sábado, 3 de junho de 2017

Dom Fernando, pastor-profeta: um “Pai da Pátria Grande”

Fiquei feliz - embora surpreso - com a boa notícia do dia 23 de maio último, a respeito de Dom Fernando Gomes dos Santos: “A PUC Goiás e a Universidade Internacional da Flórida participam de projeto do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM) que vai recontar a trajetória de religiosos que tiveram impacto na sociedade. Em Goiás, o escolhido é Dom Fernando Gomes, arcebispo da Arquidiocese de Goiânia de 1957 a 1985. Os pesquisadores Janira Sodré Miranda e Antônio César Caldas Pinheiro conduzirão o trabalho, que comporá o volume especial ‘Trajetórias pastorais - Histórias dos Pais da Pátria Grande’. O lançamento está previsto para setembro de 2018, data dos 50 anos da 2ª Conferência dos Bispos Latino-americanos na cidade de Medellín, Colômbia” (O Popular, 25/05/17, p. 6).
Dom Fernando é realmente um “Pai da Pátria Grande”! Sua história precisa ser redescoberta e recontada, com toda fidelidade e amor à verdade. “A verdade vos libertará!” (Jo 8, 32). É uma história paradigmática para a Igreja pós-conciliar em Goiás, no Brasil e na América Latina.
No dia 1º de junho do corrente ano completam 32 anos da Páscoa definitiva de Dom Fernando. Aproveito a data para retomar - por ser sempre atual - o que escrevi há 7 anos.
Por ter tido a felicidade - dizia à época - de ser amigo e colaborador direto de Dom Fernando Gomes dos Santos como Coordenador da Pastoral e Vigário Geral da Arquidiocese de Goiânia (também Vice-Presidente da Sociedade Goiana de Cultura, Mantenedora da UCG), não posso deixar passar o ano do seu centenário de nascimento sem dar publicamente o meu testemunho.
Por ocasião de sua morte, ou, melhor dizendo, do dia em que "completou sua Páscoa", falei que Dom Fernando foi "um Pastor-Profeta dos nossos tempos", "fiel à Palavra de Deus e fiel aos apelos da realidade" (cf. Revista da Arquidiocese. Goiânia, ano 28, n. 6/7, junho/julho 1985, p. 393 e 426-427).
Dom Fernando tinha uma personalidade forte, mas um coração muito grande. Era uma figura de extraordinária profundidade humana; sabia compreender, com amor de pai e ternura de mãe, as fraquezas do ser humano; ele foi sempre um irmão solidário de todos/as, especialmente dos mais pobres.
No depoimento, que ele deu à Revista Eclesiástica Brasileira (REB), poucos meses antes de sua Páscoa definitiva, depois de falar da ação pastoral do Secretariado da Pastoral Arquidiocesana (SPAR), diz que ela "se complementa naturalmente no gabinete do arcebispo, sempre aberto a ouvir a todos, a qualquer hora. Nesses encontros - em sua maior parte com pessoas pobres, marginalizadas e oprimidas - tem acontecido que, além das palavras de estímulo, recebam, alguma vez, o sacramento da Penitência, sem que ninguém saiba ou perceba. Transforma-se, assim, em lugar privilegiado de reconciliação e de perdão" (REB, março de 1985).
Quando, por causa de sua tomada de posição clara, destemida e firme em defesa do povo, o acusavam de ser contra o Governo, Dom Fernando dizia: “eu sou a favor do povo; quando o Governo estiver a favor do povo, eu estarei com ele, quando estiver contra o povo, eu estarei contra ele".
Dom Fernando nunca foi um homem bajulador e oportunista, como é bastante comum acontecer, mesmo em ambientes de igreja. Por ser sempre um homem reto, coerente e franco, ele não conseguia entender e não tolerava, de forma alguma, a traição, que na realidade é um comportamento covarde e mesquinho. Percebendo que uma pessoa, em quem ele tinha confiado, o traia, sofria calado, mas perdia completamente a confiança. Quando, porém, confiava em alguém, sua confiança era total e irrestrita.
Como tive a graça de conviver com Dom Fernando e ser, pela afinidade que tínhamos, pessoa da sua confiança, quando alguém o procurava para tratar de um assunto que podia ser resolvido no Secretariado da Pastoral Arquidiocesana (SPAR), o ouvi diversas vezes dizer: "isso é com Frei Marcos". Dom Fernando - sobretudo depois do Concílio Vaticano II - era um homem que acreditava na "Igreja dos Pobres" e vivia a comunhão e participação, numa Igreja toda ela ministerial. Por isso, partilhava com os Padres, as Religiosas e os Agentes pastorais leigos/as a responsabilidade do pastoreio.
Embora tenha consciência que não é mérito meu, mas dom de Deus, honra-me muito o reconhecimento de Dom Fernando a respeito do SPAR, no depoimento já citado: "O SPAR tem sido o grande centro de convergência e de irradiação de tudo o que se passa na Arquidiocese no campo pastoral. Dotado de sede própria, que integra o conjunto Catedral-Cúria Metropolitana-SPAR, no centro da cidade, constitui o ponto mais dinâmico da Arquidiocese. Hoje o SPAR conta com o coordenador da Pastoral, Frei Marcos Sassatelli, que é também vigário geral, e com uma extraordinária equipe de sacerdotes, religiosas e leigos competentes, de rara dedicação e eficiência. No SPAR, funcionam oito Comissões que dinamizam as atividades fundamentais, referentes às prioridades do Plano Pastoral, elaborado em Assembleia Arquidiocesana e constantemente estudado nas reuniões e encontros. O SPAR produz, também, grande número de boletins e impressos, que são divulgados nas paróquias da Arquidiocese, principalmente nas comunidades da periferia, e que são encomendados por outras Igrejas particulares do Brasil afora. Grande é também o número de cursos ministrados nas comunidades da capital e do interior" (REB, ib.).
Como todo ser humano, Dom Fernando tinha também suas limitações e seus defeitos, mas era um homem de uma só palavra, um homem íntegro, um homem "sem violência e sem medo". Com inabalável fidelidade, amava muito a Mãe Igreja, mesmo, às vezes, sofrendo profunda e silenciosamente por causa das incompreensões de irmãos da própria Igreja.
No seu Testamento, Dom Fernando confessa: "Não obstante as minhas deficiências, fraquezas e falhas, sempre me consagrei com tudo o que sou e com tudo o de que dispus, à Santa Igreja e ao sagrado ministério" (O Testamento de Dom Fernando. Revista da Arquidiocese. Goiânia, ano 28, n. 6/7, junho/julho 1985, p. 356).
Dom Fernando, como "pastor-profeta dos nossos tempos" e como "defensor e advogado do Povo" (capa da REB de março de 1985), era também implacável na denúncia e na luta contra as injustiças sociais. Era respeitado e temido pelos poderosos, sobretudo nos tempos difíceis da ditadura civil e militar. Só para citar um exemplo, foi a coragem de Dom Fernando que impediu a expulsão de Dom Pedro Casaldáliga do Brasil.
Dom Fernando, como homem "fiel à Palavra de Deus e fiel aos apelos da realidade", viveu intensamente os ensinamentos do Concílio Vaticano II.
"Como Cristo, por sua Encarnação ligou-se às condições sociais e culturais dos seres humanos com quem conviveu; assim também deve a Igreja inserir-se nas sociedades, para que a todas possa oferecer o mistério da salvação e a vida trazida por Deus” (Concílio Vaticano II. A atividade missionária da Igreja - AG, 10).
"Para desempenhar sua missão, a Igreja, a todo momento, tem o dever de perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal modo que possa responder, de maneira adaptada a cada geração, às interrogações eternas sobre os significados da vida presente e futura e de suas relações mútuas. É necessário, por conseguinte, conhecer e entender o mundo no qual vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole frequentemente dramática" (Concílio Vaticano II, A Igreja no mundo de hoje - GS, 4).
À época (e retomo agora) terminava o meu testemunho dizendo: Que a memória do legado do primeiro arcebispo da Arquidiocese de Goiânia, Dom Fernando Gomes dos Santos, no centenário do seu nascimento e nos 25 anos de sua Páscoa definitiva (hoje, já são 32 anos), sirva-nos de estímulo para que sejamos, sempre mais, uma Igreja evangélica, uma Igreja pobre e uma Igreja comprometida com a Boa Notícia do Reino de Deus no mundo de hoje (Cf.Diário da Manhã, Opinião Pública, Goiânia, 23/12/10, p. 17. Veja também:
http://freimarcos.blogspot.com.br/2010/12/dom-fernando-pastor-profeta.html). 




 Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 01 de junho de 2017

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