sábado, 2 de abril de 2011

Ficha Limpa no Congresso e Ficha Suja no STF

“Diga-me com quem você anda, que eu direi quem você é”. Parafraseando o sábio ditado popular, podemos dizer: “Quem anda com Ficha Limpa é Ficha Limpa e quem anda com Ficha Suja é Ficha Suja”. A Lei da Ficha Limpa prevê que políticos condenados em julgamentos feitos por mais de um juiz (ou seja, em segunda instância), cassados ou que tenham renunciado para evitar a cassação, sejam impedidos de disputar cargos eletivos.
            Depois de realizar a coleta, no Brasil todo, de mais de um milhão de assinaturas, a Lei da Ficha Limpa foi aprovada em maio de 2010 no Congresso: por ampla maioria de votos na Câmara Federal e por unanimidade no Senado da República. Foi sancionada sem vetos em junho de 2010 pelo Poder Executivo; foi aplicada pelos Tribunais Regionais Eleitorais; foi confirmada pelo Tribunal Superior Eleitoral; e foi aplicada por decisão do próprio Supremo Tribunal Federal. Enfim - o que é mais significativo - foi aprovada em todos os níveis e segmentos da opinião pública nacional.
            Mesmo com tudo isso, mesmo diante do clamor geral do povo por justiça, 6 ministros (a maioria) do STF, com destaque para o recém-empossado ministro Luiz Fux,  preferiram se acovardar e dar ouvidos aos recursos dos políticos corruptos. No dia 23 de março, o STF decidiu, por 6 votos a 5, que os efeitos da Lei da Ficha Limpa não se aplicam à eleição de 2010. Para tomar essa decisão, o STF se baseou na Constituição Federal, que reza: “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência” (Art. 16).
            Propriamente falando, a Lei da Ficha Limpa não altera o processo eleitoral, mas simplesmente codifica, de forma clara e objetiva, aquilo que sempre deveria ter sido feito (e ainda deve ser feito) na hora de aceitar ou não os candidatos a cargos eletivos. A corrupção não deve ser rejeitada porque existe a Lei da Ficha Limpa, mas por ser corrupção. A Lei da Ficha Limpa representa - embora o STF não queira reconhecer - um avanço na consciência ética da sociedade brasileira. O mesmo pode ser dito a respeito dos direitos humanos. Eles não existem porque foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos ou porque foram incorporados à Constituição do Brasil e de outros países, mas por serem direitos inerentes à condição humana no mundo. A codificação dos  direitos humanos representa também um avanço na consciência ética dos países.
            O ministro Luiz Fux, que, quando foi indicado para o STF, elogiou a Ficha Limpa, dizendo que ela 'conspira a favor da moralidade', “quebrou todas as expectativas e frustrou a sociedade brasileira ao dar o voto do desempate”. Com isso, o ministro revelou sua verdadeira face e deu “um tapa na cara da sociedade brasileira que lutou arduamente pela aprovação da Ficha Limpa” (www.avaaz.org).
            Não adianta o ministro dizer que ficou “impressionado com os propósitos da Lei”, que ficou “empenhado em tentar construir uma solução” e que, não conseguindo dormir, acordou às três horas e levou “seis horas para montar o voto”. Não adianta dizer que, ao julgar, tentou equilibrar “razão e sensibilidade” e que “debaixo da toga de juiz também bate um coração” (Folha de S. Paulo, Entrevista, 28/03/11, p. A16). O povo não é bobo! O ministro Luiz Fux, ao endossar o voto do relator Gilmar Mendes (contra o próprio parecer do presidente do TSE, Ricardo Lewandowski) desapontou e decepcionou a todos. Seu comportamento não se justifica, é inaceitável e merece o repúdio da sociedade.
            E tem mais. A imprensa afirma: “Derrubada para a eleição de 2010, a validade da Ficha Limpa também está ameaçada para a disputa de 2012 e dos anos seguintes. Ministros do Supremo Tribunal Federal avaliam que aspectos da Lei podem estar em conflito com a Constituição e podem ser anulados. São duas as principais incertezas que surgiram do julgamento de 23 de março: o princípio da 'presunção da inocência' e a retroatividade da lei para crimes cometidos antes de sua vigência. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ricardo Lewandowski, admite que a Lei pode ser esvaziada: 'Não tem nada de seguro. Não é certo que a Lei valerá para 2012'” (Folha de S. Paulo, 25/03/11, p. A9). É inacreditável!
            Vejam agora quais são os verdadeiros interesses e as reais preocupações do STF. Em agosto de 2010, Cezar Peluso, presidente do STF, enviou à Câmara Federal um projeto “elevando de R$ 26.723 para R$ 30.675 os subsídios dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). O reajuste tem efeito cascata em toda a magistratura e serve como teto salarial para o funcionalismo público”. A tendência atual dos parlamentares é deixar o projeto na gaveta, “até que o Congresso aprove uma alteração na Constituição para igualar os salários dos deputados, dos senadores, do presidente da República e do vice-presidente e dos ministros de Estado aos vencimentos dos ministros do STF”. Com essa mudança constitucional - reparem a artimanha – “os parlamentares esperam diminuir o desgaste político com a população cada vez que forem aumentar os seus próprios salários, diluindo o impacto negativo com o Judiciário e com o Executivo” (O Popular, 29/03/11, p. 12).
            Lendo essa notícia, quase cai de costas. Que pouca vergonha! Que afronta à miséria do nosso povo! Realmente, está cada vez mais claro que a corrupção e a imoralidade públicas não são tanto a causa, mas são sobretudo a consequência de um “sistema econômico iníquo” (Documento de Aparecida - DA, 385) ou, em outra palavras, de um “sistema nefasto” (Populorum Progressio - PP, 26), que é o sistema capitalista neoliberal.
            Do ponto de vista ético, com a votação de 23 de março/11, o STF, como instituição,  tornou-se Ficha Suja e os ministros  Luiz Fux, Gilmar Mendes, José Antônio Toffoli, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Cezar Peluso, como pessoas, tornaram-se também Fichas Sujas. Entre os ministros, não houve consenso a respeito da interpretação da Lei da Ficha Limpa e Carmem Lúcia, Joaquim Barbosa, Carlos Ayres Britto, Ricardo Lewandowski e Ellen Gracie votaram a favor de sua aplicação imediata.
            Será que o STF tem consciência do “mal moral” que causou à sociedade brasileira? Será que o ministro Luiz Fux - que, mesmo afirmando o contrário, desempatou o resultado da votação - tem consciência da gravidade do ato que praticou, em nome de uma interpretação legalista, fundamentalista e farisáica da lei eleitoral? Será que ele consegue dormir com a consciência tranquila? Não dá para entender! Chegou a hora de deixar de lado os malabarismos jurídicos ou os artifícios legais hipócritas e ouvir o clamor do povo, olhando não somente a letra, mas também e sobretudo o espírito da Lei. “A letra mata, o Espírito dá vida” (2Cor 3, 6).

            Enfim - como, pela Constituição Federal, a perda ou suspensão de direitos políticos se dá no caso de “condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos” (Art. 15, III) - eu pergunto: Já que a condenação dos candidatos Fichas Sujas por um órgão colegiado da Justiça tem garantia constitucional, por que o nosso Judiciário não acelera o cumprimento do seu dever primário de julgar os milhares de processos de Fichas Sujas empilhados nas suas gavetas da impunidade? Se fizer isso, terá certamente o apoio incondicional da sociedade e, sobretudo, de todos aquele/as que lutam por justiça, por dignidade humana e por um Brasil diferente.
                                Diário da Manhã, Opinião Pública, Goiânia, 01/04/11, p. 3



Fr. Marcos Sassatelli, Frade Dominicano 
    Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra

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