A respeito do processo de socialização - na Carta Encíclica “Mãe e Mestra” de 1961 - o Papa São João XXIII escreve: “A socialização é um dos aspectos característicos da nossa época. Consiste na multiplicação progressiva das relações dentro da convivência social, e comporta a associação de várias formas de vida e de atividade, e a criação de instituições jurídicas. O fato deve-se a multíplices causas históricas, como aos progressos científicos e técnicos, à maior eficiência produtiva e ao aumento do nível de vida” (59).
A socialização - continua a Carta - “é simultaneamente efeito e causa de uma crescente intervenção dos poderes públicos, mesmo nos domínios mais delicados, como os da saúde, da instrução e educação das novas gerações, da orientação profissional, dos métodos de recuperação e readaptação dos indivíduos de algum modo menos dotados. Mas é também fruto e expressão de uma tendência natural, quase irreprimível, dos seres humanos: tendência a associarem-se para fins que ultrapassam as capacidades e os meios de que podem dispor os indivíduos em particular. Esta tendência deu origem, sobretudo nestes últimos decênios, a grande variedade de grupos, movimentos, associações e instituições, com finalidades econômicas, culturais, sociais, desportivas, recreativas, profissionais e políticas, tanto nos diversos países como no plano mundial” (60).
A socialização assim entendida “torna possível satisfazer muitos direitos da pessoa humana, especialmente os chamados econômicos e sociais, por exemplo, o direito aos meios indispensáveis ao sustento, ao tratamento médico, a uma educação de base mais elevada, a uma formação profissional mais adequada, à habitação, ao trabalho, a um repouso conveniente e à recreação. Além disso, através da organização cada vez mais perfeita dos meios modernos da comunicação - imprensa, cinema, rádio e televisão (hoje podemos acrescentar: telefone celular, internet e redes sociais) - permite-se a todos de participar nos acontecimentos de caráter mundial” (61).
Para conseguir isso, “requer-se, porém, que as autoridades públicas se tenham formado, e realizem praticamente, uma concepção exata do bem comum; este compreende o conjunto das condições sociais que permitem e favorecem nos seres humanos o desenvolvimento integral da personalidade” (65).
O Concílio Vaticano II, na Constituição Pastoral “A Igreja no mundo de hoje”, refere-se também ao processo de socialização, afirmando: “Multiplicam-se sem cessar as relações do ser humano com os seus semelhantes, ao mesmo tempo que a própria socialização introduz novas ligações, sem no entanto favorecer em todos os casos uma conveniente maturação das pessoas e relações verdadeiramente pessoais (‘personalização’)” (6).
A respeito do processo de socialização, a II Conferência Episcopal Latino-americana e Caribenha de Medellín - ainda no documento “Justiça” (o primeiro) - retoma (a partir da realidade Latino-americana e Caribenha) o ensinamento da Carta Encíclica “Mãe e Mestra” e da Constituição Pastoral “A Igreja no mundo de hoje”.
Afirma: “A socialização compreendida como processo sociocultural de personalização e de solidariedade crescente (reparem: personalização e solidariedade crescente), nos induz a pensar que todos os setores da sociedade, mas, nesse caso, principalmente o setor econômico-social, deverão superar, pela justiça e fraternidade (reparem novamente: pela justiça e fraternidade), os antagonismos, para se transformarem em agentes do desenvolvimento nacional e continental”.
E declara: “Sem esta unidade, a América Latina não conseguirá livrar-se do neocolonialismo a que está submetida, nem, em consequência, realizar-se com liberdade, com suas características próprias, no campo cultural, sociopolítico e econômico”.
A Conferência reconhece o papel fundamental do processo de socialização em curso na América Latina e no Caribe para a educação social, a conscientização, a transformação das estruturas e a prática da justiça. A Conferência “tem plena consciência de que o processo de socialização, desencadeado pelas técnicas e meios de comunicação social, faz destes um instrumento necessário e muito apto à educação social, à conscientização de acordo com a transformação de estruturas e à vigência da justiça”.
O processo de socialização abre caminhos concretos para que o projeto de vida do Evangelho - a Boa-Notícia de Jesus de Nazaré - aconteça cada vez mais na história do ser humano e do mundo. Esse projeto - que muitas vezes foi e continua sendo interpretado de maneira meramente espiritualista, individualista, intimista e a-histórica - é o mais revolucionário possível, é um projeto radicalmente humano. Nesse projeto, histórico e meta-histórico ao mesmo tempo (o Reino de Deus), todos e todas somos filhos e filhas do mesmo Pai-Mãe, irmãos e irmãs em Cristo, iguais em dignidade e valor e chamados/as a viver em Comunidade.
“Todos/as que abraçavam a fé (seguiam Jesus de Nazaré) eram unidos/as e colocavam em comum todas as coisas, vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos/as, conforme a necessidade de cada um/uma (reparem mais uma vez: conforme a necessidade de cada um/uma)” (At 2,44-45).
Não é esse o verdadeiro socialismo comunitário, o verdadeiro comunismo? Não está na hora de - os cristãos e cristãs que somos e nossas Igrejas - nos libertarmos totalmente das influências desumanas e antievangélicas do imperialismo, do feudalismo e do capitalismo, que absorvemos - às vezes de maneira inconsciente - na nossa maneira de viver e que, farisaicamente, tentamos justificar? Não está na hora de vencermos a tentação do poder hierárquico, inclusive eclesiástico, que sempre procuramos legitimar em nome de Deus? Não está na hora de exigirmos - na organização social de nossas Igrejas - mudanças profundas, não só conjunturais, mas também e sobretudo estruturais.
Enfim, não está na hora de voltarmos às fontes e - unidos/as a todas as pessoas de boa vontade, que lutam pela mesma causa - construirmos o projeto de vida do Evangelho, que na realidade é o Projeto Popular? O processo de socialização não nos deve levar a viver esse projeto de forma cada vez mais radical? Pensemos!
Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br
Goiânia, 16 de maio de 2018
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