segunda-feira, 25 de março de 2013

"Francisco, reconstrói a minha Igreja"

No dia 13 do corrente mês de março/13, Jorge Mario Bergoglio, 76 anos, foi eleito bispo de Roma e escolheu o nome Francisco. É uma homenagem ao homem que, da pequena cidade de Assis (Itália), revolucionou a Igreja de seu tempo, no início do século 13 e é um programa de vida. Francisco de Assis, numa oração, ouviu o pedido de Jesus: “Francisco, reconstrói a minha Igreja”. Hoje, Francisco - o novo bispo de Roma - deve estar ouvindo o mesmo pedido. Que o Espírito Santo o ilumine e lhe dê a força necessária para reconstruir a Igreja de Jesus de Nazaré!
Apresentando-se à Igreja de Roma e ao mundo, as primeiras palavras que Francisco pronunciou - certamente inspiradas pelo Espírito Santo - são carregadas de um forte simbolismo e revolucionam, podemos dizer, todas as relações existentes na Igreja. São palavras que revelam uma entranhada empatia com o povo. Francisco coloca-se diante do povo com toda espontaneidade, simplicidade, humildade e fraternidade. Considera-se um irmão pastor, igual aos outros e às outras, que quer servir, caminhar junto com seu povo e dar a vida por ele. É o que Jesus fez. Que Ele abençoe o nosso irmão Francisco em sua nova missão!
Francisco nem usa a palavra “papa”, mas apresenta-se como bispo da Igreja de Roma, que “preside na caridade todas as Igrejas”. Reparem: “na caridade” e não na dominação ou imposição.Trata-se de uma outra eclesiologia, de uma eclesiologia que volta às fontes e entende a Igreja como Comunidade de irmãos e irmãs.
Meditemos suas primeiras palavras, que revelam um jeito novo e, ao mesmo tempo, antigo de ser Igreja: “Irmãos e Irmãs, boa noite! Vocês sabem que o dever do conclave era de dar um bispo a Roma. Parece que meus irmãos cardeais foram buscá-lo quase no fim do mundo. Mas, estamos aqui! Vos agradeço pela acolhida. A comunidade diocesana de Roma tem o seu bispo. Obrigado! Antes de tudo, gostaria de fazer uma oração pelo nosso bispo emérito, Bento XVI. Rezemos todos juntos por ele, para que Deus o abençoe e Nossa Senhora o proteja. (segue a oração do Pai Nosso, da Ave Maria e do Glória ao Pai).
E agora comecemos este caminho bispo e povo. Este é o caminho da Igreja de Roma, que é aquela que preside na caridade todas as Igrejas. Um caminho de fraternidade, de amor, de confiança entre nós. Rezemos sempre por nós, um pelo outro. Rezemos por todo o mundo, para que haja uma grande fraternidade. Desejo a vocês que este caminho de Igreja, que hoje começamos e no qual me ajudará o meu cardeal Vigário, aqui presente, seja frutuoso para a evangelização desta tão bela cidade.
Gostaria, agora, de dar a bênção, mas antes vos peço um favor. Antes que o bispo abençoe o povo, vos peço que vocês rezem ao Senhor para que me abençoe. A oração do povo pedindo a bênção pelo seu bispo. Façamos em silêncio esta oração de vocês sobre mim”! (momento de silêncio). Agora dou a benção a vocês e a todo o mundo, a todos os homens e mulheres de boa vontade (benção).
Irmãos e irmãs, vos deixo. Muito obrigado pela acolhida. Rezai por mim e até breve! Nos veremos logo: amanhã quero ir rezar à Nossa Senhora para que ela proteja Roma inteira. Boa noite e bom repouso!”. Quanta ternura, quanta bondade e quanto amor nessas palavras!
Nos primeiros dias de sua nova missão, pudemos presenciar, com o coração vibrando, a muitos gestos de quebra de protocolo e a muitas atitudes de despojamento do irmão e pastor Francisco, que mostram claramente como - segundo ele - deve ser a Igreja de Jesus de Nazaré: uma Igreja realmente evangélica, despojada de toda pompa, de toda suntuosidade, de toda ostentação e de todo poder.
Para ser fiel à sua missão no mundo, penso que a Igreja (Igreja Universal e Igrejas Particulares), periodicamente e sempre que for necessário, deve:
1. Reconhecer não só os pecados pessoais de seus membros, mas também e sobretudo o pecado estrutural da Igreja-instituição: omissões, traições, covardias, alianças comprometedoras com os Herodes de hoje, e falta de coragem profética na denúncia das injustiças e das violações dos direitos humanos.
2. Pedir publicamente perdão a todos e a todas, crentes e não crentes.
3. Renovar suas estruturas, na fidelidade às exigências do Evangelho.
4. Comprometer-se na reconstrução de uma Igreja que seja, cada vez mais, uma Igreja igualitária, de irmãos e irmãs, comunitária (Igreja-comunidade, Igreja-comunhão); uma Igreja Povo de Deus e toda ministerial; uma Igreja que busca sempre o consenso, reconhecendo e valorizando o “senso da fé” do povo cristão; uma Igreja que, a todo momento, perscruta os sinais dos tempos, interpretando-os à luz do Evangelho; uma Igreja pobre, que faz a opção pelos pobres; uma Igreja que reconhece e valoriza o diferente (uma Igreja ecumênica e macroecumênica); enfim, uma Igreja que se alia aos Movimentos e Organizações Sociais Populares e a todos aqueles e aquelas que lutam por um Mundo Novo, de justiça e irmandade, que - à luz da fé - é a utopia do Reino de Deus, acontecendo na história humana e cósmica.
Dom Aloísio Lorscheider - numa síntese muito bem formulada - oferece-nos uma fotografia nítida da Igreja que o Concílio sonhou e que nós também sonhamos. “O Vaticano II - diz ele - faz-nos passar de uma Igreja-instituição ou de uma Igreja-sociedade perfeita para uma Igreja-comunidade, inserida no mundo, a serviço do Reino de Deus; de uma Igreja-poder para uma Igreja pobre, despojada, peregrina; de uma Igreja-autoridade para uma Igreja serva, servidora, ministerial; de uma Igreja piramidal para uma Igreja-povo; de uma Igreja pura e sem mancha para uma Igreja santa e pecadora, sempre necessitada de conversão, de reforma; de uma Igreja-cristandade para uma Igreja-missão, uma Igreja toda ela missionária” (Texto citado por Dom Geraldo Majella Agnelo na contra-capa da Liturgia Diária, novembro de 2012).
Francisco, irmão e pastor, é um sinal de esperança e nos faz crer que essa Igreja é possível e vai acontecer. É a vontade de Jesus de Nazaré.

Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano,
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 20 de março de 2013
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br




“A Igreja se apresenta e quer realmente ser a Igreja de todos,
em particular, a Igreja dos pobres” (João XXIII, 11 de setembro de 1962)
"Como eu gostaria de uma Igreja pobre e para os pobres" (Francisco, 16 de março de 2013)

A espiritualidade pascal como “espiritualidade do seguimento de Jesus”

A espiritualidade pascal - sobre a qual refletimos no artigo anterior - é espiritualidade do seguimento de Jesus. "Todo aquele que segue Cristo, o Homem perfeito, torna-se ele também mais ser humano" (Concílio Vaticano II, A Igreja no mundo de hoje - GS, 41).
A espiritualidade do seguimento de Jesus “se alimenta de uma verdadeira paixão por Ele, de uma amizade singular, (...) de uma compenetração intimíssima, comunhão mesmo” (Dom Pedro Casaldáliga, Nosso Deus tem um sonho e nós também: Carta espiritual às Comunidades. X Encontro Intereclesial, Ilhéus (BA), 11-15 de julho de 2000). Encara os desafios do mundo de hoje como apelos de Deus e é um caminho de libertação, de realização humana e de felicidade.
“O seguimento de Jesus é fruto de uma fascinação que responde ao desejo de realização humana, ao desejo de vida plena. O discípulo é alguém apaixonado por Cristo, a quem reconhece como mestre, que o conduz e acompanha" (Documento de Aparecida - DA, 277).
“No seguimento de Jesus Cristo, aprendemos e praticamos as bem-aventuranças do Reino, o estilo de vida do próprio Jesus: seu amor e obediência filial ao Pai, sua compaixão entranhável frente à dor humana, sua proximidade aos pobres e aos pequenos, sua fidelidade à missão encomendada, seu amor serviçal até à doação de sua vida. Hoje, contemplamos a Jesus Cristo tal como os Evangelhos nos transmitem para conhecermos o que Ele fez e para discernirmos o que nós devemos fazer nas atuais circunstâncias” (DA. 139).
Os cristãos/ãs são chamados a viver a espiritualidade do seguimento de Jesus a partir da opção pelos empobrecidos, oprimidos e excluídos da sociedade, sendo “profetas da vida” nas situações concretas da realidade humana e cósmica. “Como profetas da vida, queremos insistir que, nas intervenções sobre os recursos naturais, não predominem os interesses de grupos econômicos que arrasam irracionalmente as fontes da vida, em prejuízo de nações inteiras e da própria humanidade” (DA, 471).
Os religiosos/as e outras pessoas - que, por vocação, assumem o compromisso de uma especial consagração a Deus - são chamados a viver a espiritualidade do seguimento de Jesus como “projeto de vida cristã radical”, dando a vida por amor - numa entrega que, dentro das possibilidades humanas, deve ser total e exclusiva - a serviço do Reino de Deus. “Não existe amor maior do que dar a vida pelos amigos” (Jo 15,13).
A vida religiosa “é chamada a ser uma vida missionária, apaixonada pelo anúncio de Jesus-verdade do Pai, por isso mesmo radicalmente profética, capaz de mostrar, à luz de Cristo, as sombras do mundo atual e os caminhos de uma vida nova” (DA, 220).
Hoje, “é absolutamente necessário desejar que o resgate da responsabilidade ética motive e faça convergir ações de cunho social até de alcance planetário, visando o cuidado deste imenso ser vivo chamado planeta Terra. (…) A opção pela vida é o grande referencial. Assim tem sido e esta opção precisa ser reafirmada, recolocando no centro da pauta da humanidade o cuidado com o mundo vital” (CF11. Texto-Base, 94).
“O universo inteiro possui uma dimensão crística. A encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo possuem um significado cósmico, totalmente universal. A libertação da natureza, manipulada abusivamente pelo ser humano, está incluída na libertação do pecado humano para a vivência da liberdade concretizada no amor-serviço. Inclui as relações responsáveis e solidárias com as outras criaturas. Hoje, fica cada vez mais claro que a salvação do ser humano é inseparável da salvação da criação toda (Rm 8, 19-23). O destino de ambos está intimamente ligado” (Ib., 183).
“A criação toda geme e sofre dores de parto até agora. E não somente ela, mas também nós, que possuímos os primeiros frutos do Espírito, gememos no íntimo, esperando a adoção, a libertação para o nosso corpo. Na esperança, nós já fomos salvos” (Rm 8, 22-24).
Em poucas palavras, viver a espiritualidade do seguimento de Jesus, de maneira sempre mais envolvente e sempre mais intensa, significa: conhecer experiencialmente o projeto de Deus sobre o ser humano e o mundo, que é o Reino de Deus; aderir vivencial e conscientemente a esse projeto; e comprometer-se com a construção do mesmo dentro do processo histórico (fazer acontecer o projeto do Reino de Deus na história humana e cósmica).
Comprometer-se, pois, com a construção do projeto de Deus sobre o ser humano e o mundo dentro do processo histórico, significa: inserir-se na realidade, interpretá-la e transformá-la.
"Como Cristo, por sua Encarnação ligou-se às condições sociais e culturais dos seres humanos com quem conviveu; assim também deve a Igreja inserir-se nas sociedades, para que a todas possa oferecer o mistério da salvação e a vida trazida por Deus” (Concílio Vaticano II. A atividade missionária da Igreja - AG, 10).
"Para desempenhar sua missão, a Igreja, a todo momento, tem o dever de perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal modo que possa responder, de maneira adaptada a cada geração, às interrogações eternas sobre os significados da vida presente e futura e de suas relações mútuas. É necessário, por conseguinte, conhecer e entender o mundo no qual vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole frequentemente dramática" (GS, 4)..
“Como discípulos de Jesus Cristo, sentimo-nos desafiados a discernir os 'sinais dos tempos', à luz do Espírito Santos, para nos colocar a serviço do Reino, anunciado por Jesus, que veio para que todos tenham vida e 'para que a tenham em plenitude' (Jo, 10,10)" (DA, 33).
Que a nossa espiritualidade seja, de verdade e sempre mais, espiritualidade do seguimento de Jesus de Nazaré!

Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano,
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 13 de março de 2013
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br



“Comprometer-se, pois, com a construção do projeto de Deus sobre o ser humano e o mundo dentro do processo histórico, significa: inserir-se na realidade, interpretá-la e transformá-la”

quinta-feira, 7 de março de 2013

A espiritualidade humana como “espiritualidade cristã”

Para os cristãos/ãs, à luz da fé, a espiritualidade humana - sobre a qual refletimos no artigo anterior - é espiritualidade cristã. Não são duas espiritualidades diferentes. É a mesma espiritualidade. A espiritualidade não pode ser cristã se não for humana e, se for humana, é cristã. A fé é como um farol que ilumina a razão humana e amplia seus horizontes, tornado-a capaz de enxergar melhor e mais longe. Em outras palavras, a fé dá à razão humana as condições de compreender - sempre mais profunda e radicalmente - o ser humano. Em Cristo, o “humano” é tão humano que se torna “divino” e o “divino” é tão divino que se torna “humano”. "O mistério do ser humano (homem e mulher) só se torna claro verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado. Com efeito, Adão o primeiro homem era figura daquele que haveria de vir, isto é, de Cristo Senhor. Novo Adão, na mesma revelação do mistério do Pai e de seu amor, Cristo manifesta plenamente o ser humano ao próprio ser humano e lhe descobre a sua altíssima vocação" (Concílio Vaticano II. A Igreja no mundo de hoje - GS, 22). E ainda: "A fé esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do ser humano. E por isso orienta a mente para soluções plenamente humanas" (Ib., 11). Reparem que o texto não diz “soluções não somente humanas, mas também sobrenaturais” (visão dualista da vida humana), mas diz “soluções plenamente humanas”. O plenamente humano, para os cristãos/ãs, inclui a dimensão da fé. A fé - quando verdadeira - humaniza, torna o ser humano mais ser humano. O autêntico cristianismo é um humanismo pleno, é um humanismo radical. Pela condição, pois, do ser humano no mundo e pela ligação umbilical que ele tem com todos os seres, vivos ou não, podemos dizer que o humanismo pleno e radical é também um humanismo natural e um naturalismo humano. Ser cristãos/ãs é ser plena e radicalmente humanos. O plena e radicalmente humano é cristão e o cristão é plena e radicalmente humano. Os cristãos/ãs devem ser, por assim dizer, especialistas em humanidade. Pela fé, eles e elas descobrem sempre mais claramente o verdadeiro sentido da vida na história, até o seu pleno, último e definitivo sentido na meta-história. A espiritualidade cristã é, portanto, um projeto de espiritualidade plena e radicalmente humana. “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos seres humanos de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração” (Ib., 1). Trata-se de uma solidariedade (com-paixão) entranhável dos cristãos/ãs com todos os seres humanos, homens e mulheres, a partir dos pobres (a Opção pelos Pobres). Jesus nos deu o exemplo. Ele não escolheu nascer no palácio do imperador de Roma ou em outros palácios (inclusive, eclesiásticos), mas escolheu nascer numa manjedoura para - a partir da manjedoura e de tudo o que ela significa - anunciar a Boa Notícia do Reino de Deus a todos e a todas, de todos os povos e de todas as culturas. Uma espiritualidade meramente formal, legalista, farisaica, fria, insensível à dor dos irmãos/ãs e indiferente aos graves problemas da humanidade, sobretudo dos pobres, não é espiritualidade evangélica, não é espiritualidade cristã. É muito comum, sobretudo hoje, ver pessoas que vivem esse tipo de espiritualidade, mesmo em ambientes de Igreja. Para essas pessoas, o importante não é “ser” espirituais, mas “parecer” espirituais. Por fim, um questionamento que nos faz pensar: “Criticamos os fariseus pelos seus 613 mandamentos, mas será que não fizemos dos 1.752 cânones do nosso Código uma lei mais pétrea do que a do amor ao próximo?” (Pe. José Luiz Gonzaga do Prado. Roteiros Homiléticos, em: Vida Pastoral, janeiro-fevereiro de 2013, p. 48). No próximo artigo refletiremos sobre a espiritualidade cristã como “espiritualidade pascal”.

A espiritualidade como “espiritualidade humana”

Estamos na Quaresma, que é um tempo forte de graça de Deus, um tempo de meditação e oração, um tempo de mudança e conversão, um tempo de busca - sempre renovada - do verdadeiro sentido da vida. Durante a Quaresma, realizamos também a Campanha da Fraternidade (CF), que neste ano de 2013 tem como tema “Fraternidade e Juventude” e como lema “Eis-me aqui, envia-me” (Is 6,8). O objetivo da CF13 é: “acolher os jovens no contexto de mudança de época, propiciando caminhos para seu protagonismo no seguimento de Jesus Cristo, na vivência eclesial e na construção de uma sociedade fraterna fundamentada na cultura da vida, da justiça e da paz” (CF13. Texto-Base, p. 8). Esperando que nos ajudem a viver melhor a Quaresma e a CF13, vou fazer - em quatro pequenos artigos - algumas reflexões sobre a espiritualidade à luz da fé cristã: a espiritualidade como “espiritualidade humana”, a espiritualidade humana como “espiritualidade cristã”, a espiritualidade cristã como “espiritualidade pascal” e a espiritualidade pascal como “espiritualidade do seguimento de Jesus”. São diferentes aspectos da espiritualidade, que se complementam mutuamente. Neste artigo, inicio refletindo sobre a espiritualidade como “espiritualidade humana”. .A concepção de espiritualidade está intimamente ligada à concepção de ser humano. Hoje, a antropologia filosófico-teológica (que integra os dados das ciências humanas) tem uma concepção unitária (não dualista) de ser humano. Mesmo na diversidade de abordagens, o ser humano é definido como um ser pluridimensional e um ser plurirrelacional. Como ser pluridimensional, o ser humano é corpo, é vida e é espírito. A palavra corpo significa o ser humano todo, enquanto ser corpóreo; a palavra vida (alma) significa o ser humano todo, enquanto ser vivente (ser biopsíquico); a palavra espírito significa o ser humano todo, enquanto ser espiritual (ser pessoal). O sujeito é sempre o ser humano todo e a ênfase é colocada em uma de suas dimensões. Em outras palavras, o ser humano é totalmente (ou, integralmente) corpo, é totalmente vida e é totalmente espírito (cf. Mounier, E. O Personalismo. Livraria Morais, Lisboa, 1964, p. 39). A corporeidade (que inclui a sexualidade), a biopsiquicidade e a espiritualidade são as três dimensões fundamentais do ser humano, que se desdobram em outras dimensões. Cada uma delas marca o ser humano todo, mas não é a totalidade do ser humano. Como ser plurirrelacional (ser de relações), o ser humano se relaciona com o mundo (material e vivente), com os outros (semelhantes) e com o Outro absoluto (Deus). As relações são estruturais (sociais, econômicas, políticas, ecológicas e culturais) e individuais (corpóreas, biopsíquicas, espirituais ou pessoais). As dimensões e as relações são constitutivas do ser humano, ou, em outras palavras, fazem o ser humano, são o ser humano. A partir destas considerações de caráter antropológico (filosófico-teológico), podemos dizer que a espiritualidade é o jeito “humano” de ser e de viver do ser humano, enquanto ser espiritual, A espiritualidade envolve o ser humano todo, em todas as suas dimensões e relações. Ela perpassa, impregna e absorve a totalidade do ser humano, a totalidade de sua existência. Como, porém, o ser humano, por ser histórico (situado e datado), é um "vir a ser" e um ser de busca permanente, ele pode - ao longo de sua vida na sociedade e no mundo - crescer sempre e adquirir uma profundidade e intensidade sempre maior na vivência do “humano”, até a plenitude da vida na meta-história. Portanto, a espiritualidade é, antes de tudo, espiritualidade humana. Ser espiritual significa ser “humano”, viver o “humano” (a “humanidade”) sempre mais radicalmente, se libertando de tudo aquilo que oprime e desumaniza (espiritualidade libertadora). Nunca o ser humano exagera em ser “humano”, nunca o ser humano é “humano” demais. Jesus de Nazaré é o maior exemplo de sensibilidade humana e de vivência do “humano”. Se queremos ser homens e mulheres espirituais (de espiritualidade), sejamos humanos, radicalmente humanos, em todos os momentos e em todas as situações da vida, mesmo e sobretudo nas situações que ainda são desumanas. No próximo artigo refletiremos sobre a espiritualidade humana como “espiritualidade cristã”. Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano, Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP), Professor aposentado de Filosofia da UFG E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

A degradação moral da prática política

Alguns fatos destes últimos tempos, amplamente divulgados na Mídia, mostram, de maneira clara, o nível de degradação moral a que chegou a prática política de muitos de nossos parlamentares, governantes e juízes. O primeiro fato é a eleição do presidente do Senado e da Câmara Federal. Que espetáculo deprimente! Renan Calheiros (PMDB-AL), que, em 4 de dezembro de 2007, renunciou à presidência do Senado para não ser cassado e é acusado de corrupção, foi reeleito e reconduzido, no dia 2 de fevereiro, à presidência do Senado, com o voto favorável da grande maioria dos senadores. Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), que também é acusado de corrupção, foi eleito, no dia 4 de fevereiro, presidente da Câmara dos Deputados, com ampla maioria de votos. É uma prática política realmente vergonhosa e repugnante. Outro fato, que dá até nojo, é a barganha política (o “toma-lá-dá-cá”) praticada por políticos e governantes sem nenhum escrúpulo, com a maior cara-de-pau e com a total falta de ética. Os cargos públicos, seja no Executivo que no Legislativo, são loteados sem nenhuma preocupação com o bem comum. O critério para o desempenho de uma função pública não é a capacidade, a preparação e a honestidade das pessoas, mas a preocupação em “acomodar” cabos eleitorais, candidatos que não foram eleitos ou aliados políticos, para atender a interesses pessoais ou em vista de ganhos nas próximas eleições. Essa é uma prática generalizada e acontece em todos os níveis do Legislativo e do Executivo, mesmo nos governos do PT, um partido que se considerava o paladino da ética e no qual muitos depositaram suas esperanças de renovação política, ficando, pois, totalmente decepcionados. Como exemplo - entre muitos outros que poderiam ser citados - basta lembrar as contínuas barganhas do ex-presidente Lula, que são um jogo político interesseiro e imoral. E agora pergunto: Por que tanta preocupação em defender “a inocência” de políticos, que foram condenados por corrupção pelo STF? Quem não deve, não teme! A desculpa é sempre a mesma: um complô da direita, que não se conforma com a vitória do PT e faz de tudo para voltar ao poder. Pode até ser verdade (e acredito que seja) que o grupo da direita tradicional queira voltar ao poder, mas pergunto ainda: Existe uma prática política mais de direita do que a aliança com Sarney, com Maluf, com Renan e outros que foram esteios da ditadura militar? Talvez seja a nova direita que briga por espaços de poder com a antiga direita. Chega de hipocrisia! Ninguém aguenta mais! Trata-se de verdadeira obsessão pelo poder a qualquer custo e a qualquer preço. Tudo é permitido para alcançar, manter ou retomar o poder. Outro fato, que é totalmente absurdo e que revela a degradação moral da prática pública é a oferta de brindes a magistrados. A Associação Paulista de Magistrados (Apamagis), no dia primeiro de dezembro passado em festa para mais de mil pessoas, distribuiu para juízes estaduais, presentes (automóveis, cruzeiros, viagens internacionais e hospedagem em resorts, com direito a acompanhante), oferecidos por empresas públicas e privadas. Felizmente, ainda existem pessoas que condenam essa prática degradante e imoral. Eliana Calmon, que já foi corregedora nacional de justiça, afirma: “Saímos inteiramente dos padrões aceitáveis. Recompensa material de empresas não está de acordo com a atuação do magistrado, um agente político. Quem dá prêmio a juiz é o tribunal, quando merece promoção”. Cláudio Weber Abramo, da ONG Transparência Brasil, questiona: “Magistrados não podem se colocar na posição de devedores de favores a empresas que podem vir a ser partes em processos que julgam. Esse tipo de prática precisa ser coibido pelo CNJ, pois configura violação da vedação fundamental de agentes públicos se colocarem em posição de conflito de interesses” (Folha de S. Paulo, 10/12/12, p. A7). Diante dessa realidade de corrupção - cheia de falcatruas - não podemos silenciar e nos omitir. Precisamos banir da vida pública, uma vez por todas, as pessoas corruptas, interesseiras e sem ética. Só fazendo isso, abriremos caminhos novos para que uma outra prática política aconteça, uma prática política realmente humana e ética, somente preocupada com o bem comum. É uma utopia possível! Lutemos por ela! Diário da Manhã, Goiânia, 15/02/13, p. 05 Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano, Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP), Professor aposentado de Filosofia da UFG Goiânia, 12 de fevereiro de 2013 E-mail: mpsassatelli@uol.com.br