sexta-feira, 29 de abril de 2022

A questão da “radicalidade” na Igreja

 

Todo cristão ou cristã é chamado ou chamada a ser radicalmente ser humano. Ora, enquanto estamos no mundo - no tempo e no espaço - podemos crescer sempre na vivência do humano. Nunca serenos humanos ou humanas demais, nunca exageraremos em ser humanos ou humanas.

"Todo aquele que segue Cristo, o Homem perfeito, torna-se ele também mais ser humano" (GS 41). "A fé esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do ser humano. E, por isso, orienta a mente para soluções plenamente humanas" (GS 11).

No seguimento de Jesus de Nazaré, a radicalidade humana pode ser vivida de muitas maneiras, conforme os carismas (dons) e ministérios (serviços) de cada um e de cada uma.

Em nossa Igreja Católica, um dos caminhos para viver essa radicalidade é a chamada “Vida Religiosa Consagrada”: “Religiosos” - que em sua maioria são também Ministros ordenados - e “Religiosas” das diversas Ordens, Congregações e Institutos.  

Permito-me, agora, fazer alguns questionamentos a respeito dessa terminologia comumente aceita.

Os que, “Religiosos” e “Religiosas”, pertencemos à chamada “Vida Religiosa Consagrada”, não temos o direito de nos apropriar dessas palavras.

Todo ser humano que pratica uma religião é “religioso ou religiosa”, ou seja, tem “vida religiosa”. E ainda: todo cristão ou cristã, batizado ou batizada é “consagrado” ou “consagrada”, ou seja, tem “vida religiosa consagrada”. Aliás, nós ensinamos que o Batismo é a consagração fundamental, que nos torna seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré, continuadores e continuadoras de sua missão no mundo.

Lamentavelmente (como já disse em outras ocasiões), no decorrer da história, criamos uma Igreja com estrutura social de três classes: Hierarquia, Vida Religiosa Consagrada e Laicato.

Precisamos voltar ao Evangelho e acabar com as classes para sermos uma Igreja somente de irmãos e irmãs, como eram as primeiras Comunidades cristãs.

Com isso, não quero dizer que devemos uniformizar tudo. Ao contrário! É justamente numa Igreja de irmãos e irmãs que temos condições de apreciar o valor e a beleza da imensa variedade e diversidade dos carismas (dons) e dos ministérios (serviços), que o Espírito Santo (o Deus Amor) suscita na Igreja. Um dos carismas - que devemos valorizar -  é justamente a Vida Cristã de Particular Consagração”, em resposta a um chamado pessoal de Deus (o novo nome que sugiro para a chamada “Vida Religiosa Consagrada”). Esse “carisma” é um caminho - entre outros - para viver a radicalidade da consagração batismal: “projeto de vida cristã radical”. Ele se desdobra em dois carismas: um comum à toda “Vida Cristã de Particular Consagração” e outro próprio de cada Ordem, Congregação ou Instituto.

Na Igreja, o “projeto de vida cristã radical” pode ser assumido publicamente ou em caráter particular, mas sempre na comunhão eclesial.

Acredito que - se formos uma Igreja de irmãos e irmãs realmente comprometida com o Projeto de Jesus no mundo de hoje, que é o seu Reino, Deus suscitará novas formas de “Vida Cristã de Particular Consagração” e muitas pessoas - das mais diversas formas - farão a experiência do chamado de Deus para viverem o “projeto de vida cristã radical”, por amor aos irmãos e às irmãs a partir dos Pobres.

Considerando a nossa realidade sócio-econômico-político-ecológico-cultural-religiosa, Deus poderá, por exemplo, chamar trabalhadores e trabalhadoras para seguirem mais de perto Jesus de Nazaré - que também foi trabalhador (carpinteiro) - assumindo o “projeto de vida cristã radical” a serviço dos companheiros e companheiras:  nos Movimentos Sociais Populares, nos Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras, nos Partidos Políticos Populares e nos Comitês ou Fóruns de Defesa dos Direitos Humanos e da Irmã Mãe Terra Nossa Casa Comum.

Esses Trabalhadores e Trabalhadoras continuarão vivendo com seus familiares ou - se for por opção deles e delas - em pequenos grupos de base (grupos de vivência). Pessoalmente peço a Deus que nos dê essa graça. Na Igreja e na sociedade atual precisamos muito disso.

Por fim, se ser cristão ou cristã é ser radicalmente ser humano, ser radicalmente cristão ou cristã (vivendo o “projeto de vida cristã radical”) é ser radicalmente ser humano em dobro, com tudo o que isso significa.

“Deus é Amor. Todo aquele/aquela que permanece no Amor permanece em Deus, e Deus nele/nela” (1 Jo 4,16).

Estamos no tempo pascal. Que a Páscoa seja para nós cristãos e cristãs uma realidade de todo dia: Passagem para uma vida de amor sempre mais radical. São estes os meus votos a todos os irmãos e irmãs de caminhada.


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Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 24 de abril de 2022



domingo, 3 de abril de 2022

Pessoas humanas não se despejam

 


“Por um Brasil sem despejos” Como foi amplamente divulgado nas redes sociais, a luta contra os despejos no Brasil continua!

“A suspensão dos despejos, prorrogada pela última vez em dezembro e com validade até 31 de março, se deu no âmbito da ADPF 828 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), impetrada pelo PSOL, o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e outras entidades da sociedade civil”.

Na noite de terça-feira passada, 29 de março, “representantes de Movimentos Sociais Populares, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e 13 parlamentares do PSOL, PCdoB e PT fizeram uma audiência com o ministro Barroso em Brasília.  Foram apresentados, com base em dados da Campanha Despejo Zero e da Abrasco sobre a vigência da pandemia, a urgência de que a liminar seja prorrogada, bem como o impacto humanitário caso aconteçam os despejos em massa no país”.  

Ante o exposto, o Ministro Luís Roberto Barroso tomou a seguinte decisão: “Defiro parcialmente o pedido de medida cautelar incidental, nos seguintes termos:

   1. Mantenho a extensão, para as áreas rurais, da suspensão temporária de desocupações e despejos, de acordo com os critérios previstos na Lei nº 14.216/2021, até o prazo de 30 de junho de 2022;

   2. Faço apelo ao legislador, a fim de que delibere sobre meios que possam minimizar os impactos habitacionais e humanitários eventualmente decorrentes de reintegrações de posse após esgotado o prazo de prorrogação concedido;

    3. Concedo parcialmente a medida cautelar, a fim de que os direitos assegurados pela Lei nº 14.216/2021, para as áreas urbanas e rurais, sigam vigentes até 30 de junho de 2022. Brasília, 30 de março de 2022”.

Caso a liminar - a ADPF 828 - não tivesse sido prorrogada, mais de 132 mil famílias, ou seja, cerca de meio milhão de pessoas poderiam ser “despejadas” à força de suas moradias, no campo e na cidade.

A prorrogação da suspensão dos despejos até 30 de junho de 2022 é uma vitória, embora pequena,

  • das moradoras e moradores das Ocupações com suas lideranças, verdadeiras heroínas e heróis, que lutam pelo direito sagrado à moradia digna;
  • dos Movimentos Sociais Populares, que com sua presença militante apoiam e acompanham a luta por moradia digna: o Movimento de Trabalhadoras/es por Direitos (MTD), o Movimento de Trabalhadoras/es Sem Teto (MTST), o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), o Movimento Nacional da População em situação de Rua (MNPR) e outros;
  • das Comunidades Cristas, sobretudo CEBs, que também apoiam e acompanham essa mesma luta.

Realmente está mais do que provado que o deus do capitalismo neoliberal é obezerro de ouro” de que fala o livro do Êxodo. “Fizeram para si um bezerro de ouro e o adoraram” (Ex. 32,8).

Como ser humano e como cristão, reafirmo: do ponto de vista da Ética Social humana e, sobretudo, cristã (radicalmente humana), todo despejo é antiético e injusto. As pessoas humanas não se despejam e não podem ser tratadas com brutalidade e crueldade. Elas devem ser respeitadas em sua dignidade humana. A própria palavra “despejo” é ofensiva.

Volto a insistir: só existem dois casos nos quais as pessoas podem ser removidas com dignidade de uma Ocupação: se o terreno for de utilidade pública ou de preservação ambiental e - mesmo nesses dois casos - somente depois que estiverem prontas outras moradias dignas para serem ocupadas.

O papa Francisco nos lembra que os três T (Terra, Teto e Trabalho) são direitos sagrados, que estão acima do direito de propriedade.

Portanto, do ponto de vista ético, terras rurais ou urbanas sem função social ou destinadas à especulação imobiliária, pertencem a quem precisa delas para morar e trabalhar. Toda lei que vai contra a ética, é injusta e deve ser desobedecida. É uma questão de “objeção de consciência”!

Em defesa da Vida no Campo e na Cidade! Campanha Nacional DESPEJO ZERO!





Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 01 de abril de 2022


sexta-feira, 1 de abril de 2022

A questão da “sinodalidade” na Igreja (2ª parte)

 

Motivados pelo novo Sínodo (outubro de 2021 - outubro 2023) com o tema "Por uma Igreja Sinodal: comunhão, participação e missão", na 1ª parte deste artigo refletimos sobre o que é “sinodalidade”.

Na 2ª parte, vamos refletir sobre os pilares da sinodalidade: comunhão, participação e missão.

“Deve-se revalorizar entre nós a imagem cristã dos seres humanos”, destacando a liberdade como valor fundamental. “Esta liberdade é a um tempo dom e tarefa. Ela não se alcança verdadeiramente sem a libertação integral e é, em sentido válido, meta do ser humano segundo nossa fé, uma vez que ‘para a liberdade é que Cristo nos libertou’ (Gl 5,1) a fim de que tenhamos vida e a tenhamos em abundância, como ‘filhos/as de Deus e co-herdeiros/as do próprio Jesus Cristo’ (Rm 8,17)” (Documento de Puebla - DP 321).

Ora, “a liberdade implica sempre aquela capacidade que todos temos, em princípio, de dispor de nós mesmos, a fim de irmos construindo uma comunhão e uma participação que hão de se plasmar em realidades definitivas” (DP 322). Isso acontece em três planos inseparáveis: a relação do ser humano com o mundo como cuidador (jardineiro), com as pessoas como irmão/ã e com Deus como filho/a (cf. ib.).

Portanto, é através da unidade indissolúvel desses três planos que “aparecem melhor as exigências de comunhão e participação que brotam desta dignidade. Se no plano transcendente se realiza em plenitude nossa liberdade pela aceitação filial e fiel de Deus, entramos em comunhão de amor com o mistério divino e participamos de sua própria vida. O contrário é romper com o amor filial, repelir e desprezar o Pai. São duas possibilidades extremas  que a revelação cristã chama graça e pecado” (DP 326): graça individual e graça social ou estrutural; pecado individual e pecado social ou estrutural.

“O amor de Deus que nos dignifica radicalmente se faz necessariamente comunhão de amor com os outros seres humanos e participação fraterna; para nós, hoje em dia, deve tornar-se sobretudo obra de justiça para com os oprimidos, esforço de libertação para quem mais precisa. De fato, ‘ninguém pode amar a Deus a quem não vê, se não ama o irmão a quem vê’ (1 Jo 4,20). Todavia a comunhão e a participação verdadeiras só podem existir nesta vida projetadas no plano bem concreto das realidades temporais” (DP 327).

Como Igreja somos chamados a continuar a missão de Jesus de Nazaré no mundo de hoje. “A missão evangelizadora é de todo o Povo de Deus. Esta é sua vocação primordial, ‘sua identidade mais profunda’ (Evangelii Nuntiandi - EN 14). É a sua felicidade. O Povo de Deus com todos os seus membros, instituições e planos existe para evangelizar. O dinamismo do Espírito de Pentecostes anima-o e envia-o a todos os povos. Nossas Igrejas particulares hão de escutar, com renovado entusiasmo, o mandato do Senhor: ‘Ide, pois, e fazei discípulos meus todos os povos’ (Mt 28,19)” (DP 348). Precisamos nos tornar cada vez mais uma “Igreja em saída”.

A Opção pelos Pobres, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a Teologia da Libertação são as três marcas que constituem a identidade do modelo de Igreja que surgiu no contexto da II Conferência de Medellín.

A Opção pelos Pobres (Empobrecidos, Marginalizados, Oprimidos, Excluídos e Descartados) indica o caminho que devemos seguir para sermos a Igreja de Jesus de Nazaré: uma Igreja a partir da “manjedoura” e de tudo o que ela significa hoje.

As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) são Comunidades “encarnadas” na vida do povo, são um jeito novo e, ao mesmo tempo, antigo de ser Igreja. São “o primeiro e fundamental núcleo eclesial” ou “a célula inicial da estrutura eclesial” (Medellín, XV, 10), que transformam a Paróquia em “um conjunto pastoral unificador das Comunidades de Base” (ib. 13).

A Teologia da Libertação é a leitura - análise e interpretação - à luz da Palavra, que as Comunidades cristãs e seus teólogos, fazem da Práxis (Prática e Teoria) de Libertação.

O método (caminho) utilizado é “ver, julgar, agir” (analisar, interpretar e libertar) e celebrar (cf. Clodovis Boff. A originalidade histórica de Medellín: em http://servicioskoinonia.org/relat/203p.htm 1/8).

E nós? Qual é o nosso modelo de Igreja? Que Igreja queremos ser? A comunhão e a participação são uma realidade concreta ou são só palavras? Em nossa missão, assumimos o lado dos pobres? Somos de verdade seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré?



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Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 23 de março de 2022



O artigo foi publicado originalmente em:
https://portaldascebs.org.br/a-questao-da-sinodalidade-na-igreja-parte-2/