.

Na prática, os que se dizem ateus, não são mais cristãos dos que se dizem cristãos/as? 

Temos bastante assunto para meditar! Estamos juntos e juntas por um outro Brasil! Sejamos profetas e profetisas da vida para todos e para todas! 



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O Povo e o padre celebrando juntos, na comunhão de irmãos e irmãs

(como deveriam ser todas as Celebrações dos padres e bispos)




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Pedro Casaldáliga, um bispo segundo o Evangelho e profeta de Deus

(como deveriam ser todos os bispos e padres)

Oremos pela sua saúde!



Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

Goiânia, 04 de agosto de 2020