“Diga-me com quem você anda, que eu direi quem
você é”. Parafraseando o sábio ditado popular, podemos dizer: “Quem anda com
Ficha Limpa é Ficha Limpa e quem anda com Ficha Suja é Ficha Suja”. A Lei da
Ficha Limpa prevê que políticos condenados em julgamentos feitos por mais de um
juiz (ou seja, em segunda instância), cassados ou que tenham renunciado para
evitar a cassação, sejam impedidos de disputar cargos eletivos.
Depois
de realizar a coleta, no Brasil todo, de mais de um milhão de assinaturas, a
Lei da Ficha Limpa foi aprovada em maio de 2010 no Congresso: por ampla maioria
de votos na Câmara Federal e por unanimidade no Senado da República. Foi
sancionada sem vetos em junho de 2010 pelo Poder Executivo; foi aplicada pelos
Tribunais Regionais Eleitorais; foi confirmada pelo Tribunal Superior
Eleitoral; e foi aplicada por decisão do próprio Supremo Tribunal Federal.
Enfim - o que é mais significativo - foi aprovada em todos os níveis e
segmentos da opinião pública nacional.
Mesmo
com tudo isso, mesmo diante do clamor geral do povo por justiça, 6 ministros (a
maioria) do STF, com destaque para o recém-empossado ministro Luiz Fux, preferiram se acovardar e dar ouvidos aos
recursos dos políticos corruptos. No dia 23 de março, o STF decidiu, por 6
votos a 5, que os efeitos da Lei da Ficha Limpa não se aplicam à eleição de
2010. Para tomar essa decisão, o STF se baseou na Constituição Federal, que
reza: “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua
publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua
vigência” (Art. 16).
Propriamente
falando, a Lei da Ficha Limpa não altera o processo eleitoral, mas simplesmente
codifica, de forma clara e objetiva, aquilo que sempre deveria ter sido feito
(e ainda deve ser feito) na hora de aceitar ou não os candidatos a cargos
eletivos. A corrupção não deve ser rejeitada porque existe a Lei da Ficha
Limpa, mas por ser corrupção. A Lei da Ficha Limpa representa - embora o STF não
queira reconhecer - um avanço na consciência ética da sociedade brasileira. O
mesmo pode ser dito a respeito dos direitos humanos. Eles não existem porque
foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos ou porque foram
incorporados à Constituição do Brasil e de outros países, mas por serem
direitos inerentes à condição humana no mundo. A codificação dos direitos humanos representa também um avanço
na consciência ética dos países.
O
ministro Luiz Fux, que, quando foi indicado para o STF, elogiou a Ficha Limpa,
dizendo que ela 'conspira a favor da moralidade', “quebrou todas as
expectativas e frustrou a sociedade brasileira ao dar o voto do desempate”. Com
isso, o ministro revelou sua verdadeira face e deu “um tapa na cara da
sociedade brasileira que lutou arduamente pela aprovação da Ficha Limpa”
(www.avaaz.org).
Não
adianta o ministro dizer que ficou “impressionado com os propósitos da Lei”,
que ficou “empenhado em tentar construir uma solução” e que, não conseguindo
dormir, acordou às três horas e levou “seis horas para montar o voto”. Não
adianta dizer que, ao julgar, tentou equilibrar “razão e sensibilidade” e que
“debaixo da toga de juiz também bate um coração” (Folha de S. Paulo,
Entrevista, 28/03/11, p. A16). O povo não é bobo! O ministro Luiz Fux, ao
endossar o voto do relator Gilmar Mendes (contra o próprio parecer do
presidente do TSE, Ricardo Lewandowski) desapontou e decepcionou a todos. Seu
comportamento não se justifica, é inaceitável e merece o repúdio da sociedade.
E
tem mais. A imprensa afirma: “Derrubada para a eleição de 2010, a validade da
Ficha Limpa também está ameaçada para a disputa de 2012 e dos anos seguintes.
Ministros do Supremo Tribunal Federal avaliam que aspectos da Lei podem estar
em conflito com a Constituição e podem ser anulados. São duas as principais
incertezas que surgiram do julgamento de 23 de março: o princípio da 'presunção
da inocência' e a retroatividade da lei para crimes cometidos antes de sua
vigência. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ricardo Lewandowski,
admite que a Lei pode ser esvaziada: 'Não tem nada de seguro. Não é certo que a
Lei valerá para 2012'” (Folha de S. Paulo, 25/03/11, p. A9). É inacreditável!
Vejam
agora quais são os verdadeiros interesses e as reais preocupações do STF. Em
agosto de 2010, Cezar Peluso, presidente do STF, enviou à Câmara Federal um
projeto “elevando de R$ 26.723 para R$ 30.675 os subsídios dos ministros do
Supremo Tribunal Federal (STF). O reajuste tem efeito cascata em toda a
magistratura e serve como teto salarial para o funcionalismo público”. A
tendência atual dos parlamentares é deixar o projeto na gaveta, “até que o
Congresso aprove uma alteração na Constituição para igualar os salários dos
deputados, dos senadores, do presidente da República e do vice-presidente e dos
ministros de Estado aos vencimentos dos ministros do STF”. Com essa mudança
constitucional - reparem a artimanha – “os parlamentares esperam diminuir o
desgaste político com a população cada vez que forem aumentar os seus próprios
salários, diluindo o impacto negativo com o Judiciário e com o Executivo” (O
Popular, 29/03/11, p. 12).
Lendo
essa notícia, quase cai de costas. Que pouca vergonha! Que afronta à miséria do
nosso povo! Realmente, está cada vez mais claro que a corrupção e a imoralidade
públicas não são tanto a causa, mas são sobretudo a consequência de um “sistema
econômico iníquo” (Documento de Aparecida - DA, 385) ou, em outra palavras, de
um “sistema nefasto” (Populorum Progressio - PP, 26), que é o sistema
capitalista neoliberal.
Do
ponto de vista ético, com a votação de 23 de março/11, o STF, como
instituição, tornou-se Ficha Suja e os
ministros Luiz Fux, Gilmar Mendes, José
Antônio Toffoli, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Cezar Peluso, como
pessoas, tornaram-se também Fichas Sujas. Entre os ministros, não houve
consenso a respeito da interpretação da Lei da Ficha Limpa e Carmem Lúcia,
Joaquim Barbosa, Carlos Ayres Britto, Ricardo Lewandowski e Ellen Gracie
votaram a favor de sua aplicação imediata.
Será
que o STF tem consciência do “mal moral” que causou à sociedade brasileira?
Será que o ministro Luiz Fux - que, mesmo afirmando o contrário, desempatou o
resultado da votação - tem consciência da gravidade do ato que praticou, em
nome de uma interpretação legalista, fundamentalista e farisáica da lei
eleitoral? Será que ele consegue dormir com a consciência tranquila? Não dá
para entender! Chegou a hora de deixar de lado os malabarismos jurídicos ou os
artifícios legais hipócritas e ouvir o clamor do povo, olhando não somente a
letra, mas também e sobretudo o espírito da Lei. “A letra mata, o Espírito dá
vida” (2Cor 3, 6).
Enfim
- como, pela Constituição Federal, a perda ou suspensão de direitos políticos
se dá no caso de “condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem
seus efeitos” (Art. 15, III) - eu pergunto: Já que a condenação dos candidatos
Fichas Sujas por um órgão colegiado da Justiça tem garantia constitucional, por
que o nosso Judiciário não acelera o cumprimento do seu dever primário de julgar
os milhares de processos de Fichas Sujas empilhados nas suas gavetas da
impunidade? Se fizer isso, terá certamente o apoio incondicional da sociedade
e, sobretudo, de todos aquele/as que lutam por justiça, por dignidade humana e
por um Brasil diferente.
Diário da Manhã, Opinião Pública, Goiânia, 01/04/11, p. 3
Fr. Marcos Sassatelli, Frade Dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia
Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na
Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão
Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra
Nenhum comentário:
Postar um comentário