Vimos - no segundo artigo da série - que vários teólogos, inspirados pelo
Concílio Ecumênico Vaticano II, sugeriram que fosse repensada a estrutura social da Igreja e
reelaborada toda a Teologia dos
Ministérios (Serviços) a partir do binômio Comunidade - Carismas e Ministérios, que é a perspectiva do Novo
Testamento, e não do binômio Hierarquia - Laicato (cf. CNBB. Missão e
Ministérios dos Cristãos Leigos e Leigas, 62 - 1999).
Lamentavelmente, em Documento de 17 anos depois sobre o mesmo tema, a nossa Igreja “desconhece” e “desconsidera” a parte do Documento acima citado, que abre caminhos novos. Ao invés de retomá-la e
aprofundá-la, ela reafirma o binômio “Hierarquia - Laicato”: uma Igreja de duas
classes (na realidade, três: Hierarquia, Vida Religiosa Consagrada e Laicato), que
não tem nenhum fundamento bíblico (cf. CNBB. Cristãos Leigos e Leigas na Igreja
e na Sociedade, 105 - 2016). Ora, numa sociedade e numa Igreja de classes - ainda
mais, patriarcal - não há verdadeira democracia. Falar em democracia é
hipocrisia.
A democracia (demokratía:
demos = povo + kratos = poder), direta e/ou indireta, é o regime
político em que a soberania é exercida pelo povo. “A democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo” (Abraham Lincoln. Discurso de
Gettysburg, 1863). Portanto, só
um governo popular é realmente democrático e socialista (no verdadeiro
sentido da palavra e não no sentido do “socialismo real” = “capitalismo de
estado”).
Hoje, “multiplicam-se sem cessar as relações do ser humano com os
seus semelhantes, ao mesmo tempo que a própria
socialização introduz novas
ligações, sem, no entanto, favorecer em todos os casos uma conveniente maturação das pessoas
e relações verdadeiramente pessoais: personalização”
(Concílio Vaticano II. A Igreja no mundo de hoje, 6). “Socialização” e “personalização”
devem caminhar sempre juntas.
O governo do Brasil e da maioria dos países que se dizem democráticos,
na realidade não são democracias,
mas oligarquias ("oligarkhía"
= governo de poucos), ou - permitam-me um neologismo - “elitocracias”. São governos da elite econômica, ou seja, do grupo de capitalistas que detém o
poder econômico: os donos das grandes empresas multinacionais e nacionais.
Trata-se da dominação do poder
econômico (o “deus dinheiro”), que se mantém e fortalece por meio da dominação ideológica. Por ela, o
dominador (o opressor) hospeda-se “agradavelmente” na cabeça do dominado (o
oprimido), de tal forma que este pensa e age com a cabeça do dominador.
Daí a importância do “trabalho
de base” nos Movimentos Populares, nos Sindicatos de Trabalhadores e
Trabalhadoras e nas Comunidades para que o dominado se liberte do dominador e
tome consciência do seu valor como sujeito de sua própria história.
Infelizmente, no Brasil e também em outros países, a nossa Igreja Instituição (falo aqui da Igreja Católica) se
adaptou e absorveu, ao menos em parte, o jeito
de ser do capitalismo, como nos períodos colonial e imperial, se adaptou e
absorveu, ao menos em parte, o jeito de
ser do escravismo (escravidão).
Na época do escravismo, a Igreja Instituição ensinava que a virtude do
dono (proprietário) de escravos era a benevolência
e a virtude do escravo, a submissão.
Ela condenava os excessos (os exageros, os maus-tratos) praticados contra os
escravos e escravas, mas não condenava o escravismo como tal, ou seja, a estrutura escravista como sendo desumana, antiética e anticristã, mesmo
que os escravos e escravas fossem “bem tratados”. Com esse comportamento, a
Igreja legitimava a situação social vigente.
Hoje, essa mesma Igreja Instituição
condena os excessos do capitalismo praticados contra os trabalhadores e
trabalhadoras, mas não condena o capitalismo como tal, ou seja, a estrutura capitalista como sendo desumana, antiética e anticristã, mesmo
que os trabalhadores e trabalhadoras, sejam “bem-tratados”. Com esse comportamento
a Igreja legitima, mais uma vez, a situação social vigente.
É necessário, porém, ressaltar que no Brasil, tanto na época do
escravismo, como hoje em pleno capitalismo ultraneoliberal, sempre existiram,
existem e existirão profetas e
profetisas, que conscientemente denunciavam, denunciam e denunciarão o
escravismo e o capitalismo como sendo regimes políticos desumanos, antiéticos e
anticristãos (mesmo que em graus diferentes).
Por fim, se a Igreja ensina - como de fato faz - que a democracia é um valor humano e cristão (radicalmente
humano), ela deveria ser um exemplo de
Instituição democrática; mais democrática que as outras Instituições, ou
melhor, radicalmente democrática. Por
que, na prática, isso não acontece?
Termino com as palavras do Concílio Ecumênico Vaticano II: “Não há
realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no coração da
Igreja” (A Igreja no mundo de hoje - GS, 1). Ah, se isso fosse sempre verdade!
Continuemos sonhando e lutando para que o nosso sonho se torne um dia
realidade.
Oliveira Advocacia - Montes Claros e Região
Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor
em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor
aposentado de Filosofia da UFG
E-mail:
mpsassatelli@uol.com.br
Goiânia, 14 de janeiro de 2022
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