“Eu vim para servir” (cf. Mc 10, 45)
Fazendo a memória dos 50 anos do Concílio Vaticano II, a
Campanha da Fraternidade deste ano convida-nos a refletir - dentro do espírito
da Quaresma, que é de conversão e mudança de vida - sobre a missão da Igreja na
sociedade e no mundo de hoje.
A Quaresma - tempo forte de graça de Deus - leva-nos a
intensificar a prática da caridade (sentido bíblico da esmola), da oração e do
jejum. A prática da caridade (do amor) consiste na partilha - que deve ser sempre
mais radical - de tudo o que somos e de tudo o que temos, e faz-nos entrar em
comunhão com Deus, com os irmãos e irmãs e com a natureza.
A
prática da oração (pessoal e comunitária ou litúrgica) - que nos coloca em
comunicação direta com Deus - manifesta e, ao mesmo tempo, fortalece a nossa comunhão
com Ele, com os irmãos e irmãs e com a natureza.
A
prática do jejum (no sentido bíblico) não é só deixar de comer algo ou fazer
algum sacrifício para adquirir mais autocontrole e crescer na perfeição humana
ou santidade, mas é, sobretudo, comprometer-se com a justiça, para que a nossa comunhão
com Deus, com os irmãos e irmãs e com a natureza seja verdadeira e não
hipócrita.
“O jejum que eu quero - diz o Senhor - é este: acabar com
as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os
oprimidos e despedaçar qualquer jugo; repartir a comida com quem passa fome,
hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e
não se fechar à sua própria gente. Se você fizer isso, a sua luz brilhará como
aurora, suas feridas vão sarar rapidamente, a justiça que você pratica irá à
sua frente e a glória de Deus virá acompanhando você” (Is 58, 6-8).
Podemos, portanto, dizer que a nossa comunhão (relação de
amor sempre mais profunda) com Deus, com os irmãos e irmãs e com a natureza -
que nos realiza e nos faz felizes como seres humanos (pessoas), filhos e filhas
de Deus - acontece de modo interrelacionado e interativo, na prática (ou na vivência)
da caridade, da oração e do jejum.
Apresento
agora alguns elementos de teologia da Igreja (eclesiologia), que são luzes e norteiam
a nossa missão na sociedade e no mundo de hoje.
1º Elemento:
o reconhecimento - não só na teoria, mas na prática - da igualdade fundamental de
todos os seres humanos, criados à imagem e semelhança de Deus.
"Deve-se
reconhecer cada vez mais a igualdade fundamental entre todos e todas" (A
Igreja no mundo de hoje - GS, 29). "Reina entre todos e todas verdadeira
igualdade quanto à dignidade e ação comum" (A Igreja - LG, 32). "A
razão principal da dignidade humana consiste na vocação do ser humano para a
comunhão com Deus" (GS, 19). Por isso, "o mistério do ser humano só
se torna claro verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado. (…) Cristo
manifesta plenamente o ser humano ao próprio ser humano e lhe descobre a sua
altíssima vocação" (GS, 22). "Todo aquele que segue Cristo, o Homem
perfeito, torna-se ele também mais ser humano" (GS, 41). "A fé
esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a
vocação integral do ser humano. E por isso orienta a mente para soluções
plenamente humanas" (GS, 11).
2º
Elemento: a consciência que a Igreja, como Povo de Deus a serviço do Reino na
sociedade e no mundo, é toda ministerial.
Antes
de tudo, precisamos reconhecer que "todos os seres humanos são chamados a
pertencer ao novo Povo de Deus. Por isso este Povo, permanecendo uno e único,
deve estender-se a todo o mundo e por todos os tempos, para que se cumpra o
desígnio da vontade de Deus" (LG, 13).
Na
perspectiva do Novo Testamento, a estrutura social da Igreja deve ser pensada
dentro do binômio “Comunidade - Carismas e Ministérios”. Dentro desse binômio,
“sublinham-se os elementos comuns a todos os cristãos e cristãs e, ao mesmo
tempo, valorizam-se as diferenças carismáticas, ministeriais e de serviço.
Neste sentido, os termos que designam os membros do Povo de Deus acentuam a
condição comum a todos os renascidos pela água e pelo Espírito: 'santos', 'eleitos',
'discípulos', 'irmãos'” (CNBB. Missão e Ministérios dos Cristãos Leigos e Leigas,
abril de 1999, 105).
3º
Elemento: a "comunhão" entre os diferentes serviços e ministérios na
Igreja, em sua missão na sociedade e no mundo.
As
relações entre os diferentes serviços e ministérios na Igreja, em sua missão na
sociedade e no mundo, devem ser relações de "comunhão". Nas relações
de "comunhão" não ha espaço para relações de "dependência",
de “subordinação”, de "submissão", de "dominação", de
"inferioridade" ou "superioridade". Nas relações de
"comunhão" todos e todas - na diversidade dos serviços e ministérios
- são sujeitos conscientes e responsáveis de suas opções, atitudes e atos.
Na
Igreja as palavras "poder", "autoridade",
"hierarquia", "obediência", não têm (ou, ao menos, não
deveriam ter) o mesmo sentido que têm na sociedade, sobretudo na sociedade
capitalista de hoje.
"Vocês
sabem: aqueles que se dizem governadores das nações têm poder sobre elas, e os
seus dirigentes têm autoridade sobre elas. Mas, entre vocês não deverá ser
assim: quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servidor de vocês, e
quem de vocês quiser ser o primeiro, deverá tornar-se o servo de todos"
(Mc 10, 42-44).
4º
Elemento: a valorização do "senso da fé" do Povo cristão.
Pelo
"senso da fé" o conjunto dos fiéis, "desde os Bispos até os
últimos fiéis leigos, apresenta um consenso universal sobre questões de fé e
costumes” (LG, 12).
5º
Elemento: a escuta dos "sinais dos tempos".
"Para
desempenhar sua missão, a Igreja, a todo momento, tem o dever de perscrutar os
sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal modo que possa
responder, de maneira adaptada a cada geração, às interrogações eternas sobre
os significados da vida presente e futura e de suas relações mútuas. É
necessário, por conseguinte, conhecer e entender o mundo no qual vivemos, suas esperanças,
suas aspirações e sua índole frequentemente dramática" (GS, 4).
6º
Elemento: a opção pelos empobrecidos, oprimidos e excluídos.
A
opção pelos empobrecidos, oprimidos e excluídos (os “descartados”, as “sobras”
da sociedade) é uma opção profundamente evangélica - profética e libertadora -
e não meramente ideológica (embora as ideologias sejam uma mediação necessária,
por ser o ser humano um ser histórico, situado e datado). A opção pelos
empobrecidos, oprimidos e excluídos é o caminho de Jesus de Nazaré, aberto a
todos e a todas (inclusive ao jovem rico e a Zaqueu), mas a partir da
manjedoura de Belém (e não a partir do palácio do imperador de Roma).
Precisamos,
portanto, fazer a opção pelos empobrecidos, oprimidos e excluídos, para - a
partir deles e junto com eles - participar ativamente do processo de libertação
do ser humano todo e de todos os seres humanos na sociedade e no mundo, segundo
o projeto de Deus. O nosso referencial deve ser sempre a prática de Jesus de
Nazaré. "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para
evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a remissão aos presos e aos
cegos a recuperação da vista, para libertar os oprimidos e para proclamar um
ano de graça do Senhor" (Lc. 4, 18-19).
É
justamente essa prática de Jesus de Nazaré que deve iluminar e nortear o nosso
compromisso nas Comunidades - sobretudo nas CEBs - e nas Pastorais Sociais e
Ambientais.
7º
Elemento: a tomada de posição contra o sistema capitalista neoliberal.
Devemos
lutar, com clareza e firmeza, contra o sistema capitalista neoliberal e denunciar
que é um "sistema econômico iníquo" (Documento de Aparecida - DA, 385) ou - como afirma Paulo VI - um
"sistema nefasto", porque considera "o lucro como o motivo
essencial do progresso econômico, a concorrência como lei suprema da economia,
a propriedade privada dos bens de produção como um direito absoluto, sem
limites nem obrigações correspondentes" (O Desenvolvimento dos Povos - PP,
26).
8º.
Elemento: a aliança com os Movimentos Populares, Organizações Sindicais e
outras.
Precisamos ser aliados, ou
organicamente ligados (conectados), a todas as forças sociais que, como os
Movimentos Populares, Organizações Sindicais e outras, são portadoras do novo e
fazem acontecer na sociedade e no mundo - através de mudanças não só
conjunturais, mas sobretudo estruturais - um projeto social
(sócio-econômico-político-ecológico-cultural) alternativo, um projeto de um
"outro mundo possível", que - como afirmam as Semanas Sociais
Brasileiras - é o Projeto Popular ou, à luz da Fé, é o Reino de Deus
acontecendo na história do ser humano e do mundo.
A
nossa missão de discípulos/as missionários/as de Jesus de Nazaré nasce do
Espírito Santo e deve nos levar à convivência (proximidade) com a vida sofrida
do povo (empobrecido, oprimido e excluído); à prática da
"com-paixão", da solidariedade e ao desejo de caminhar juntos.
“As
alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos seres humanos de
hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e
as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos/as de Cristo. Não se
encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração” (GS, 1).
Enfim,
podemos dizer que "o seguimento de Jesus é fruto de uma fascinação que
responde ao desejo de realização humana, ao desejo de vida plena. O discípulo é
alguém apaixonado por Cristo, a quem reconhece como mestre, que o conduz e
acompanha" (DA, 277).
Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral
(Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia,
25 de fevereiro de 2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário