No dia 16 de fevereiro/11 completa 6
anos do despejo dos Moradores da Ocupação "Sonho Real" no Parque
Oeste Industrial, na Região Sudoeste de Goiânia, Goiás. Pelas proporções e pelo
requinte de desumanidade, trata-se da maior violação dos Direitos Humanos em
toda a história de Goiânia, e de uma das maiores do Brasil e do mundo, em áreas
urbanas. É um caso que não pode ser esquecido e nem pode ficar impune.
Fazendo
a memória da Ocupação “Sonho Real”, queremos levantar duas questões, que
precisam ser analisadas e aprofundadas.
A
primeira é a constitucionalidade ou não da liminar de reintegração de posse da
Juíza Substituta Dra. Grace Corrêa Pereira. A meu ver, essa liminar - além de
ser eticamente irresponsável - é inconstitucional, por considerar a propriedade
privada como um direito absoluto, ao qual tudo deve ser sacrificado, inclusive
a vida. A Constituição Federal diz de maneira muito clara: "a propriedade
atenderá a sua função social" (Art. 5, XXIII). A área da Ocupação
"Sonho Real" - loteamento de 1957 - nunca cumpriu a função social e
podia ser desapropriada "por interesse social" (Art. 5, XXIV).
Do
ponto de vista ético, as Autoridades e os Militares que cumpriram a liminar,
podiam, em nome da "objeção de consciência", praticar a
"desobediência civil", mas - por falta de discernimento e de
maturidade humana - não o fizeram.
A
segunda questão é a maneira como foi cumprida a liminar de reintegração de
posse. Mesmo admitindo a hipótese que a liminar fosse constitucional e
prescindindo de argumentos baseados na Ética e na Justiça (que não são
somente argumentos legais), a maneira como foi realizado o despejo - as duas
Operações "Inquietação" e "Triunfo" - é totalmente
inconstitucional e ilegal, até para um leigo em assuntos jurídicos. Basta o bom
senso.
Como
escrevi no artigo “A verdade vos libertará”: “Se em nossa sociedade existisse
um mínimo de justiça, os responsáveis por esse crime - que são o governador
Marconi Perillo, o secretário de Segurança Pública Jônathas Silva e o
comandante da Polícia Militar Coronel Marciano Basílio de Queiroz da época (com
a omissão do Poder Municipal e a conivência do Judiciário), e que até hoje
estão impunes - deveriam ser processados, condenados e impedidos de se
candidatarem a qualquer cargo público” (Diário da Manhã, 30/01/10).
Queremos
agora fazer a memória dos principais fatos:
De
6 a 15 de fevereiro de 2005, de 0 às 6h, a Polícia Militar do Estado de Goiás
começou a ação de reintegração de posse, realizando a chamada "Operação
Inquietação", que foram dez dias de tortura
física e psicológica coletiva. Cercou a área com viaturas, impediu a
entrada e a saída de pessoas e cortou o fornecimento de energia elétrica. Com
as sirenes ligadas, com o barulho de disparos de armas de fogo, com a explosão
de bombas de efeito moral, gás de pimenta e lacrimogêneo, a Polícia Militar
promoveu o terror entre os Moradores da Ocupação. Nenhuma lei permite uma
Operação noturna criminosa como essa. Até hoje, temos crianças traumatizadas.
No
dia 16 de fevereiro de 2005, a Polícia Militar do Estado de Goiás realizou uma
verdadeira Operação Militar de Guerra, cinicamente chamada "Operação
Triunfo". Numa hora e quarenta e cinco minutos, cerca de 14.000 pessoas
foram despejadas de suas moradias de maneira violenta, truculenta e sem nenhum
respeito pela dignidade da pessoa humana. A Operação Militar produziu 2 vítimas
fatais (Pedro e Vagner), 16 feridos à bala, tornando-se um desses paraplégico
(Marcelo Henrique) e 800 pessoas detidas (suspeita-se com razão que o número
dos mortos e feridos seja bem maior). Esses crimes continuam até hoje impunes.
Nessa
Operação Militar criminosa, ilegal e imoral, todos os Direitos Humanos
fundamentais foram gravemente violados: o Direito à Vida, o Direito à Moradia,
o Direito ao Trabalho, o Direito à Saúde, o Direito à Alimentação e à Água, os
Direitos da Criança e do Adolescente, os Direitos da Mulher, os Direitos dos
Idosos e os Direitos das Pessoas com necessidades especiais.
Depois
do despejo forçado e violento, e depois de passar uma noite acampadas na
Catedral de Goiânia (onde aconteceu também o velório de Vagner e Pedro num
clima de muita indignação e sofrimento), cerca de mil famílias (aproximadamente
2.500 pessoas), que não tinham para onde ir, ficaram alojadas nos Ginásios de
Esportes dos Bairros Novo Horizonte e Capuava (por mais de três meses) e, em
seguida, no Acampamento do Grajaú (por mais de três anos) como verdadeiros
refugiados de guerra. Nesse período, diversas pessoas - sobretudo crianças e
idosos - morreram em consequência das condições subumanas de vida, vítimas do
descaso do Poder Público do Estado de
Goiás e da Prefeitura de Goiânia. Quem vai pagar por isso?
No
dia 24 de fevereiro/05, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência
da República criou uma Comissão Especial com
o objetivo de apurar as violações aos Direitos Humanos na Operação de
reintegração de posse, realizada por Policiais Militares no Parque Oeste
Industrial em Goiânia, Estado de Goiás, no dia 16 de fevereiro do mesmo ano
(Cf. Resolução N. 1, no DOU - Seção 2, de 24/02/05)
A Comissão analisou os três
requisitos necessários para a “federalização” dos crimes contra os Direitos
Humanos; primeiro: que haja grave violação dos Direitos Humanos; segundo: que o
fato praticado
seja passível de sujeitar a União à responsabilidade internacional, por
obrigações anteriormente assumidas em tratados e em plena vigência no país;
terceiro e último: que exista algum comprometimento institucional viciado, que
afete a estrutura e as relações independentes dos órgãos públicos estatais,
ocasionando a necessidade de ruptura no pacto federativo para se restaurar a
normalidade institucional e assegurar a proteção dos Direitos Humanos.
A Comissão reconheceu a
existência do primeiro e do segundo requisitos, mas não reconheceu a existência
do terceiro. Portanto, no dia 10 de abril/06, o relator da Comissão, Procurador
da República Cláudio Drewes José de Siqueira - apoiado em seu parecer pelos
demais membros da Comissão - conclui: “Sugiro o não deslocamento da
competência para Justiça Federal do
caso Parque Oeste Industrial,
no que se refere a
apuração e ao julgamento dos crimes ocorridos na desocupação, por não restarem
preenchidos todos os requisitos constitucionalmente exigidos, recomendando, no
entanto, pela continuidade da observação pelo Conselho de Defesa dos Direitos
da Pessoa Humana dos trabalhos da Justiça Estadual” (Cf. Relatório da Comissão
Especial).
No
dia 21 de março/09, o Procurador da República, Procurador Regional dos Direitos
do Cidadão, Ailton Benedito de Souza retomou o parecer da Comissão Especial da
Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e, no
artigo "O Parque Oeste e a lei", escreveu: "Ambos os Ministérios
Públicos (MPF e MPE) terminaram integrando uma Comissão Especial cujos
trabalhos encerraram-se, no ano de 2006, na conclusão de que não havia
necessidade de "federalizar" a persecução dos culpados pelos fatos
criminosos relativos ao caso Parque Oeste Industrial. Concluiu-se que estava
ausente um pressuposto objetivo do IDC (Incidente de Deslocamento de
Competência para a Justiça Federal), ou seja, não havia omissão, leniência,
excessiva demora, conluio ou conivência dos órgãos do Estado de Goiás para
inviabilizar persecução criminal dos responsáveis".
Nem
passa pela cabeça do Procurador da República que o crime, nesse caso, possa ter
sido praticado pelo Poder Executivo do Estado de Goiás, com a conivência do
Poder Judiciário e a omissão da Prefeitura de Goiânia. Por isso, ele termina dizendo:
"Nenhum fato ou circunstância sobreveio que possa justificar, atualmente,
o deslocamento da competência do caso Parque Oeste Industrial para a Justiça
Federal" (O Popular, 21/03/09, p. 7).
Questionamos
as premissas, que logicamente levaram a Comissão Especial da Secretaria
Especial dos Direitos Humanos, integrada pelos Ministérios Públicos (MPF e
MPE), e o Procurador da República citado, às conclusões acima referidas. As
premissas não correspondem à verdade dos fatos.
Sabemos
que os Militares - que, por ordem superior, cumpriram a liminar de despejo -
têm sua parcela de responsabilidade pessoal. Não se trata, porém, de investigar
e julgar (como querem a Comissão Especial e o Promotor da República Ailton
Benedito) só os possíveis abusos ou excessos de alguns Militares, praticados na
execução das Operações "Inquietação" e "Triunfo". Trata-se,
sobretudo, de investigar e julgar as próprias Operações “Inquietação” e
“Triunfo” como Operações criminosas, enquanto tais. Independentemente dos
abusos ou excessos cometidos por alguns Militares, essas Operações são um crime
planejado. O despejo de 14.000 pessoas numa hora e 45 minutos é uma violência e
uma iniquidade humana premeditada.
Além
de ser um dos piores crimes já praticados contra os Direitos Humanos e a Ética
no Brasil e no mundo, as Operações "Inquietação" e
"Triunfo", são também um crime que não só fere a Constituição e as
Leis brasileiras, mas também as Leis internacionais.
É
justamente esse crime que deve ser “federalizado”. Não se pode – como quer a
Justiça Estadual - ficar só na investigação e julgamento dos abusos ou excessos
cometidos por alguns Militares. Ficar só nisso, significa fugir do verdadeiro
problema, significa escamotear a verdade e procurar um bode expiatório. Como
quem praticou o crime em questão foi o Poder Executivo do Estado de Goiás com a
conivência do Poder Judiciário e a omissão do Poder Público Municipal, pela
lógica, esses Poderes não têm as mínimas condições de investigar e julgar a si
próprios. E é por isso que se justifica a "federalização" do caso.
Infelizmente,
os crimes praticados pelo Poder Público, em conluio com aqueles que detêm o
Poder Econômico, nunca são seriamente investigados e julgados, a não ser nas
Instâncias internacionais da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da
OEA. Por isso, recorreu-se à Conte Internacional dos Direitos Humanos da OEA.
Pretende-se
também realizar um Tribunal Popular para julgar e condenar, no banco dos réus,
o Poder Público, Estadual e Municipal. Pretende-se ainda fazer uma Campanha
para que ninguém compre lotes na área -
até hoje sem nenhuma função social - da ex-Ocupação "Sonho Real", e
para que a área, com base na Constituição Federal, seja declarada de
"utilidade pública" e desapropriada (Art. 5, XXIV). Como já foi dito
em 2009 num Ato Público, trata-se de uma área impregnada de sangue inocente;
uma área que, no sentimento religioso do Povo, é "amaldiçoada" por
Deus e só será "libertada" da maldição divina se for utilizada para o
bem comum, e em benefício dos Pobres e Excluídos da sociedade. Lembrem os
responsáveis por essa violação dos Direitos Humanos, praticada com requinte de
crueldade, que Deus é justo. Aguardem!
Pretende-se,
enfim, lutar para que a posição equivocada da Comissão Especial da Secretaria
Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República seja revista e o
crime bárbaro do Parque Oeste Industrial, em Goiânia, praticado pelo Estado de
Goiás, seja “federalizado”. Os que defendemos e promovemos os Direitos Humanos
e a Ética, não desistimos. A esperança de um mundo novo, onde haja igualdade e
justiça para todos, nunca morre. Jesus Cristo, cuja prática os verdadeiros
cristãos seguem, sempre esteve ao lado dos injustiçados, dos empobrecidos e dos
excluídos.
Diário da Manhã, Opinião Pública,
Goiânia, 16/02/11, p. 2
Fr. Marcos Sassatelli, Frade Dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia
Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof.
na Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão
Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de
Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra
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