domingo, 27 de outubro de 2024

O Ser humano histórico-individual (5)

 


(Continua a série de artigos sobre o Ser humano)

No Ser humano histórico-individual as dimensões da corporeidade, bio-psiquicidade e espiritualidade ou pessoalidade - que são dimensões "sexuadas" - inter-penetram-se (misturam-se, confundem-se), inter-dependem e inter-agem na unidade. Podem ser, logicamente, distinguidas, mas nunca, na prática, separadas.

A "corporeidade" nunca é só corporeidade (natural), mas é sempre corporeidade bio-psíquica e espiritual ou pessoal (corporeidade "humana"); a "bio-psiquicidade" nunca é só bio-psiquicidade (natural), mas é sempre bio-psiquicidade corpórea e espiritual ou pessoal (bio-psiquicidade "humana"); a "espiritualidade" ou pessoalidade nunca é só espiritualidade ou pessoalidade (desincarnada), mas é sempre espiritualidade ou pessoalidade corpórea e bio-psíquica (espiritualidade ou pessoalidade "humana").

Nas relações com os outros/as - relações individuais ou inter-individuais (que - como vimos - sempre acontecem numa sociedade historicamente determinada) - o Ser humano individual é, antes de tudo, "presença”.

"O termo 'presença' deriva de 'pré-ser' (prae-esse), que significa 'estar diante de alguém'. A ele liga-se também o presente temporal (passado - presente - futuro). A presença diz respeito só e unicamente a Seres humanos. As coisas não estão presentes. Elas estão simplesmente lá. As coisas nem estão ausentes, mas estão ou não estão aí. O mesmo uso linguístico mostra, portanto, a percepção da especificidade da presença humana. Aquilo que caracteriza a presença humana e a distingue do presente cronológico (tempo objetivo e matemático) e espacial (por exemplo, um cão na casa, uma árvore diante da porta) é a orientação aos outros Seres humanos" (GEVAERT, J. Il Problema dell'Uomo. Introduzione all'Antropologia filosofica. Elle Di Ci, 19814, p. 73-74).

A primeira e mais fundamental forma de presença do Ser humano individual (ser consciente de “ser-no-mundo", “ser-com-o-mundo”) é o fato que todo Ser humano individual vivente pertence ao gênero humano, à espécie humana. Encontra-se, por isso, num contexto de comunicabilidade e reconhecimento. Ele precisa ser tratado como Ser humano individual (não como coisa). Ele é um possível interlocutor de todos os outros Seres humanos individuais.

A segunda forma de presença do Ser humano individual é o fato da pertença a uma sociedade concreta (formação social), a um grupo humano concreto que vive num determinado ambiente sócio-econômico-político-ecológico-cultural-religioso (Cf. Ib., p. 74).   

A terceira forma de presença pode ser caracterizada como "presença benévola, presença de amor: isto é, vontade de responder, de amar, de promover o outro; e isso não em abstrato, mas no efetivo assumir os problemas do outro. Esta forma de presença orienta-se diretamente ao tu do outro e se traduz em atenções cuidadosas, fidelidade, criatividade, previdência e providência. Esta é, no sentido forte do termo, uma presença criadora" (Ib.).

Nas relações com os outros/as, o indivíduo experimenta também muitas formas de “ausência”. Toda existência (convivência) humana torna-se, assim, um mixto de presença e ausência (união e separação, alegria e dor). A grande e fundamental ausência é, porém, a morte (passagem definitiva da história para a meta-história). Nela o indivíduo singular deixa (cessa) de "ser-no-mundo" e de se relacionar (comunicar) com os outros (voltaremos sobre o tema da morte).

Nas relaçôes com os outros/as, o Ser humano individual é ainda "expressão" (manifestação, revelação). Ele "exprime-se" (manifesta-se, revela-se) a si mesmo, em primeiro lugar, na realização ou não de suas possibilidades: corpóreas, bio-psíquicas e espirituais ou pessoais e, em segundo lugar, na utilização ou não das diversas formas de linguagem, que também são corpóreas, bio-psíquicas e espirituais ou pessoais (as expressões faciais, as maneiras de posicionar o corpo, de estar sentado, de caminhar, as manifestações afetivas, a comunicação de idéias pelo trabalho, pela palavra, etc.).

No Ser humano individual, "a consciência que pensa o objeto 'em-si' (natureza), deposita a significação que lhe confere na exterioridade da palavra; a consciência que pensa o objeto 'para-si' (liberdade), é ainda na palavra que encarna a significação de sua mais rigorosa autoposição. Dupla saída, duplo êxtase da consciência: aquele que manifesta a significação do 'objeto' e aquele que indica o sentido da 'decisão'. A palavra circunscrita pelos conteúdos do mundo, e a palavra suscitada pelas iniciativas da liberdade. Dupla linha de intencionalidade, intersecando-se em cada plano da consciência e em cada projeção no discurso, no 'logos' pensado e no 'logos' proferido: a intencionalidade da coisa e a intencionalidade do evento, a palavra 'natureza' e a palavra 'história'.

Ora, o paradoxo da exterioridade da consciência no sinal não se explica, se o 'para-si' da consciência não se apresenta no Ser humano, dentro da unidade de um mesmo movimento, como para-o-outro, como comunicação”.

E continua: “No Ser humano a consciência não é interioridade absoluta, puro espírito. Ela se dá a si mesma um corpo: não é o corpo-objeto, sujeito às causalidades físicas e biológicas, mas o corpo em permanente gênese de significação, o corpo do gesto, da palavra, do sinal em suma. A consciência, no Ser humano, é essencialmente anunciadora: ela proclama, invoca, define. Tal condição estaria condenada a uma total ininteligibilidade, se a face da consciência que se prolonga na exterioridade do sinal não fosse voltada para outra consciência, não projetasse, ao descobrir-se, o espaço humano da comunicação" (VAZ, H. C. de Lima. Ontologia e História. Duas Cidades, 1968, p. 274-275).

Enfim, podemos concluir estas reflexões dizendo que "o verdadeiro valor espiritual (portanto, também, corpóreo e bio-psíquico) do indivíduo depende do valor de suas relações reais" (MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia alemã - I Feuerbach. Hucitec, São Paulo, 19865, p. 54).

Obs.: Por achar que os “bens” são bons, mas que a “riqueza” indica uma relação desigual, injusta, desumana e antiética para com os “bens”, no texto citado - mantendo seu sentido figurado - troquei a palavra “riqueza” pela palavra “valor”).

No proximo artigo a respeito do tema, começaremos a refletir sobre o Ser humano meta-histórico.


 

Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Cel. e WA: (62) 9 9979 2282
https://freimarcos.blogspot.com/

Goiânia, 23 de outubro de 2024

 

 

O artigo foi publicado originalmente em:

https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-historico-individual-5/  (08/10/24)


sexta-feira, 11 de outubro de 2024

“Uma administração séria sem ideologia” é possível?



A resposta é taxativa. Não! Toda Práxis humana (Prática ou Ação e Teoria ou Conhecimento), por ser histórica - situada (no espaço) e datada (no tempo) - é ideológica. O que vale é saber se se trata de uma Práxis ideológica que oprime e desumaniza ou de uma Práxis ideológica que liberta e humaniza.

Infelizmente, no Brasil o que mais ouvimos dos candidatos e candidatas a Prefeitos ou Prefeitas no 1º turno da Campanha das Eleições Municipais foram as palavras: “tenho experiência e farei uma administração séria sem ideologias” (ou outras semelhantes).

Essa afirmação revela ingenuidade política (prefiro pensar que seja isso) ou vontade premeditada de enganar o Povo: os Pobres.

Depois de dizer isso, esses mesmos candidatos e candidatas a Prefeitos ou Prefeitas - e até muitos candidatos e candidatas a Vereadores ou Vereadoras - costumavam apresentar uma lista de obras que - caso ganhassem - pretendiam fazer ou (no caso dos Vereadores e Vereadoras) ajudar a fazer, sem dizer o por que e o para que. Não diziam se era:

  • para reproduzir e fortalecer o Projeto Capitalista Neoliberal (o Projeto dominante): um Projeto de classes, de uma desigualdade gritante, perverso, desumano, injusto e antiético,

ou se era:

  • para abrir caminhos novos que - a partir dos Pobres e junto com os Pobres - fizessem acontecer um Projeto de Sociedade e de Mundo alternativo, que chamo Projeto Popular Socioambiental (PPS),        sociopolítico, socioeconômico, socioecológico, sociocultural e sociorreligioso: um Projeto sem classes, igualitário, fraterno, comunitário, humano, justo e ético (Projeto Socialista e Comunista no verdadeiro sentido da palavra), como foi e continua sendo o Projeto de Jesus de Nazaré, que (se não for deturpado, como muitas vezes costuma acontecer) é o mais revolucionário que existe.

Por fim, parabenizando os irmãos e irmãs, companheiros e companheiras de caminhada e de luta pelas vitórias (mesmo parciais) conseguidas no 1º turno das Eleições Municipais, permito-me - por uma questão de coerência humana e ética - dar três sugestões aos membros dos Partidos Políticos Populares (chamados “de esquerda”), que continuam Candidatos ou Candidatas a Prefeitos ou Prefeitas no 2º turno das Eleições Municipais, ou que pretendem candidatar-se a cargos políticos nas futuras Eleições Municipais, Estaduais e Federais.

Primeira sugestão: Anunciem, com convicção e clareza (sem acordos oportunistas), o Projeto Popular Socioambiental (PPS), sociopolítico, socioeconômico, socioecológico, sociocultural e sociorreligioso pelo qual lutam.

Segunda sugestão: Digam, com sinceridade, quais são os passos possíveis que, em seu mandato político, pretendem dar para que esse Projeto se torne - a

curto, médio e longo prazo - uma realidade.

Terceira sugestão: Apresentem, com firmeza e objetividade, quais são as ações assistenciais e promocionais que querem realizar para resolver situações desumanas emergenciais, que não podem esperar as mudanças estruturais.

Lembrem: “A misericórdia sempre será necessária, mas não deve contribuir para criar círculos viciosos que sejam funcionais para um Sistema econômico iníquo. Requer-se que as obras de misericórdia sejam acompanhadas pela busca de verdadeira justiça social, que vá elevando o nível de vida dos cidadãos e cidadãs, promovendo-os como sujeitos de seu próprio desenvolvimento” (Documento de Aparecida - DA 385).

Por fim, os e as que pertencemos aos Partidos Políticos Populares, aos Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras, e às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Renovada e Libertadora, precisamos voltar a nos comprometer - seriamente e em caráter permanente - com o Trabalho de Base (lembro-me, por exemplo, do tempo em que, para uma pessoa se filiar ao PT, era necessário que primeiro participasse de um Grupo Político de Base).

O Trabalho de Base é o único caminho para fazer acontecer o Projeto Popular Socioambiental (PPS), sociopolítico, socioeconômico, socioecológico, sociocultural e sociorreligioso no Brasil e no mundo.

“Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”
(https://www.ebiografia.com/frases_de_paulo_freire_explicadas_para_entender_suas_ideias/).
“Eleições livres de dominadores não abolem os dominadores nem os escravos”
(https://kdfrases.com/autor/herbert-marcuse).
Esperançar sempre! Nunca desistir!


Urna eletrônica - Foto: Reprodução/TRE

De acordo com dados do Tribunal Regional Eleitoral (TRE),
290.868 eleitores deixaram de comparecer às urnas em Goiânia
(número maior que os votos do 1º colocado: 214.253).
E a consciência política? Sem palavras!




Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br - Cel. e WA: (62) 9 9979 2282


Goiânia, 09 de outubro de 2024