A concepção de espiritualidade está
intimamente ligada à concepção de ser humano. Hoje, a antropologia filosófica e
a antropologia teológica - que integram os dados das ciências humanas - têm uma
concepção unitária (não dualista) de ser humano. Mesmo na diversidade de
abordagens e com enfoques diferentes, o ser humano é definido como um ser
pluridimensional e um ser plurirrelacional.
Como
ser pluridimensional, o ser humano é corpo, é vida e é espírito. A palavra
corpo significa o ser humano todo, enquanto ser corpóreo; a palavra vida
significa o ser humano todo, enquanto ser vivente (ser bio-psíquico); a palavra
espírito significa o ser humano todo, enquanto ser espiritual (ser pessoal). O
sujeito é sempre o ser humano todo e o destaque é dado a uma das dimensões do
ser humano. Em outras palavras, o ser humano é totalmente (ou, integralmente)
corpo, é totalmente vida e é totalmente espírito (Cf. Mounier, E. O
Personalismo. Livraria Morais, Lisboa, 19642, p. 39). Cada uma dessas dimensões
- a corporeidade (integrando a sexualidade), a bio-psiquicidade e a
espiritualidade (que, por sua vez, se desdobram em outras dimensões) - marca o
ser humano todo, ou seja, perpassa o ser humano em sua totalidade, mas não é a
totalidade do ser humano.
Como
ser plurirrelacional (ser de relações), o ser humano se relaciona com o mundo
(material e vivente), com os outros (semelhantes) e com o Outro absoluto
(Deus). As relações são relações sociais
(sócio-econômico-político-ecológico-culturais) ou estruturais e relações
individuais ou interindividuais. As dimensões e as relações são constitutivas
do ser humano, ou, em outras palavras, fazem o ser humano.
A
partir destas considerações de caráter antropológico, podemos dizer que a
espiritualidade é o jeito “humano” de ser e de viver do ser humano, enquanto
ser espiritual, A espiritualidade envolve o ser
humano todo, em todas as suas dimensões e relações. Ela perpassa, impregna e
absorve a totalidade do ser humano, a totalidade de sua existência. Como, porém,
o ser humano, por ser histórico (situado e datado), é um "vir-a-ser"
e um ser de busca permanente, ele pode - ao longo de sua vida no mundo e na
sociedade - adquirir uma profundidade e intensidade sempre maior na vivência do
"humano", até o fim da vida. Portanto, a espiritualidade é, antes de
tudo, espiritualidade humana. Ser espirituais significa ser “humanos”, viver a
humanidade em graus crescentes de profundidade e intensidade. Nunca ninguém
exagera em ser “humano”, nunca ninguém é “humano” demais.
Para
os cristãos, à luz da fé, a espiritualidade humana se torna espiritualidade
cristã. Não pode, porém, ser espiritualidade cristã se não for primeiro (não no
sentido cronológico, mas lógico) espiritualidade humana. A espiritualidade
cristã é uma espiritualidade radicalmente humana. Os cristãos, em nome da fé,
não temos o direito de sermos omissos, mas devemos estar sempre na linha de
frente em todas as lutas que visam tornar a sociedade e o mundo mais humanos.
“As
alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos seres humanos de
hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e
as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não se
encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração” (Concílio
Vaticano II. A Igreja no mundo de hoje - GS, 1). Trata-se de uma solidariedade
(compaixão) entranhável dos cristãos com toda a humanidade. Os cristãos
deveríamos ser, por assim dizer, especialistas em humanidade. Acreditamos os
cristãos que "o mistério do ser humano só se torna claro verdadeiramente
no mistério do Verbo encarnado. (…) Cristo manifesta plenamente o ser humano ao
próprio ser humano e lhe descobre a sua altíssima vocação" (GS, 22).
"Todo aquele que segue Cristo, o Homem perfeito, torna-se ele também mais
ser humano" (GS, 41). "A razão principal da dignidade humana consiste
na vocação do ser humano para a comunhão com Deus" (GS, 19).
"A fé esclarece todas as coisas
com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do ser humano.
E por isso orienta a mente para soluções plenamente humanas" (GS, 11).
Reparem que o texto não diz “soluções não somente humanas, mas também
sobrenaturais” (visão dualista da vida humana), mas diz “soluções plenamente
humanas”. Para os cristãos o plenamente humano inclui a dimensão da fé. O
cristianismo é um humanismo pleno, um humanismo radical. Pela fé, os cristãos
descobrem sempre mais claramente o verdadeiro sentido da vida (na história),
até o seu pleno, último e definitivo sentido (na meta-história).
A espiritualidade cristã é uma espiritualidade
pascal: cristológica, pneumatológica e trinitária (comunitária - eclesial).
Viver a espiritualidade cristã significa viver como Jesus viveu, morrer como
Jesus morreu, ressuscitar como Jesus ressuscitou. Em outras palavras, viver a
espiritualidade cristã significa fazer acontecer a Páscoa de Jesus na vida
pessoal, na história humana e no mundo todo. A Páscoa (o mistério pascal), que
é passagem da morte (e de tudo o que a morte significa) para a vida (vida nova
em Cristo, vida segundo o Espírito) é uma realidade dinâmica (processual), que
impregna a totalidade da existência humana no mundo. Para os cristãos a vida é
uma caminhada pascal. Sempre precisamos os cristãos morrer a tudo o que está
errado em nossa vida, sepultando os nossos pecados (o ser humano velho), e
sempre precisamos ressuscitar para a vida nova em Cristo (o ser humano novo),
até o fim da vida. "Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em
plenitude" (Jo 10,10).
"A experiência batismal é o
ponto de início de toda espiritualidade cristã que se funda na Trindade"
(Documento de Aparecida - DA, 240). “Banhados em Cristo, somos uma nova
criatura, as coisas antigas já se passaram, somos nascidos de novo” (Canto
litúrgico). "A vivência da escuta da Palavra, comunhão fraterna e
compromisso com a justiça alimenta e expressa a espiritualidade batismal, que
configura o cristão com Cristo, que por amor entrega a sua vida para que todos
tenham vida" (Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil
2008-2010 - DGAE, 87).
O batismo - e a Crisma confirma,
completa, aprofunda e radicaliza a consagração batismal - “nos insere no
mistério de Cristo morto e ressuscitado. Cada batizado é chamado a seguir Jesus
Cristo e a conformar a própria vida a dele, caminhando sempre na novidade de
vida (Cf. Rm 6,4). A experiência íntima com o Cristo pascal, cresce,
desenvolve-se e se consolida, participando da Eucaristia, na qual, cada
batizado se une com Cristo na oferta da própria vida ao Pai mediante o Espírito.
A vida cristã é fundamentalmente vida em Cristo pelo dom do Espírito, fruto da
Páscoa. Ser espiritual significa viver segundo o Espírito de Deus. A
espiritualidade tem a ver com tudo o que somos e fazemos, segundo o Espírito. O
Espírito acende em nós o amor, a paixão por Jesus Cristo e nos leva a pautar
toda a nossa vida pela intimidade com ele" (Ir. Veronice Fernandes, pddm -
www.cnbbsul1.org.br
- 25/03/08)
A espiritualidade cristã, como espiritualidade pascal, é o
seguimento de Jesus. “Se alimenta de uma verdadeira paixão por Ele, de uma
amizade singular (...) de uma compenetração intimíssima, comunhão mesmo” (Dom
Pedro Casaldáliga, Nosso Deus tem um sonho e nós também: Carta espiritual às
comunidades. X Encontro Intereclesial, Ilhéus (BA), 11-15 de julho de 2000). No
mundo de hoje - cujos desafios são para nós os apelos de Deus - vivamos os
cristãos, sempre mais intensamente, a espiritualidade pascal, como caminho de
realização humana e de felicidade.
Diário da Manhã, Goiânia, 21/04/11,
p.15
http://www.adital.com.br/site/noticia_imp.asp?lang=PT&img=N&cod=55841 26/04/11 e http://mf.pagotto.zip.net/arch2011-04-01_2011-04-30.html 26/04/11
Fr. Marcos
Sassatelli, Frade Dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia
Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na
Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão
Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra
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