segunda-feira, 14 de julho de 2025

O Ser humano meta-histórico “além da morte” (1)

 


Nos três últimos artigos refletimos sobre o Ser humano meta-histórico (meta-social e meta-individual) “já e ainda não”.

Neste, vamos começar a refletir sobre o Ser humano meta-histórico (meta-social e meta-individual) “além da morte”.

Na existência histórica do Ser humano, encontramos, fundamentalmente, dois "caminhos" ("vias") que nos levam: o primeiro, a descobrir a necessidade da existência de Deus (o Outro absoluto), Fonte (Fundamento) do ser nos seres ou (em linguagem teológica) de Deus Criador; o segundo, a descobrir, diretamente, a dimensão da meta-historicidade humana “além da morte” e, indiretamente, a existência de Deus.

O primeiro "caminho" parte do "real" como tal (portanto, também do "real humano"). Antes de tudo, tenta responder à pergunta: por que existe o "real"? Esta pergunta é racional e perfeitamente legítima. Não basta explicar o real e mostrar como funciona (que é o papel das ciências); é preciso também questionar a própria existência do real. "Se se consegue não só 'falar' esta questão, mas também 'pensá-la' realmente, percebe-se que a existência do real, considerado no seu todo, faz surgir uma outra questão: ele não explica a sua própria existência (...). O real 'existe', é um ponto, eis tudo" (PODEUR, L. Imagem moderna do mundo e fé cristã. Paulinas, São Paulo, 1977, p. 131).

É esta a "contingência" do real. Se pararmos por aqui, o "real" torna-se um "absurdo". Continuemos o movimento da razão que interroga, inscrevendo o próprio real num contexto emglobante. "Neste caso, a existência do real (...) torna-se exigência de um fundamento (...). Somos levados então a propor a hipótese de uma fonte, da qual nada sabemos a não ser que seria 'completamente diferente' do mundo, porque seria o fundamento do mundo e ela mesma não teria que ter um fundamento" (ib., p. 132).

Chegamos, assim, ao tema da "presença ontólogica" de Deus - em linguagem filosófica - ou "presença criadora” de Deus (criação) - em linguagem teológica.

A hipótese da existência de um Deus - fundamento do ser nos seres existentes - não é irracional e irreal. "Mesmo que a ciência pudesse explicar cabalmente as existências que aparecem e desaparecem do universo, ela não poderia dizer nada a respeito da existência como tal da realidade: ela simplesmente a pressupõe e funciona tomando-a por base" (ib.).

Em seguida, o "caminho", que parte do "real" como tal, tenta responder à pergunta: qual é o "sentido" do real? É próprio do Ser humano histórico procurar um "sentido" (um "significado") não só para a sua existência, mas também para o "real" (a "realidade") considerado em si mesmo (e não neste ou naquele indivíduo).

O conhecimento "científico" dos mecanismos do real (material e vivente) - mesmo supondo a ciência totalmente acabada (o que é impossível na condição existencial do Ser humano) - não oferece nenhum dado concernente à existência e à natureza do sentido (significado) último das coisas (cf. ib., p. 133-134). Portanto, "a afirmação de um Deus-fundamento pode inserir-se em nossa concepção do real sem opor-se ao projeto científico e sem obrigar, por nada deste mundo, a repor em questão os nossos conhecimentos do universo" (ib., p. 134).

O segundo "caminho" - que nos leva a descobrir, diretamente, a meta-historicidade do Ser humano “além da morte” e, indiretamente, a existência de Deus - parte do "real humano" (da realidade humana). Antes de tudo, tenta responder à pergunta: por que o Ser humano "necessita estruturalmente" de Infinito? A "necessidade estrutural" (a "exigência estrutural") de Infinito mostra que o Ser humano histórico - embora limitado em suas possibilidades - é infinito em seus anseios e aspirações (tensões, projeções); ele vive em estado de busca permanente e nunca se satisfaz; ele anseia uma plenificação, ou seja, uma vida plena (completa), uma realização plena (total), que possa trazer-lhe uma felicidade plena (verdadeira).

Será que tais anseios (aspirações) são infundados e levam o Ser humano histórico à frustração (e/ou ao desespero), ou será que são fundados e levam este mesmo Ser humano histórico à esperança? Sua vida desenvolve-se numa contínua disputa entre a angústia (ou a inquietude constante) - que pode levar, às vezes, à frustração e/ou ao desespero - e a esperança - que leva ao Absoluto, ao Infinito (Veja o pensamento de S. Agostinho a respeito da inquietude constante do Ser humano).

Na existência histórica do Ser humano, "o par angústia-esperança não se pode cindir. Este par psicológico corresponde a este outro par ontológico: desamparo metafísico-plenitude subsistencial. A coexistência destes momentos na vida humana é orgânica e forma uma unidade substancial. Os vaivéns da vida devem-se ao predomínio do sentimento de nosso desamparo ontológico ou ao predomínio do pré-sentimento de nossa plenitude subsistencial. No 'ser contingente' ('ens contingens') que é o Ser humano, há um desfiladeiro para o nada e uma escada para o Absoluto. Somos, os humanos, um misterioso amálgama de nada e de eternidade" (DEL VALLE, A. Basave. Filosofia do homem. Fundamentos de Antropologia metafísica. Convívio, São Paulo, 1975, p. 95).

(No próximo artigo sobre o Ser humano continua o mesmo tema: parte 2)

 

Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)   
Professor aposentado de Filosofia da UFG
    E-mail: mpsassatelli@uol.com.br - Cel. e WA: (62) 9 9979 2282
  
https://freimarcos.blogspot.com/ - Goiânia, 15 de maio de 2025










O artigo foi publicado originalmente em: 

https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-meta-historico-alem-da-morte-1/ (10/07/25)

segunda-feira, 7 de julho de 2025

Uma imoralidade pública - covarde, cruel, perversa e diabólica

 


No dia 2 deste mês de julho - na derrubada das casas na Comunidade da Ocupação do Setor Estrela Dalva, Região Noroeste de Goiânia - o prefeito Sandro Mabel foi de uma covardia, crueldade e perversidade diabólicas. Os moradores construíram - e ainda estavam construindo - suas casinhas com material, comprado quase sempre à prestação e com dinheiro tirado da própria alimentação.

Que desumanidade! O senhor, prefeito Sandro Mabel e seus apoiadores, foram uma prova concreta de que o demônio existe. Não dá para entender como um ser humano possa ser tão mau!

Faço agora uma advertência. Prefeito Sandro Mabel, se o senhor não pedir perdão publicamente da gravíssima imoralidade que praticou para com nossos irmãos e irmãs pobres da Ocupação do Setor Estrela Dalva e não reparar o prejuízo que causou aos seus moradores, reconstruindo suas casas, brutalmente demolidas e quitando, se necessário, suas prestações do material de construção com o seu próprio dinheiro (e não o dinheiro da Prefeitura), lembre-se:

- pagará muito mais caro diante de Deus;

- a justiça de Deus pode tardar, mas não falha.

Aguarde! “Os caminhos de Deus são justos e verdadeiros” (Ap 15,3). “Deus ama o seu Povo e exalta os pobres com a vitória” (Sl 14,4).

“Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês são como sepulcros caiados: por fora parecem bonitos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e podridão! Assim também vocês: por fora, parecem justos diante dos outros, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e injustiça. Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas!” (Mt 23,27-29).

Jesus, no caso do prefeito Sandro Mabel e companhia limitada, diria: “Ai de vocês fariseus hipócritas, que derrubam as moradias dos pobres e adoram o deus dinheiro!”.

Por fim, afirmo mais uma vez (nunca é demais): do ponto de vista humano, ético e cristão (radicalmente humano) “todo despejo é injusto” e, se tiver liminar da “Justiça”, é mais injusto ainda, porque se torna uma injustiça legalizada e institucionalizada. Pessoa humana não se despeja como se fosse “lixo degradável”.

E ainda: só existem três casos, nos quais os moradores e moradoras de uma Ocupação podem ser removidos e removidas com dignidade.

Primeiro: se for uma área com risco de vida para seus moradores. Nesse caso, a remoção deve ser realizada o mais rápido possível e o Poder Público tem a obrigação de pagar o aluguel social até que outras casas dignas estejam prontas para serem ocupadas.

Segundo: se for uma área de utilidade pública. Nesse caso, a remoção só pode ser realizada depois que outras casas estiverem prontas para serem ocupadas.

Terceiro:  se for uma área de preservação ambiental. A remoção só pode ser feita como no caso anterior.

Todo terreno abandonado para especulação imobiliária (dos adoradores do deus dinheiro) não só pode, mas deve ser ocupado pelas pessoas que não têm moradia digna: direito humano fundamental de todos e de todas.

Como cristão, eu também sou Igreja (Comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré) e não posso ficar calado. O silêncio é um grave pecado de omissão. O meu lado é o lado de Jesus de Nazaré: o lado dos pobres, dos marginalizados, dos explorados, dos excluídos e dos descartados: os e as que - nessa sociedade capitalista, estruturalmente irracional, desumana, antiética e anticristã - não têm voz e não têm vez.

Reafirmo: senhor prefeito, Sandro Mabel, aguarde a justiça de Deus!

A luta continua e a esperança nunca morre...



02/07/25


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)   
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br - Cel. e WA: (62) 9 9979 2282  
https://freimarcos.blogspot.com/ - Goiânia, 06 de julho de 2025







Carta aberta à PJMP

 


Carta aberta à PJMP

Por ocasião do

6º Congresso Nacional:

09-13 de julho de 2025

Fortaleza - CE

Meus queridos e queridas jovens da PJMP,

Antes de tudo, faço a memória, ou seja, torno presente o 5º Congresso Nacional da PJMP - de 9 a 13 de julho de 2018 - celebrado na Paróquia Nossa Senhora da Terra, Região Noroeste de Goiânia, com o tema muito sugestivo: "Águas e Profecia: Luzes no Meio Popular gerando Vidas" e com o lema: "Juventudes, Protagonismo, Resistência e Liberdade". 

Foi uma experiência humana, cristã (radicalmente humana) e eclesial muito bonita e muito significativa para todos e todas nós, que nos marcou profundamente.

À época, a PJMP (Pastoral da Juventude do Meio Popular) celebrava seus 40 anos de caminhada. Acolhemos com muito entusiasmo e muita esperança os e as jovens da PJMP vindos de todos os recantos do Brasil, juntamente com irmãos e irmãs que trabalhavam com eles e elas.

Parabéns, jovens da PJMP! Na Igreja, vocês são os e as jovens das CEBs, vivem seu “jeito de ser Igreja”, que é - no mundo de hoje - o “jeito evangélico” de ser Igreja, o jeito de viver como irmãos e irmãs das primeiras Comunidades Cristãs, o jeito de viver do próprio Jesus de Nazaré, que nasceu como sem-teto, foi trabalhador carpinteiro e - em sua vida pública - sempre ficou do lado dos/as pobres e excluídos/as, foi preso como subversivo, morreu na cruz por amor, ressuscitou, está vivo e caminha conosco.

Do dia 9 a 13 de julho de 2025 acontecerá o 6º Congresso Nacional da PJMP em Fortaleza - CE, com o tema muito atual: "Juventude do Meio Popular: trilhando os caminhos do Cristo Libertador".

A PJMP - por viver o jeito de ser Igreja das CEBs - é uma força libertadora e transformadora da própria Igreja e, sobretudo, da Sociedade com a presença de vocês “trilhando os caminhos do Cristo Libertador” no meio dos Movimentos Populares e participando de suas lutas por uma Nova Sociedade no mundo com o mundo: a Irmã Mãe Terra Nossa Casa Comum.

Gostaria muito de estar presente no Congresso, mas como sou um “jovem” que já completou 86 anos - graças a Deus com saúde e ainda trabalhando muito - achei melhor acompanhar nas Redes Sociais.

Um Bom Congresso, um Congresso que leve, cada dia mais, vocês da PJMP e - com vocês - todos e todas nós a “trilhar os caminhos do Cristo Libertador”.

Abraços do irmão de vocês, “jovem” há mais tempo,

                                                                                                                                                                               Frei Marcos Sassatelli

Frade dominicano
Goiânia, 04 de julho de 2025
Cel. e WA: (62) 9 9979 2282  



segunda-feira, 16 de junho de 2025

O Ser humano meta-histórico-individual



(Continua o último artigo sobre o Ser Humano)

O Ser humano histórico-individual (corpóreo, biopsíquico, espiritual ou pessoal), ou seja, o Ser humano histórico em suas relações individuais (interindividuais), é "ontologicamente" voltado para o meta-histórico-individual; ele é - "já e ainda não" - meta-histórico-individual.

Como a meta-socialidade, a meta-individualidade (meta-corporeidade, meta-biopsiquicidade, meta-espiritualidade ou meta-pessoalidade) é constitutiva da meta-historicidade do Ser humano (ou seja, do Ser humano meta-histórico).

A meta-individualidade é - podemos dizer - "meta-individualidade social", porque o indivíduo influencia e condiciona dialeticamente a sociedade e vice-versa (como já vimos).

O Ser humano histórico meta-individualiza-se dialética e permanentemente como “Vida individual” ou “Morte individual”, até à meta-individualiação plena (total, absoluta) como “Vida individual plena” ou “Morte individual plena”.

A meta-individualização plena (total, absoluta) como “Vida individual plena” é a afirmação da dimensão individual do Ser humano em sua plenitude, ou seja, da humanização plena (da Vida eterna, da Páscoa definitiva, da Plenitude da Ressurreição, da Plenitude do Reino de Deus, da Salvação eterna, do Céu, do Paraíso).

A meta-individualização plena como “Morte individual plena” é a negação de tudo o que foi dito no parágrafo anterior.

Para o Ser humano meta-individual (meta-corpóreo, meta-biopsíquico, meta-espiritual ou meta-pessoal), esse processo dialético permanente da meta-individualização, até à meta-individualização plena, passa pelo reconhecimento dos outros Seres humanos como outros ou não e pela experiência do amor meta-individual (meta-corpóreo, meta-biopsiquico, meta-espiritual ou meta-pessoal) ou não (desamor meta-individual, egoísmo meta-individual), em todas as suas manifestações (expressões).

Essa experiência é a condição necessária para encontrar (conhecer e vivenciar) ou não o significado fundamental - último e definitivo - da existência humana individual. É a experiência do amor meta-individual ou não, que se dá (acontece) na e pela Práxis meta-individual (voltaremos sobre o assunto, falando da Práxis meta-individual).

Nessa altura de nossa reflexão sobre o Ser humano meta-histórico - meta-social e meta-individual - pergunto:

· O Ser humano histórico pode encontrar (conhecer, vivenciar) e realizar totalmente o significado (o sentido) de sua existência social (estrutural) e individual (corpórea, biopsíquica, espiritual ou pessoal) entre os limites da história?

· Ele pode encontrar em si mesmo um fundamento suficiente para afirmar a meta históricidade social (meta-socialidade) e individual (meta-individualidade)?

· Quais as perspectivas que se abrem para a realização do significado fundamental - último e definitivo - da existência humana, que parece ameaçado pela "morte"?

· Existe o Absoluto, o Infinito (Deus)?

Tendo presente que - como Seres humanos históricos (sociais e individuais) - só raciocinamos (refletimos), mesmo quando o fazemos à luz da Fé, com categorias espaço-temporais e que só por analogia podemos conhecer uma realidade meta-histórica (transcendente) “além da morte”, daremos uma resposta - limitada evidentemente - a estas questões.

Para fazer isso, na existência histórica do Ser humano, temos fundamentalmente dois "caminhos" ("vias"):

· O primeiro leva-nos a descobrir a necessidade da existência de Deus (o Outro absoluto), Fonte (Fundamento) do ser nos seres ou (em linguagem teológica) de Deus Criador.

· O segundo leva-nos a descobrir, diretamente, a dimensão da meta-historicidade humana e, indiretamente, a existência de Deus.

     (Continua no próximo artigo sobre o Ser Humano) 


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)   
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br - Cel. e WA: (62) 9 9979 2282  

https://freimarcos.blogspot.com/ - Goiânia, 15 de maio de 2025





O artigo foi publicadooriginalmente em:

https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-meta-historico-individual/ (26/05/25)

terça-feira, 3 de junho de 2025

Fazendo a memória de Dom Fernando: pastor-profeta

 


Em 2010, no centenário de nascimento (04/04/1910 - Patos - PB) e nos 25 anos da Páscoa definitiva (01/06/85 - Goiânia - GO) de Dom Fernando Gomes dos Santos, publiquei o artigo “Dom Fernando: pastor-profeta” (Diário da Manhã. Opinião Pública, 23/12/10, p. 17).

Neste ano de 2025, nos 40 anos de sua Páscoa definitiva (01/06) - pelo significado que o testemunho de vida de Dom Fernando tem para a Igreja, sobretudo hoje - achei por bem retomar, com reformalizações e atualizações, o que disse naquela época.

Desde o início da década de 1970, quando - depois do Concílio Vaticano II (1962-65) e da Conferençia de Medellín (1968) - vivíamos, com muito entusiasmo, um tempo de profunda renovação da Igreja, tive a felicidade - que considero uma graça de Deus - de trabalhar em Comunidades da periferia de Goiânia e, ao mesmo tempo, de ser amigo e colaborador direto de Dom Fernando Gomes dos Santos como Coordenador da Pastoral e Vigário Geral da Arquidiocese de Goiânia. Por isso, fazendo a memória dos 40 anos de sua Páscoa definitiva, não posso deixar de dar publicamente - mais uma vez - o meu testemunho.

Por ocasião de sua morte ou, melhor dizendo, do dia em que "completou sua Páscoa", falei que Dom Fernando foi "um Pastor-Profeta dos nossos tempos", "fiel à Palavra de Deus e fiel aos apelos da realidade" (Revista da Arquidiocese. Goiânia, ano 28, n. 6/7, junho/julho 1985, p. 393 e 426-427).

Dom Fernando tinha uma personalidade forte, mas um coração muito grande. Era uma figura de extraordinária profundidade humana; sabia compreender, com amor de pai e ternura de mãe, as fraquezas do ser humano; ele foi sempre um irmão solidário de todos e todas, especialmente dos mais pobres.

No depoimento, que ele deu à Revista Eclesiástica Brasileira (REB), poucos meses antes de sua Páscoa definitiva, depois de falar da ação pastoral do Secretariado da Pastoral Arquidiocesana (SPAR), diz que ela "se complementa naturalmente no gabinete do arcebispo, sempre aberto a ouvir a todos e todas, a qualquer hora. Nesses encontros - em sua maior parte com pessoas pobres, marginalizadas e oprimidas - tem acontecido que, além das palavras de estímulo, recebam, alguma vez, o sacramento da Penitência, sem que ninguém saiba ou perceba. Transforma-se, assim, em lugar privilegiado de reconciliação e de perdão" (REB, março de 1985).

Quando, por causa de sua tomada de posição clara, destemida e firme em defesa do povo, o acusavam de ser contra o Governo, Dom Fernando dizia: “eu sou a favor do povo; quando o Governo estiver a favor do povo, eu estarei com ele, quando estiver contra o povo, eu estarei contra ele". 

Como tive a graça de conviver com Dom Fernando e ser - pela afinidade que tínhamos - pessoa da sua confiança, quando alguém o procurava para tratar de um assunto que podia ser resolvido no Secretariado da Pastoral Arquidiocesana (SPAR), o ouvi diversas vezes dizer: "isso é com Frei Marcos".

Dom Fernando - sobretudo depois do Concílio Vaticano II - era um homem que acreditava na "Igreja dos Pobres" e vivia a comunhão e participação, numa Igreja toda ela ministerial. Por isso, partilhava com os Padres, as Religiosas/os e os Agentes pastorais leigas/os a responsabilidade do pastoreio.

Honra-me muito - e considero isso uma graça de Deus - o reconhecimento de Dom Fernando a respeito do SPAR, no depoimento já citado: "O SPAR tem sido o grande centro de convergência e de irradiação de tudo o que se passa na Arquidiocese no campo pastoral. Dotado de sede própria, que integra o conjunto Catedral-Cúria Metropolitana-Spar, no centro da cidade, constitui o ponto mais dinâmico da Arquidiocese. Hoje o SPAR conta com o coordenador da Pastoral, Frei Marcos Sassatelli, que é também vigário geral, e com uma extraordinária equipe de sacerdotes, religiosas/os e leigas/os competentes, de rara dedicação e eficiência. No SPAR, funcionam oito Comissões que dinamizam as atividades fundamentais, referentes às prioridades do Plano Pastoral, elaborado em Assembleia Arquidiocesana e constantemente estudado nas reuniões e encontros. O SPAR produz, também, grande número de boletins e impressos, que são divulgados nas Paróquias da Arquidiocese, principalmente nas Comunidades da periferia, e que são encomendados por outras Igrejas particulares do Brasil afora. Grande é também o número de cursos ministrados nas Comunidades da capital e do interior" (REB, ib.).

À luz dos ensinamentos da Conferência de Medellím, no Plano de Pastoral - aprovado em Assembleia Arquidiocesana e publicado em forma de Cartilha e de Documento - as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) eram a prioridade das prioridades. E hoje!?

Como todo ser humano, Dom Fernando tinha também suas limitações e seus defeitos, mas era um homem de uma só palavra, um homem íntegro, um homem "sem violência e sem medo". Com inabalável fidelidade, amava muito a Mãe Igreja, mesmo, às vezes, sofrendo profunda e silenciosamente por causa das incompreensões de irmãos da própria Igreja (cf. O Testamento de Dom Fernando. Revista da Arquidiocese. Goiânia, ano 28, n. 6/7, junho/julho 1985, p. 356).

Dom Fernando, como "pastor-profeta dos nossos tempos" e como "defensor e advogado do povo" (capa da REB de março de 1985), era também implacável na denúncia e na luta contra as injustiças sociais. Era respeitado e temido pelos poderosos, sobretudo nos tempos difíceis da ditadura militar.

Dom Fernando era um homem fiel à Palavra de Deus e fiel aos apelos da realidade, "Para desempenhar sua missão, a Igreja, a todo momento, tem o dever de escutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho (...). Por conseguinte, é necessário conhecer e entender o mundo no qual vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole frequentemente dramática" (Concílio Vaticano II, A Igreja no mundo de hoje - GS, 4).

Que a memória do testemunho de Dom Fernando Gomes dos Santos - primeiro arcebispo da Arquidiocese de Goiânia - nos 40 anos de sua Páscoa definitiva, nos ajude a sermos, sempre mais, uma Igreja verdadeiramente evangélica, comprometida com a Boa-Notícia do Reino de Deus no mundo de hoje, “desde os pobres, com os pobres e para os pobres”: o único caminho para sermos uma Igreja para todos e todas. A caminhada continua! Esperançar é preciso!


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)   
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br - Cel. e WA: (62) 9 9979 2282
 
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quarta-feira, 28 de maio de 2025

Por uma Igreja Cristã Católica evangélica (2ª parte)

 


Depois das reflexões feitas (na 1ª parte do artigo) à luz do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín, apresento aqui algumas propostas concretas: caminhos que a Igreja Cristã Católica precisa percorrer para voltar a ser uma Igreja verdadeiramente evangélica.


1ª. A Igreja Cristã Católica deve reconhecer - não só na teoria, mas também na prática - que todos os Seres humanos - Cristãos e Cristãs incluídos - são iguais em dignidade e valor.


“Deus disse: ‘Façamos o Ser humano à nossa Imagem e semelhança’. (...) E Deus criou o Ser humano à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, macho e fêmea os criou” (Gn 1,26-27).


"Deve-se reconhecer cada vez mais a igualdade fundamental entre todos os Seres humanos" (A Igreja no mundo de hoje - GS 29). "A razão principal da dignidade humana consiste na vocação do Ser humano para a comunhão com Deus" (GS 19). Na Igreja “reina (deveria reinar...) verdadeira igualdade quanto à dignidade e ação comum a todos os cristãos e cristãs na edificação do Corpo de Cristo" (A Igreja - LG 32).


“Na Igreja, Povo de Deus, é comum a dignidade dos filhos e filhas de Deus batizados e batizadas, no seguimento de Jesus, na comunhão recíproca e no mandamento missionário” (Exortação Apostólica Pós-sinodal “Ecclesia in America” - EA 44). “Na Igreja, todos e todas são chamados à santidade (perfeição humana, felicidade) e receberam a mesma fé pela justiça de Deus” (LG 32).


"O mistério do Ser humano só se torna claro verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado. (…) Cristo manifesta plenamente o Ser humano ao próprio Ser humano e lhe descobre a sua altíssima vocação" (GS 22). “Todo aquele que segue Cristo, o Ser humano perfeito, torna-se ele também mais Ser humano” (GS 41).


2ª. A Igreja Cristã Católica deve ser toda ministeral, na diversidade dos dons (carismas) e dos serviços (ministérios).


Na Igreja: “existem dons diferentes, mas o Espírito é o mesmo; diferentes serviços, mas o Senhor é o mesmo; diferentes modos de agir, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. Cada um recebe o dom de manifestar o Espírito para a utilidade de todos. A um, o Espírito dá a palavra de sabedoria; a outro, a palavra de ciência segundo o mesmo Espírito; a outro, o mesmo Espírito dá a fé; a outro ainda, o único e mesmo Espírito concede o dom das curas; a outro, o poder de fazer milagres; a outro, a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos; a outro, o dom de falar em línguas; a outro ainda, o dom de as interpretar. Mas é o único e mesmo Espírito quem realiza tudo isso, distribuindo os seus dons a cada um, conforme ele quer” (1Cor 12,4-11).


3ª. A Igreja Cristã Católica deve ser uma Comunidade de Irmãos e Irmãs (um círculo) e não uma Hierarquia de classes - Clero e Laicato - com a classe intermediária chamada Vida Religiosa (uma pirâmide).


“Desenvolvendo perspectivas já presentes no Concílio, mas ainda não explicitadas, vários teólogos - a começar por Congar - têm proposto pensar a estrutura social da Igreja dentro do binômio 'comunidade - carismas e ministérios'. O primeiro termo, 'comunidade' (ou o teologicamente mais denso, 'comunhão'), inclui tudo o que há de comum a todos os membros da Igreja; e a dupla 'carisma e ministérios' inclui tudo o que positivamente os distingue. É esta, aliás, a perspectiva do Novo Testamento, onde nunca aparece o termo 'leigo' ou ‘leiga’ (e - podemos acrescentar - nem o termo ‘clero’), mas sublinham-se os elementos comuns a todos os cristãos/ãs e, ao mesmo tempo, valorizam-se as diferenças carismáticas, ministeriais e de serviço. Neste sentido, os termos que designam os membros do Povo de Deus acentuam a condição comum a todos os renascidos pela água e pelo Espírito: santos/as, eleitos/as, discípulos/as, irmãos/ãs” (CNBB. Missão e Ministérios dos Cristãos Leigos e Leigas - 62, 1999, número 104-106. Veja a íntegra do Documento. Infelizmente, depois de 17 anos, no Documento “Cristãos Leigos e Leigas na Igreja e na Sociedade - 105 - 2016, a CNBB esqueceu o Documento anterior e voltou a reafirmar o binômio Hierarquia e Laicato)


Na Igreja, todas as eleições - nas Pastorais e nos Conselhos Pastorais (os novos Sínodos) - devem ser comunitárias e ter valor deliberativo, em comunhão com as outras Igrejas e com a Igreja de Roma, cujo bispo (papa deriva de pai) é sinal de unidade de todas as Igrejas numa só Igreja.


4ª. A Igreja Cristá Católica precisa se despojar de todas as formas de luxo, poder e triunfalismo


Para fazer isso, a Igreja deve seguir o caminho que Jesus (Caminho, Verdade e Vida) fez, desde a manjedoura de um estábulo, onde nasceu como sem-teto, até na Cruz, onde morreu como criminoso, acusado de “subverter” o povo. Ora, para seguir o caminho de Jesus, a Igreja precisa:

  • Acabar com todos os títulos honoríficos (eminência, excelência, monsenhor e muitos outros). Ficar somente com os títulos acadêmicos, que dizem qual é a área na qual o irmão ou a irmã está mais preparado ou preparada para servir e os títulos profissionais que indicam qual o serviço que o irmão ou a irmã presta.

  • Acabar com o cardinalato e sua sagrada púrpura (que de sagrado não tem nada).

  • Acabar com os palácios episcopais (que estão voltando), com outros palácios e com todo tipo de luxo na construção das Igrejas, nos vasos e vestimentas litúrgicas, mas preservando tudo o que é patrimônio histórico-cultural - positivo ou negativo - cuja memória nos ensina hoje (um exemplo: a Igreja de S. Francisco de Assis, em Salvador - BA, com o interior revestido em ouro (“Igreja de ouro”). Pergunto: Logo São Francisco? Que contradição!).

  • Acabar com todas as manifestações e celebrações triunfalistas. A Igreja deve ser sal da terra, fermento na massa e luz do mundo.

  • Acabar com todas as formas de poder. Na Igreja - além dos serviços (ministérios) das diferentes pastorais - só deve existir o serviço (ministério) da coordenação com sua secretaria.

  • Acabar, por fim, com a Igreja - Estado: o maior equívoco histórico, que não tem nada a ver com o Evangelho. Como? De duas maneiras:

º Devolvendo o Estado do Vaticano ao Estado italiano, com a responsabilidade de preservar seu patrimônio histórico-cultural, seja positivo que negativo, ou:

º Criando um pequeno Estado autônomo com a mesma responsabilidade e totalmente independente da Igreja, como - por exemplo - a República de S. Marino na Itália e outros.

Quem sabe, um dia tudo isso se tornará realidade e teremos uma Igreja Cristã Católica verdadeiramente evangélica. Invoquemos o Espírito Santo. (Vejam na imagem abaixo: o Papa Francisco é um irmão igual aos outros do grupo)     


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)   
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br - Cel. e WA: (62) 9 9979 2282
 
https://freimarcos.blogspot.com/ - Goiânia, 26 de maio de 2025




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