(Continua a série de artigos sobre o Ser
humano)
No
Ser humano histórico-individual as
dimensões da corporeidade, bio-psiquicidade e espiritualidade ou pessoalidade -
que são dimensões "sexuadas" - inter-penetram-se (misturam-se,
confundem-se), inter-dependem e
inter-agem na unidade. Podem ser, logicamente, distinguidas, mas nunca, na
prática, separadas.
A
"corporeidade" nunca é só corporeidade (natural), mas é sempre
corporeidade bio-psíquica e espiritual ou pessoal (corporeidade
"humana"); a "bio-psiquicidade" nunca é só bio-psiquicidade
(natural), mas é sempre bio-psiquicidade corpórea e espiritual ou pessoal
(bio-psiquicidade "humana"); a "espiritualidade" ou
pessoalidade nunca é só espiritualidade ou pessoalidade (desincarnada), mas é
sempre espiritualidade ou pessoalidade corpórea e bio-psíquica (espiritualidade
ou pessoalidade "humana").
Nas
relações com os outros/as - relações individuais ou inter-individuais (que -
como vimos - sempre acontecem numa sociedade historicamente determinada) - o
Ser humano individual é, antes de tudo, "presença”.
"O
termo 'presença' deriva de 'pré-ser' (prae-esse), que significa 'estar diante
de alguém'. A ele liga-se também o presente temporal (passado - presente -
futuro). A presença diz respeito só e unicamente a Seres humanos. As coisas não
estão presentes. Elas estão simplesmente lá. As coisas nem estão ausentes, mas
estão ou não estão aí. O mesmo uso linguístico mostra, portanto, a percepção da
especificidade da presença humana. Aquilo que caracteriza a presença humana e a
distingue do presente cronológico (tempo objetivo e matemático) e espacial (por
exemplo, um cão na casa, uma árvore diante da porta) é a orientação aos outros
Seres humanos" (GEVAERT, J. Il Problema dell'Uomo. Introduzione
all'Antropologia filosofica. Elle Di Ci, 19814, p. 73-74).
A
primeira e mais fundamental forma de presença do Ser humano individual
(ser consciente de “ser-no-mundo", “ser-com-o-mundo”) é o fato que todo
Ser humano individual vivente pertence ao gênero humano, à espécie humana.
Encontra-se, por isso, num contexto de comunicabilidade e reconhecimento. Ele
precisa ser tratado como Ser humano individual (não como coisa). Ele é um
possível interlocutor de todos os outros Seres humanos individuais.
A
segunda forma de presença do Ser humano individual é o fato da pertença
a uma sociedade concreta (formação social), a um grupo humano concreto que vive
num determinado ambiente sócio-econômico-político-ecológico-cultural-religioso
(Cf. Ib., p. 74).
A
terceira forma de presença pode ser caracterizada como "presença
benévola, presença de amor: isto é, vontade de responder, de amar, de promover
o outro; e isso não em abstrato, mas no efetivo assumir os problemas do outro.
Esta forma de presença orienta-se diretamente ao tu do outro e se traduz em
atenções cuidadosas, fidelidade, criatividade, previdência e providência. Esta
é, no sentido forte do termo, uma presença criadora" (Ib.).
Nas
relações com os outros/as, o indivíduo experimenta também muitas formas de “ausência”. Toda existência
(convivência) humana torna-se, assim, um mixto
de presença e ausência (união e
separação, alegria e dor). A grande e fundamental ausência é, porém, a morte (passagem definitiva da história
para a meta-história). Nela o indivíduo singular deixa (cessa) de
"ser-no-mundo" e de se relacionar (comunicar) com os outros
(voltaremos sobre o tema da morte).
Nas
relaçôes com os outros/as, o Ser humano individual é ainda "expressão" (manifestação, revelação). Ele
"exprime-se" (manifesta-se, revela-se) a si mesmo, em primeiro lugar,
na realização ou não de suas possibilidades: corpóreas, bio-psíquicas e
espirituais ou pessoais e, em segundo lugar, na utilização ou não das diversas
formas de linguagem, que também são corpóreas, bio-psíquicas e espirituais ou
pessoais (as expressões faciais, as maneiras de posicionar o corpo, de estar
sentado, de caminhar, as manifestações afetivas, a comunicação de idéias pelo
trabalho, pela palavra, etc.).
No
Ser humano individual, "a consciência que pensa o objeto 'em-si'
(natureza), deposita a significação que lhe confere na exterioridade da
palavra; a consciência que pensa o objeto 'para-si' (liberdade), é ainda na
palavra que encarna a significação de sua mais rigorosa autoposição. Dupla
saída, duplo êxtase da consciência: aquele que manifesta a significação do
'objeto' e aquele que indica o sentido da 'decisão'. A palavra circunscrita
pelos conteúdos do mundo, e a palavra suscitada pelas iniciativas da liberdade.
Dupla linha de intencionalidade, intersecando-se em cada plano da consciência e
em cada projeção no discurso, no 'logos' pensado e no 'logos' proferido: a
intencionalidade da coisa e a intencionalidade do evento, a palavra 'natureza'
e a palavra 'história'.
Ora,
o paradoxo da exterioridade da consciência no sinal não se explica, se o
'para-si' da consciência não se apresenta no Ser humano, dentro da unidade de
um mesmo movimento, como para-o-outro, como comunicação”.
E
continua: “No Ser humano a consciência não é interioridade absoluta, puro
espírito. Ela se dá a si mesma um corpo: não é o corpo-objeto, sujeito às
causalidades físicas e biológicas, mas o corpo em permanente gênese de
significação, o corpo do gesto, da palavra, do sinal em suma. A consciência, no
Ser humano, é essencialmente anunciadora: ela proclama, invoca, define. Tal
condição estaria condenada a uma total ininteligibilidade, se a face da
consciência que se prolonga na exterioridade do sinal não fosse voltada para
outra consciência, não projetasse, ao descobrir-se, o espaço humano da
comunicação" (VAZ,
H. C. de Lima. Ontologia e História. Duas Cidades, 1968, p. 274-275).
Enfim,
podemos concluir estas reflexões dizendo que "o verdadeiro valor
espiritual (portanto, também, corpóreo e bio-psíquico) do indivíduo depende do
valor de suas relações reais" (MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia alemã - I
Feuerbach. Hucitec, São Paulo, 19865, p. 54).
Obs.:
Por achar que os “bens” são bons, mas que a “riqueza” indica uma relação
desigual, injusta, desumana e antiética para com os “bens”, no texto citado -
mantendo seu sentido figurado - troquei a palavra “riqueza” pela palavra
“valor”).
No proximo artigo a respeito do tema, começaremos a refletir sobre o Ser humano meta-histórico.
Marcos Sassatelli, Frade dominicanoDoutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)Professor aposentado de Filosofia da UFGE-mail: mpsassatelli@uol.com.brCel. e WA: (62) 9 9979 2282https://freimarcos.blogspot.com/
Goiânia, 23 de outubro de 2024
O artigo foi publicado originalmente em:
https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-historico-individual-5/ (08/10/24)