quarta-feira, 27 de abril de 2016

Câmara Federal: uma vergonha nacional



          Domingo, dia 17 do mês corrente, à tarde e à noite, muitos brasileiros e brasileiras (no Brasil e no exterior) tiveram a oportunidade de assistir a um espetáculo vergonhoso e deprimente, um verdadeiro circo, cujos atores (cumprindo um papel ridículo e - diga-se de passagem - de péssima qualidade do ponto de vista artístico) foram os deputados federais, que em sua maioria, são uma corja de fariseus, hipócritas, falsos, corruptos, oportunistas, covardes, conspiradores e traidores.
Foi nojento e repugnante ver que - depois de conquistar o 342º voto - um grupo desses deputados federais conspiradores e traidores (alguns deles eram ministros do governo até poucos dias antes da votação), numa atitude inescrupulosa e diabólica, correram para a casa do chefe dos conspiradores e traidores, que os recebeu com um sorriso cínico e maldoso (vejam foto compartilhada nas redes sociais). É inacreditável! Para qualquer pessoa que tem um mínimo de decência e dignidade humana, foi uma cena de provocar vômito!
          A bem da verdade, precisamos reconhecer que na Câmara há também um pequeno grupo - e isso é motivo de muita esperança - de deputados federais honestos que, apesar das condições adversas, esforçam-se para fazer da prática política um verdadeiro serviço ao povo e ao bem comum. Como dizia Paulo VI e repete hoje o Papa Francisco: a verdadeira prática política é uma das formas mais sublimes da caridade (do amor).
      Infelizmente, nestes últimos anos, o maior erro das forças políticas populares no governo foi fazer a aliança com um grupo político, que é parte integrante dos detentores do poder econômico (os “demônios” de hoje). Deu no que deu! Espero que a traição dos novos “Judas” sirva de lição para essas forças políticas populares e também para todos os movimentos sociais populares e todos os sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras que lutam por uma nova sociedade, justa e igualitária.
         Lembremos as palavras de Jesus de Nazaré: “Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6, 24): o deus dinheiro, o grande ídolo do nosso tempo.
Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês são como sepulcros caiados: por fora parecem bonitos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e podridão! Assim também vocês: por fora parecem justos diante dos outros, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e injustiça!” (Mt 23, 27-28). Essas palavras são o retrato perfeito do que vimos na Câmara Federal, durante a votação do impeachment, que foi um golpe político baixo, covarde e vingativo.
Uma das coisas mais nojentas da sessão de votação do impeachment foi ver como deputados federais, durante o voto, emitiam frases de efeito, profanando os valores mais sagrados da vida humana e, às vezes, utilizando - de maneira deturpada, oportunista e farisaica - a própria Palavra de Deus para defender seus interesses pessoais e de grupo. Houve até deputado que fez uma homenagem a um dos maiores torturadores da ditadura civil e militar. É execrável!
Lamento profundamente que muitos deputados federais (que se dizem, mas não são) cristãos católicos ou cristãos evangélicos sejam piores do que os outros. Como pode, por exemplo, um presidente da Câmara Federal, notoriamente corrupto, presidir uma sessão tão importante? É realmente o fim da picada! O despudor não tem mais nenhum limite! Nunca vi esses fariseus falarem tanto o nome de Deus em vão.
A bancada goiana de deputados federais (com uma única exceção) confirmou - com sua prática política - que o Estado de Goiás é um dos Estados mais atrasados do Brasil, do ponto de vista cultural e ético. Em Goiás, ainda predomina o coronelismo rural (dos latifundiários), o coronelismo urbano (dos donos das imobiliárias) e o coronelismo político, este último a serviço dos dois primeiros.
Em Goiás, os criminosos - muitas vezes presos ou com mandato de prisão - são os trabalhadores e trabalhadoras que lutam pelo direito sagrado à terra e à moradia.
Quem tiver estômago para isso, leia na mídia o depoimento dos deputados federais goianos - e de outros Estados também - na hora da votação do impeachment. É estarrecedor! Por fim, lembrem-se os deputados federais que Deus é justo. Aguardem! A hora da justiça vai chegar!
Em contraposição ao uso demagógico e oportunista da palavra “povo” por parte dos deputados federais, deixo um testemunho: domingo 17, dia da votação do impeachment, nas Comunidades da Paróquia Nossa Senhora da Terra (Região Noroeste de Goiânia), onde eu atuo pastoralmente, havia no meio do povo um clima de muita preocupação e, no rosto das pessoas, estava estampado um sentimento de decepção e tristeza. Isso é muito significativo! Pessoalmente, só pude assistir à última parte do “circo” da votação do impeachment, mas foi mais do que o suficiente para perceber claramente que se tratava de uma grande farsa.
Na conquista do 342º voto houve um profundo silêncio. Por volta das 23h, as ruas e avenidas do bairro Floresta e Jardim Curitiba III, onde eu passei de carro, estavam totalmente vazias. Parecia um clima de velório. Não houve nenhum sinal de manifestação ou euforia por parte do povo. Esse fato, por si só, fala muito mais do que todas as frases demagógicas de efeito dos deputados federais de Goiás e de todo o Brasil.
          Há uma diferença fundamental no uso da palavra “povo” entre os deputados federais e os que lutam por uma nova sociedade, que é a sociedade do bem viver ou - à luz da Fé - o Reino de Deus na história do ser humano e do mundo. Para os primeiros, o “povo” são as elites e os grupos de classe média que, para defender seus próprios interesses, se aliaram às elites e, nas manifestações públicas, costumam fazer muito barulho. Para os segundos, o “povo” são os pobres - os trabalhadores e trabalhadoras - que são a grande maioria, e seus aliados. Pensemos!
        Como diz o Papa Francisco, fazendo suas as palavras dos movimentos populares, “esse sistema não se aguenta mais. Temos que mudá-lo, temos que voltar a levar a dignidade humana para o centro, e que, sobre esse pilar, se construam as estruturas sociais alternativas de que precisamos” (1º Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Roma, 27-29/10/2014).
        Nas próximas eleições vamos banir da vida pública - de uma vez por todas - esse bando de políticos corruptos e traidores, que são capazes de vender até a própria mãe para defender seus interesses. Vamos votar em trabalhadores e trabalhadoras honestos, que não se vendem e que estão dispostos a colocar a prática política a serviço do bem comum. Chega de tanta maracutaia!

         Estamos no tempo pascal. Páscoa - para os cristãos e cristãs - é “passagem” para uma vida nova. Não temos direito - sobretudo os seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré - de perder a esperança. Cantemos: “Vitória, tu reinarás”! 




Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 20 de abril de 2016

“A Alegria do Amor”: sua profundidade humana



Na Exortação apostólica pós-sinodal sobre o amor na família “A Alegria do Amor” (“Amoris Laetitia” - AL) - datada de 19 de março (Solenidade de S. José) e divulgada no dia 8 deste mês de abril - o Papa Francisco recolhe os resultados de dois Sínodos sobre a família (outubro de 2014 e outubro de 2015), além de outras valiosas contribuições.
     O que caracteriza a Exortação é sua profundidade humana e sua abordagem libertadora. De um lado, Francisco apresenta com clareza e simplicidade de irmão o projeto de matrimônio e família de Jesus de Nazaré como um ideal de vida que liberta, humaniza e leva à felicidade: uma meta a ser perseguida. De outro lado, o Papa, com muita sensibilidade e ternura, sabe compreender e respeitar os casais e as famílias nas diferentes situações concretas em que se encontram, com seus limites, seus problemas e suas dificuldades. Sabe enxergar e valorizar os aspectos positivos que existem em todas as situações matrimoniais e familiares como sinais da graça e da presença de Deus.
      A meu ver, a Teologia Moral e Pastoral que perpassa toda a Exortação é a da Libertação, que é uma Teologia radicalmente humana e, por isso, cristã (evangélica). De fato, ser cristão ou cristã é ser radicalmente humano ou humana. Nunca alguém é humano ou humana demais. Mas como o ser humano faz parte do mundo e é mundo, faz parte da natureza e é natureza, podemos dizer que o cristianismo é um humanismo radical natural e, ao mesmo tempo, um naturalismo radical humano.
       Tendo consciência da historicidade do ser humano, o critério que sempre guiou as minhas reflexões sobre Ética filosófica (Ética à luz da razão) e Ética teológica (Ética à luz da razão iluminada pela Fé) foi esse: é ético (ou moral) o comportamento mais humano possível numa determinada situação concreta.
      Constato agora com alegria que é justamente esse o critério que guiou o Papa Francisco na elaboração da Exortação apostólica pós-sinodal: “A Alegria do Amor”
           Para o Papa Francisco a Ética (ou a Moral) matrimonial e familiar é uma Ética que - à luz da Palavra de Deus - parte da situação concreta em que se encontram os casais e as famílias. É o próprio Francisco que diz isso fazendo um resumo da Exortação.
No desenvolvimento do texto, começarei por uma abertura inspirada na Sagrada Escritura, que lhe dê o tom adequado. A partir disso, considerarei a situação atual das famílias, para manter os pés assentes na terra. Depois lembrarei alguns elementos essenciais da doutrina da Igreja sobre o matrimônio e a família, seguindo-se os dois capítulos centrais, dedicados ao amor. Em seguida destacarei alguns caminhos pastorais que nos levem a construir famílias sólidas e fecundas segundo o plano de Deus, e dedicarei um capítulo à educação dos filhos. Depois deter-me-ei sobre um convite à misericórdia e ao discernimento pastoral perante situações que não correspondem plenamente ao que o Senhor nos propõe; e, finalmente, traçarei breves linhas de espiritualidade familiar” (AL, 6).
E ainda: “Quero reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais. Naturalmente, na Igreja, é necessária uma unidade de doutrina e práxis, mas isto não impede que existam maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que decorrem dela. Assim há de acontecer até que o Espírito nos conduza à verdade completa (cf. Jo 16,13), isto é, quando nos introduzir perfeitamente no mistério de Cristo e pudermos ver tudo com o seu olhar. Além disso, em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais. De fato, ‘as culturas são muito diferentes entre si e cada princípio geral (...), se quiser ser observado e aplicado, precisa ser inculturado’” (AL, 3)
Refletindo sobre a vida matrimonial e familiar, precisamos sempre ter presente o critério da gradualidade. “Durante muito tempo - afirma Francisco - pensamos que, com a simples insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias, consolidávamos o vínculo dos esposos e enchíamos de sentido as suas vidas compartilhadas. Temos dificuldade em apresentar o matrimónio mais como um caminho dinâmico de crescimento e realização do que como um fardo a carregar a vida inteira. Também nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las” (AL, 37).
O Papa continua dizendo: “No mundo atual aprecia-se também o testemunho dos cônjuges que não se limitam a perdurar no tempo, mas continuam a sustentar um projeto comum e conservam o afeto. Isto abre a porta a uma pastoral positiva, acolhedora, que torna possível um aprofundamento gradual das exigências do Evangelho. No entanto, muitas vezes agimos na defensiva e gastamos as energias pastorais multiplicando os ataques ao mundo decadente, com pouca capacidade de propor e indicar caminhos de felicidade. Muitos não sentem a mensagem da Igreja sobre o matrimónio e a família como um reflexo claro da pregação e das atitudes de Jesus, o qual, ao mesmo tempo que propunha um ideal exigente, não perdia jamais a proximidade compassiva às pessoas frágeis como a samaritana ou a mulher adúltera” (AL, 38).
Na Exortação apostólica pós-sinodal, Francisco aplica à realidade do matrimônio e da família o ensinamento do Concílio Vaticano II: "O mistério do ser humano só se torna claro verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado. (…) Cristo manifesta plenamente o ser humano ao próprio ser humano e lhe descobre a sua altíssima vocação" (A Igreja no mundo de hoje - GS, 22). “O pecado diminui o ser humano, impedindo-o de atingir a sua plena realização” (GS, 13). "Todo aquele que segue Cristo, o Homem perfeito, torna-se ele também mais ser humano" (GS, 41). "A fé esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do ser humano. E por isso orienta a mente para soluções plenamente humanas" (GS, 11). Meditemos!
Oportunamente voltarei sobre o assunto, aprofundando os pontos principais da Exortação apostólica pós-sinodal: “A Alegria do Amor”.





Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 13 de abril de 2016

Misericórdia: amor que se faz vida

          No dia 8 de dezembro de 2015, solenidade da Imaculada Conceição, o Papa Francisco abriu o Jubileu Extraordinário da Misericórdia ou o Ano Santo da Misericórdia. “Escolhi - diz o Papa - a data de 8 de dezembro, porque é cheia de significado na história recente da Igreja. Com efeito, abrirei a Porta Santa no cinquentenário da conclusão do Concílio Ecumênico Vaticano II. A Igreja sente a necessidade de manter vivo aquele acontecimento” (O Rosto da Misericórdia - MV, 4).
         Diante da realidade eclesial de hoje, podemos perguntar-nos: será que a Igreja sente realmente a necessidade de manter vivo o Concílio Vaticano II e a Conferência de Medellín, que para nós é a encarnação do Concílio na América Latina e no Caribe?
Com o Concílio Vaticano II - continua Francisco - começava para a Igreja “um percurso novo de sua história. Os Padres, reunidos no Concílio, sentiram de maneira muito forte, como um verdadeiro sopro do Espírito, a exigência de falar de Deus aos homens de seu tempo de modo mais compreensível. Derrubadas as muralhas, que, por demasiado tempo, tinham encerrado a Igreja numa cidadela privilegiada, chegara o tempo de anunciar o Evangelho de maneira nova”. “A Igreja sentia a responsabilidade de ser, no mundo, o sinal vivo do amor do Pai” (ib.).
          Diante da realidade eclesial de hoje, podemos perguntar-nos novamente: será que a Igreja não tem a tentação de reconstruir as muralhas que a encerrem numa cidadela privilegiada? Meditemos!
          “O Ano Jubilar - anuncia Francisco - terminará na solenidade litúrgica de Jesus Cristo, Rei do Universo, 20 de novembro de 2016. Naquele dia, ao fechar a Porta Santa, animar-nos-ão, antes de tudo, sentimentos de gratidão e agradecimento à Santíssima Trindade por nos ter concedido este tempo extraordinário de graça. Confiaremos a vida da Igreja, a humanidade inteira e o universo imenso à Realeza de Cristo, para que derrame a sua misericórdia, como o orvalho da manhã, para a construção duma história fecunda com o compromisso de todos no futuro próximo”.
          Como um verdadeiro irmão, sensível aos desafios que o mundo de hoje apresenta, o Papa exclama: “Quanto desejo que os anos futuros sejam permeados de misericórdia para ir ao encontro de todas as pessoas levando-lhes a bondade e a ternura de Deus!”. Manifesta, pois, seu profundo desejo: “A todos, crentes e afastados, possa chegar o bálsamo da misericórdia como sinal do Reino de Deus já presente no meio de nós”.
         Mas, afinal, o que é misericórdia? “Misericórdia: é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade. Misericórdia: é o ato último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia: é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia: é o caminho que une Deus e o ser humano, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado (ib., 2).
         Segundo os ensinamentos da Palavra de Deus - que o Papa Francisco retoma de forma clara e objetiva - misericórdia é amor que se faz vida; é amor que se faz história; é amor que acontece em todas as dimensões e relações do ser humano com o mundo, com os outros e com Deus.
         Ser misericordioso/a é viver, cada vez mais, a radicalidade do humano no mundo, que é a radicalidade do amor. Viver, pois, a radicalidade do amor é estar presente, ser próximo, escutar, dialogar, partilhar, fazer a experiência do encontro, caminhar juntos como irmãos e irmãs e - unidos/as - lutar para fazer acontecer um novo projeto de sociedade e de mundo, que é a sociedade e o mundo do “bem-viver” e do “bem-conviver” ou, à luz da Fé, o Reino de Deus na história do ser humano e do mundo. “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36).
         “Deus é amor: quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus permanece nele” (1Jo 4,16). Ora, se Deus é amor, e o ser humano no mundo é criado à imagem e semelhança de Deus, ele também é amor.
         “A misericórdia de Deus - diz Francisco - não é uma ideia abstrata, mas uma realidade concreta, pela qual Ele revela o seu amor como o de um pai e de uma mãe que se comovem pelo próprio filho até ao mais íntimo das suas vísceras. É verdadeiramente o caso de dizer que se trata de um amor ‘visceral’. Provém do íntimo como um sentimento profundo, natural, feito de ternura e compaixão, de indulgência e perdão” (ib. 6)
         O Salmista lembra-nos sinais concretos da misericórdia de Deus: “O Senhor liberta os prisioneiros. O Senhor abre os olhos dos cegos. O Senhor endireita os encurvados. O Senhor ama os justos. O Senhor protege os estrangeiros, sustenta o órfão e a viúva, mas transtorna o caminho dos injustos” (Salmo 146, 7-9). “Eterna é a sua misericórdia”, ou seja, “o seu amor é para sempre”! (Salmo 136).
         “Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai”. Ele revela-nos “de modo definitivo o seu amor”. “Com a sua palavra, os seus gestos e toda sua pessoa, Jesus de Nazaré revela a misericórdia de Deus” (ib., 1).
         “Com o olhar fixo em Jesus e no seu rosto misericordioso, podemos individuar o amor da Santíssima Trindade”. “Este amor tornou-se visível e palpável em toda a vida de Jesus. A sua pessoa não é senão amor, um amor que se dá gratuitamente” (ib.,8). “Jesus, que tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1).
         “A Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa”. “O tema da misericórdia exige ser reproposto com novo entusiasmo e uma ação pastoral renovada”. “A primeira verdade da Igreja é o amor de Cristo”. “Onde a Igreja estiver presente, aí deve ser evidente a misericórdia do Pai” (ib., 12).

         Que todos e todas nós sejamos com o nosso testemunho - no mundo e na sociedade de hoje - sinal visível e eficaz da misericórdia de Deus: amor que se faz vida.


Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 06 de abril de 2016

sábado, 9 de abril de 2016

Pensando em voz alta


            Sem nenhuma pretensão e pensando em voz alta, faço algumas reflexões sobre a crise política atual no Brasil.
Infelizmente, estamos assistindo de camarote a um espetáculo circense deprimente, que dá nojo. É difícil acreditar que em pleno século XXI exista na prática política tanta barganha, tanto oportunismo e tanta sem-vergonhice! Tudo é permitido, tudo é natural. Bobo é quem não aproveita a oportunidade de seu mandato político ou cargo público - que deveria estar a serviço do bem de todos e de todas - para defender seus interesses pessoais e para enriquecer a si e a seus familiares com a prática da propina, da corrupção e do desvio de dinheiro público, que muitas vezes é um roubo legalizado.
Hoje no Brasil temos: de um lado, o grupo político - cuja prática conhecemos há tempos - dos que sempre defenderam o projeto capitalista neoliberal (partidos da direita, liderados pelo PSDB), que perderam as últimas eleições presidenciais e querem descaradamente (com qualquer meio e a qualquer custo) retomar o poder; de outro lado, o grupo político - cuja prática pensávamos fosse diferente - dos que estão atualmente no governo federal (partidos da “chamada” esquerda, liderados pelo PT), que - apesar de ter suscitado tantas esperanças nos trabalhadores e trabalhadoras e nos pobres em geral - para ganhar o poder (também com qualquer meio e a qualquer custo) traíram o povo, venderam-se e aliaram-se a uma parte do outro grupo político que sempre dominou a política brasileira.
O grupo político do PT e seus aliados tornou-se de fato o gestor do sistema capitalista neoliberal que, “reformado” e “maquiado”, foi chamado de neodesenvolvimentismo: uma grande ilusão.
Não existe (como dizem alguns) o perigo da volta ao projeto do neoliberalismo. Ele está aí. Nunca saiu. Os governos do PT e seus aliados não conferiram (como dizem outros) centralidade aos pobres e aos marginalizados, defendendo uma prática política realmente integradora dos excluídos e das excluídas.
Na realidade, esses governos não fizeram nada ou quase nada a respeito da reforma agrária popular e deram total apoio ao agronegócio. Não fizeram nada ou quase nada a respeito das políticas públicas em favor da organização dos trabalhadores e trabalhadoras, dos movimentos populares e de sua luta por um projeto político de sociedade e de mundo estruturalmente novo. Ao contrário, procuraram cooptar e, muitas vezes, criminalizar os trabalhadores e trabalhadoras e os movimentos populares. A respeito do ajuste fiscal, esses governos - apesar da pressão da sociedade organizada para que isso fosse feito - nunca taxaram as grandes fortunas e os custos do ajuste recaem sempre em cima dos trabalhadores e trabalhadoras, reduzindo ou cortando benefícios conquistados a duras penas e com muita luta.
A política econômica dos governos do PT e seus aliados sempre foi e - mesmo em crise - continua sendo voltada para a defesa dos interesses do sistema dominante, que é o sistema capitalista neoliberal, “reformado” e “maquiado” de neodesenvolvimentismo. Nesses governos - só para citar um exemplo - os banqueiros tiveram e ainda têm os maiores lucros de toda sua história.
Ao povo são oferecidas somente as migalhas dos programas sociais, como Bolsa Família e outros, que tiram, ao menos provisoriamente, muitas pessoas da miséria dando condições de uma vida minimamente digna, mas que, ao mesmo tempo, servem para desarticular os movimentos populares, amortecer a luta política, e manter o povo submisso (sem perigo de revoltas) aos detentores do poder econômico.
Giovanni Alves, doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e professor da Unesp, afirma: “Como herdeiro político capaz de dar prosseguimento ao projeto burguês de desenvolvimento no Brasil, o PT qualificou-se nos últimos vinte anos, pelo menos desde a sua derrota política e eleitoral em 1989, como partido da ordem burguesa no Brasil. Com a argúcia política de Lula, construiu alianças com os donos do poder oligárquico, visando não apenas a governabilidade (capitalista, é claro!), mas a afirmação hegemônica do projeto social neodesenvolvimentista no Brasil”.
E ainda: “Sob fogo cruzado da direita oligárquica, rançosa e golpista, o PT e seus aliados políticos aparecem hoje como gestores do capitalismo organizado no pais, a serviço do grande capital monopolista privado nacional. Na medida em que se colocou como legatário da ordem burguesa o PT, em si e para si, tornou-se incapaz por si só, diga-se de passagem, de suprimir o DNA inscrito no ‘código genético’ do capitalismo brasileiro: hipertardio, portanto carente de modernização; dependente, portanto integrado aos interesses do capital financeiro internacional, perseguindo, no limite, um ‘lugar ao sol’ na decrépita ordem burguesa hegemônica; de extração colonial-prussiana e viés escravista, portanto, carente de valores democráticos e republicanos tendo um metabolismo social do trabalho baseado visceralmente na superexploração da força de trabalho - é o que explica, por exemplo, que, apesar do neodesenvolvimentismo e a curta fase áurea do lulismo, os salários brasileiros hoje continuam baixos. Apesar de o país ter criado cerca de 19 milhões de empregos formais, a maioria absoluta dos novos empregos criados nos últimos dez anos tem salários de até um e meio salário mínimo” (http://blogdaboitempo.com.br/2013/05/20/neodesenvolvimentismo-e-precarizacao-do-trabalho-no-brasil-parte-i/).
Não posso terminar as minhas reflexões sem comentar um fato - em si de pouca importância, mas muito revelador - que me deixou estarrecido e, ao mesmo tempo, profundamente indignado. Trata-se das conferências de Lula, contratadas por grandes empresas e instituições. Com base no que cobra o ex-presidente norte-americano Bill Clinton (que belo exemplo a ser seguido por um ex-trabalhador!), a tarifa fixa por cada conferência é de US$ 200 mil (cerca de R$ 730 mil). Certamente Lula não vai falar às empresas multinacionais e às instituições financeiras - pedindo seu apoio - da importância da organização e da luta dos trabalhadores e trabalhadoras para mudar o sistema capitalista neoliberal! Que traição!
(Leia também na internet o meu artigo: “Lula, o palestrante de luxo dos banqueiros e das multinacionais”, maio 2011).
Companheiro Lula (não sei se ainda posso chama-lo de “companheiro”!) - ex-presidente, ex-trabalhador, ex-sindicalista, ex-tudo - por que você (que não precisa de dinheiro para viver) não faz conferências de graça, como voluntário, para os sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras e para os movimentos populares, colocando a experiência política que adquiriu nesses anos a serviço de sua organização e de sua luta? É isso que você deveria fazer, se tivesse um mínimo de coerência!
Infelizmente, tudo indica que você Lula se lambuzou com o poder (que subiu à sua cabeça), ficou totalmente obcecado por ele e traiu os trabalhadores e trabalhadoras. Passou de corpo e alma para o outro lado, inclusive dizendo nesses dias, com ironia e cinismo, que desistiu do tríplex de 215 metros quadrados no litoral paulista por ser - pelo seu tamanho pequeno - um tríplex “Minha Casa, Minha Vida”. Que vergonha, Lula!
Enfim, apesar de tudo o que está acontecendo, diante da crise política atual - para defender e ampliar os espaços de democracia direta e indireta que temos (na realidade a nossa democracia é mais uma oligarquia do que uma democracia) - precisamos combater, com urgência e firmeza, a ameaça de golpe “midiático, judicial e parlamentar” (como se expressa um grupo de Jornalistas em documento público) - que se pretende fazer passar com o nome de impeachment - ou qualquer outra ameaça de golpe. Precisamos também, sempre com urgência e firmeza, combater toda prática política corrupta, venha de onde vier, processando, julgando e condenando seus responsáveis.
São medidas inadiáveis, embora saibamos que a corrupção é um problema endêmico e faz parte do próprio sistema.  Como diz o Papa Francisco, “o sistema social e econômico é injusto em sua raiz”, é “um mal embrenhado nas estruturas” (A Alegria do Evangelho - EG, 53 e 59) e precisa ser mudado.

Em nome de nossa consciência cidadã e - para nós cristãos e cristãs - em nome também de nossa Fé, vamos à luta! Uma outra prática política é possível e necessária!



Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 30 de março de 2016

CFE 2016 e sustentabilidade (3ª e última parte)


        Vimos que o sistema capitalista neoliberal é insustentável e que sua insustentabilidade é estrutural. A Campanha da Fraternidade Ecumênica 2016 (CFE 2016) - cujo tema é “Casa comum, nossa responsabilidade” - faz-nos acreditar que uma “outra sustentabilidade” ou um “outro desenvolvimento sustentável” é possível e necessário. Esse outro desenvolvimento sustentável é construído por todos aqueles e aquelas que lutam para mudar o sistema capitalista neoliberal, abrindo caminhos alternativos e fazendo acontecer um projeto estruturalmente novo de sociedade e de mundo, ou seja, um projeto baseado em relações de igualdade, de justiça, de solidariedade e de irmandade. Como já disse outras vezes, é o projeto da sociedade do “bem viver”, que - à luz da Fé - é o projeto de Jesus de Nazaré: o Reino de Deus acontecendo na história do ser humano e do mundo.
A respeito do sistema dominante - que é o sistema capitalista neoliberal - o Papa Francisco afirma: “Esse sistema não se aguenta mais. Temos que mudá-lo, temos que voltar a colocar a dignidade humana no centro, e que, sobre esse alicerce, se construam as estruturas sociais alternativas de que precisamos” (1º EMMP. Roma, 27-29/10/14).
            Esse sistema é o “estado de mal-estar social” ou a causa última de todos os males sociais e ambientais (http://laurocampos.org.br/2015/01/neoliberalismo-estado-de-mal-estar-social).
            Em linguagem teológico-moral, ele é hoje a concretização histórica do pecado social e ambiental ou pecado estrutural. Não podemos esquecer essa realidade.
No sistema capitalista neoliberal - por ser um “sistema econômico iniquo” (Documento de Aparecida - DA, 385) - a corrupção, a violência, a injustiça, a desumanidade e a imoralidade são constitutivas da própria estrutura do sistema e consideradas naturais.
            As práticas pontuais de corrupção, de violência, de injustiça, de desumanidade e de imoralidade, que - quando descobertas - são denunciadas na mídia, provocam hipocritamente grandes escândalos. Na verdade - mesmo reconhecendo a responsabilidade das pessoas e dos grupos envolvidos - elas são simples reflexos de uma iniquidade estrutural muito mais profunda, que é a iniquidade do sistema.
O papa afirma categoricamente que “o sistema social e econômico é injusto em sua raiz” e “um mal embrenhado nas estruturas”. E declara: “devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade social’. Essa economia mata”. “Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, em que o poderoso engole o mais fraco”. “O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do ‘descartável’, que, aliás, chega a ser promovida”. “Os excluídos e excluídas não são ‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras’” (A Alegria do Evangelho - EG, 53 e 59).
O nosso irmão o Papa Francisco lembra-nos também que “a necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar”. “Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais”.
E diz ainda: “A dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política econômica, mas às vezes parecem somente apêndices adicionados de fora para completar um discurso político sem perspectivas nem programas de verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas palavras se tornaram molestas para este sistema! Molesta que se fale de ética, molesta que se fale de solidariedade mundial, molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta que se fale de defender os postos de trabalho, molesta que se fale da dignidade dos fracos, molesta que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da justiça. Outras vezes acontece que estas palavras se tornam objeto duma manipulação oportunista que as desonra. A cômoda indiferença diante destas questões esvazia a nossa vida e as nossas palavras de todo significado” (EG, 202-203).
            Os protestos dos Movimentos Populares e do povo em geral - sem deixar de denunciar e combater as práticas pontuais de corrupção (como a da Petrobras e outras), que são reflexos de um sistema estruturalmente corrupto - devem ter como foco principal o próprio sistema e apontar caminhos novos que levem a uma mudança de estruturas.
“A economia - continua o Papa Francisco - não deveria ser um mecanismo de acumulação, mas a condigna administração da casa comum. Isto implica cuidar zelosamente da casa e distribuir adequadamente os bens entre todos”.
            “A nossa casa comum pode comparar-se ora a uma Irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa Mãe, que nos acolhe nos seus braços”. Esta Irmã, a Mãe Terra, “clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Crescemos pensando que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la. A violência, que está no coração humano ferido pelo pecado, vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que ‘geme e sofre as dores do parto’ (Rm 8,22). Esquecemo-nos de que nós mesmos somos terra (cf. Gn 2,7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos”.
            Em síntese, o Papa Francisco, de um lado, fala que a economia do sistema dominante - que é o sistema capitalista neoliberal - é uma “economia de exclusão e desigualdade”, uma “economia idólatra”; uma economia que “mata”, que “exclui” e que “destrói a Mãe Terra”, e nos pede para dizer “não” a essa economia. De outro lado, com o coração aberto e cheio de esperança, fala de uma “economia popular que surge da exclusão e que pouco a pouco, com esforço e paciência, adota formas solidárias que a dignificam”; de uma “economia popular e produção comunitária”; de uma “economia verdadeiramente comunitária”; de uma “economia de inspiração cristã”; de uma “economia justa”; de uma “economia a serviço das pessoas” (2º EMMP. Santa Cruz de la Sierra - Bolívia, 7-9/07/15).
            È somente nessa economia popular e comunitária que é possível uma outra sustentabilidade ou um outro desenvolvimento sustentável, autêntico e integral.
Infelizmente, os partidos políticos que nestes últimos anos governaram e ainda governam o Brasil - inclusive o PT que foi uma decepção para os trabalhadores e as trabalhadoras - “são partidos ‘gestores’ e ‘administradores’ do sistema que temos”.
O PT introduziu no governo como inovação “o sistema de Bolsas e outras iniciativas que levaram à significativa e histórica inclusão social”. (Daniel Aarão Reis Filho. Entrevista: “A corrupção no Brasil é ampla, geral e irrestrita”. Diário da Manhã, 13/03/2016, p. 13). Não foi, porém, capaz, ou melhor, não quis (por ter-se comprometido - antes de ganhar as eleições - com o sistema capitalista neoliberal dominante) realizar mudanças estruturais significativas no Brasil, que permanece um país profundamente desigual e injusto.
O discurso de uma “outra sustentabilidade” ou de um “outro desenvolvimento sustentável”, possível e necessário, deve levar à “mudança” do sistema capitalista neoliberal no Brasil e no mundo. E é essa mudança que o Papa Francisco aponta.

            Que a CFE 2016 nos conscientize, nos eduque e nos comprometa com essa mudança! Páscoa - para os cristãos e cristãs - é “passagem” para uma vida nova. E é essa “passagem” que desejo a todos os leitores e leitoras. Feliz “passagem”! Feliz Páscoa!




Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 22 de março de 2016