A respeito da questão da “dignidade”, a Igreja - influenciada
pela cultura dominante na sociedade, que é a cultura capitalista neoliberal e
não a cultura popular - coloca primeiramente a dignidade no cargo que a pessoa humana ocupa e não na própria pessoa
humana. Com isso, consciente ou inconscientemente, ela nega um valor humano e
cristão (radicalmente humano, evangélico) fundamental, causando muitas
injustiças.
Como exemplo, vejam o que
reza uma Oração (depois da Benção do
Santíssimo Sacramento ou do Rosário) muito
conhecida pelo povo: “Derramai as vossas bênçãos sobre o nosso Santo Padre,
o papa, sobre o nosso bispo, sobre o nosso pároco e todo o clero, sobre o chefe
da nação e do Estado e sobre todas as
pessoas constituídas em dignidade para que governem com justiça”.
Pergunto: Existe alguma pessoa humana que não é
“constituída em dignidade”? É verdade que os defensores dessa maneira de
ver a realidade fazem uma distinção e dizem que existe uma dignidade inerente a
pessoa humana e uma dignidade inerente ao cargo que ela ocupa. É “uma conversa
pra boi dormir”, que pretende “naturalizar”
e “legitimar” essa mentalidade.
A dignidade está somente na pessoa humana e é ela que dá valor ao
cargo ocupado. O meu irmão ou irmã que mora na rua - vítima de uma sociedade
injusta, iníqua e perversa - tem a mesma
dignidade do papa ou do presidente da República. Toda pessoa humana é “constituída em dignidade”.
Infelizmente, em nossa
sociedade - e na Igreja - existem muitos preconceitos a respeito da dignidade humana. “Para reconhecermos
que a dignidade humana é fundamental,
precisamos fazer algumas perguntas: Qual é o nível de humanidade e dignidade atribuído a pessoas negras, indígenas,
LGBTQIA+, aos migrantes e às mulheres? Quais mortes causam mais comoções e
quais delas a sociedade considera aceitáveis? Quem são as pessoas que têm mais
oportunidades?”.
E ainda: “O principal
fundamento dos Direitos Humanos é a garantia
da dignidade humana. Todos os seres humanos devem ter reconhecido seu direito a ter direitos (saúde,
educação, emprego, moradia, saneamento básico, justiça, etc.). Portanto,
violências no campo físico, moral, psíquico, social e cultural são
inaceitáveis. Mas, os princípios que
norteiam a dignidade humana estão longe de serem realidade na nossa sociedade
(e na Igreja). Ainda temos hoje, diversos grupos sociais privados do direito à
vida” (https://usinadevalores.org.br/dignidade-humana/).
Apesar de tudo isso, podemos
afirmar que “os seres humanos de hoje tornam-se cada vez mais conscientes da dignidade da pessoa humana
e, cada vez em maior número, reivindicam a capacidade de agir segundo a própria
convicção e com liberdade responsável, não forçados por coação mas levados pela
consciência do dever” (Concílio Vaticano II. Dignitatis Humanae - DH, 1).
Todos os
seres humanos, homens, mulheres e pessoas com identidade de gênero ou
orientação sexual diferentes (LGBTQIA+) - por serem imagem e semelhança de Deus - têm a
mesma dignidade e o mesmo valor. “Deus disse: ‘Façamos o ser humano à nossa
Imagem e semelhança’. (...) E Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de
Deus ele o criou, macho e fêmea os criou” (Gn 1,26-27).
“Na Igreja, Povo de Deus, é
comum (deveria ser comum...) a dignidade
dos filhos e filhas de Deus batizados e batizadas, no seguimento de Jesus, na
comunhão recíproca e no mandamento missionário” (Exortação Apostólica
Pós-sinodal “Ecclesia in America - EA 44).
“Todos os seres humanos
nascem livres e iguais em dignidade e em
direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os
outros em espírito de fraternidade” (Declaração Universal dos Direitos Humanos
- 1948, art. 1). É esse o nosso ideal! Lutemos por ele!
Com o presente texto inicio a terceira
série de artigos - reflexões eclesiológicas na perspectiva libertadora - sobre algumas
questões, que são fundamentais e que só foram mencionadas de passagem em outros
artigos: as questões da “dignidade”
(este artigo), da “igualdade”, da “democracia”, da “sinodalidade”, da “comunhão”,
da “participação”, da “missão”, da “radicalidade”, do “pecado
estrutural”, do “pecado individual”,
da “graça estrutural” e da “graça individual” na Igreja. (Os destaques em negrito são meus).
Ilustração da V Jornada Mundial dos Pobres no Brasil - CNBB - 2021
Marcos
Sassatelli, Frade dominicano
Doutor
em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor
aposentado de Filosofia da UFG
E-mail:
mpsassatelli@uol.com.br
Goiânia, 15 de outubro de 2021