terça-feira, 30 de novembro de 2021

A questão da “dignidade” na Igreja

 


A respeito da questão da “dignidade”, a Igreja - influenciada pela cultura dominante na sociedade, que é a cultura capitalista neoliberal e não a cultura popular - coloca primeiramente a dignidade no cargo que a pessoa humana ocupa e não na própria pessoa humana. Com isso, consciente ou inconscientemente, ela nega um valor humano e cristão (radicalmente humano, evangélico) fundamental, causando muitas injustiças.

Como exemplo, vejam o que reza uma Oração (depois da Benção do Santíssimo Sacramento ou do Rosário) muito conhecida pelo povo: “Derramai as vossas bênçãos sobre o nosso Santo Padre, o papa, sobre o nosso bispo, sobre o nosso pároco e todo o clero, sobre o chefe da nação e do Estado e sobre todas as pessoas constituídas em dignidade para que governem com justiça”.

Pergunto: Existe alguma pessoa humana que não é “constituída em dignidade”? É verdade que os defensores dessa maneira de ver a realidade fazem uma distinção e dizem que existe uma dignidade inerente a pessoa humana e uma dignidade inerente ao cargo que ela ocupa. É “uma conversa pra boi dormir”, que pretende “naturalizar” e “legitimar” essa mentalidade.

A dignidade está somente na pessoa humana e é ela que dá valor ao cargo ocupado. O meu irmão ou irmã que mora na rua - vítima de uma sociedade injusta, iníqua e perversa - tem a mesma dignidade do papa ou do presidente da República. Toda pessoa humana é “constituída em dignidade”.

Infelizmente, em nossa sociedade - e na Igreja - existem muitos preconceitos a respeito da dignidade humana. “Para reconhecermos que a dignidade humana é fundamental, precisamos fazer algumas perguntas: Qual é o nível de humanidade e dignidade atribuído a pessoas negras, indígenas, LGBTQIA+, aos migrantes e às mulheres? Quais mortes causam mais comoções e quais delas a sociedade considera aceitáveis? Quem são as pessoas que têm mais oportunidades?”.

E ainda: “O principal fundamento dos Direitos Humanos é a garantia da dignidade humana. Todos os seres humanos devem ter reconhecido seu direito a ter direitos (saúde, educação, emprego, moradia, saneamento básico, justiça, etc.). Portanto, violências no campo físico, moral, psíquico, social e cultural são inaceitáveis. Mas, os princípios que norteiam a dignidade humana estão longe de serem realidade na nossa sociedade (e na Igreja). Ainda temos hoje, diversos grupos sociais privados do direito à vida” (https://usinadevalores.org.br/dignidade-humana/).

Apesar de tudo isso, podemos afirmar que “os seres humanos de hoje tornam-se cada vez mais conscientes da dignidade da pessoa humana e, cada vez em maior número, reivindicam a capacidade de agir segundo a própria convicção e com liberdade responsável, não forçados por coação mas levados pela consciência do dever” (Concílio Vaticano II. Dignitatis Humanae - DH, 1).

Todos os seres humanos, homens, mulheres e pessoas com identidade de gênero ou orientação sexual diferentes (LGBTQIA+) - por serem imagem e semelhança de Deus - têm a mesma dignidade e o mesmo valor. “Deus disse: ‘Façamos o ser humano à nossa Imagem e semelhança’. (...) E Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, macho e fêmea os criou” (Gn 1,26-27).

“Na Igreja, Povo de Deus, é comum (deveria ser comum...) a dignidade dos filhos e filhas de Deus batizados e batizadas, no seguimento de Jesus, na comunhão recíproca e no mandamento missionário” (Exortação Apostólica Pós-sinodal “Ecclesia in America - EA 44).

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” (Declaração Universal dos Direitos Humanos - 1948, art. 1). É esse o nosso ideal! Lutemos por ele!

Com o presente texto inicio a terceira série de artigos - reflexões eclesiológicas na perspectiva libertadora - sobre algumas questões, que são fundamentais e que só foram mencionadas de passagem em outros artigos: as questões da “dignidade” (este artigo), da “igualdade”, da “democracia”, da “sinodalidade”, da “comunhão”, da “participação”, da “missão”, da “radicalidade”, do “pecado estrutural”, do “pecado individual”, da “graça estrutural” e da “graça individual” na Igreja. (Os destaques em negrito são meus).


                                                        Ilustração da V Jornada Mundial dos Pobres no Brasil - CNBB - 2021


Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

Goiânia, 15 de outubro de 2021


O artigo foi publicado originalmente em:
https://portaldascebs.org.br/a-questao-da-dignidade-na-igreja/


terça-feira, 9 de novembro de 2021

Direito famélico

 

No Jornal O Popular (Goiânia - GO) do dia 30 e 31 de outubro próximo passado, na página 14, sobre a VIDA URBANA, lemos a seguinte manchete: “Furto famélico está em 20% das prisões”.

Mariana Carneiro - autora da reportagem -  começa o seu texto com estas palavras: “Uma a cada cinco prisões em flagrante por furto, em Goiânia, nos dias úteis de julho a 26 de outubro deste ano, foi por furto famélico, quando a pessoa comete o delito para se alimentar”.

A jornalista, de um lado, relata que Gilles Gomes, advogado criminalista, “durante inspeções em presídios já conheceu pessoas que estavam presas por terem cometidos furtos famélicos”; de outro lado, relata que “desde 2004, existe um entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que casos com esse perfil devem ser arquivados, segundo o princípio da insignificância, casos em que o valor do furto é tão irrisório que não causa prejuízo à vítima do crime. Entretanto, a norma não é obrigatória”.

Na reportagem, Leonardo Stutz, defensor público da área criminal, afirma que “a situação reflete o cenário de pobreza estrema que muitos brasileiros enfrentam”: situação que - acrescento eu - é fruto de um sistema hipócrita e perverso, estruturalmente antiético (ou seja, desumano) que é o sistema capitalista ultraneoliberal.

Mesmo reconhecendo a gravidade da situação, a respeito dos chamados “furtos famélicos”, os juízes - com poucas exceções - não estão preocupados em salvaguardar o direito à alimentação das pessoas que se encontram em extrema necessidade. A preocupação deles é que o “furto” não cause prejuízo à vítima do “crime”.

Infelizmente, nesses casos, as decisões dos juízes são quase sempre muito ambíguas e - na maioria das vezes - descaradamente a favor dos poderosos. Também, dá para entender! Vejam só!

“Em Goiás (nos outros Estados não deve ser muito diferente), 170 juízes (do TJ) receberam mais de R$ 100 mil em outubro” (deste ano), incluindo os adicionais, chamados “penduricalhos”.  No mesmo mês, “o maior rendimento bruto foi de R$ 162 mil. Neste caso, o magistrado recebeu subsídio de R$ 35,4 mil e R$ 5 mil em direitos pessoais (abono permanência)” (https://opopular.com.br/noticias/politica/em-goi%C3%A1s-170 ju%C3%ADzes-receberam-mais-de-r-100-mil-em-outubro-1.2348767). Como podemos acreditar na justiça desses juízes?

Mesmo que os pobres e, sobretudo, os mais pobres entre os pobres -que, por extrema necessidade, praticaram “furtos famélicos” - não cheguem a ser presos ou fiquem presos por pouco tempo por serem os casos arquivados, seguindo o princípio da insignificância, eles e elas são sempre humilhados com maus-tratos e palavras desrespeitosas, como: “furtam bolacha, leite, macarrão”, “furtam alimentos vencidos”, “presos por cometerem furtos famélicos”, “presos em fragrante furto”, “cometem delito para se alimentar”, “praticam uma conduta ilícita”, etc.

Segundo o ensinamento ético (o ético é o humano) de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) - que integra o Pensamento Social Cristão - quando uma pessoa ou um grupo de pessoas encontra-se em situação de miséria ou de extrema necessidade, “tudo é comum ou seja, todos os bens são de todos e de todas(“In casu extremae necessitatis, omnia sunt communia”: Suma Teológica. IIa IIae, questão 32, artigo 7, resposta 3). 

Portanto, do ponto de vista ético - humano e cristão (radicalmente humano) -  o chamado “furto famélico” não é “furto”, não é “crime”, não é “delito”, não é “conduta ilícita”, mas é “direito famélico”, “direito à alimentação”, que é um direito fundamental de toda pessoa humana e é parte integrante do direito à vida.

Lutemos por esse direito e por um novo modelo de sociedade: justo, igualitário, de irmãos e irmãs.

(Todos os destaques em negrito - menos a manchete da reportagem - são meus)








Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

Goiânia, 05 de novembro de 2021




CEBs: uma Igreja que vive a Espiritualidade da Libertação

 


“O seguimento de Jesus é fruto de uma fascinação

que responde ao desejo de realização humana,

ao desejo de vida plena”

 (Documento de Aparecida - DA, 277)


Toda verdadeira Espiritualidade é “da Libertação”, porque “liberta” de tudo aquilo que impede a vida. “Eu vim para que todos e todas tenham vida e a tenham em plenitude” (Jo 10,10).

As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) - mesmo diante dos inúmeros desafios que precisam enfrentar no dia a dia - são uma Igreja que vive a Espiritualidade da Libertação: uma espiritualidade humana, cristã, pascal e do seguimento de Jesus.

A Espiritualidade da Libertação é, antes de tudo, espiritualidade humana. Ela envolve o ser humano todo, em todas as suas dimensões (corpóreas, biopsíquicas e espirituais ou pessoais) e em todas as suas relações (sociais, econômicas, políticas, ecológicas, culturais e religiosas) com o mundo material e vivente, com os outros-semelhantes e com o Outro absoluto-Deus. A Espiritualidade perpassa, impregna e absorve a totalidade do ser humano, a totalidade de sua existência.

Portanto, ser espiritual significa antes de tudo ser “humano”, viver o “humano” em graus crescentes de profundidade. Nunca o ser humano é “humano” demais, nunca o ser humano exagera em ser “humano”.

“Não se encontra nada verdadeiramente humano que não ressoe no coração dos discípulos e discípulas de Cristo” (Concílio Vaticano II. A Igreja no mundo de hoje - GS 1).

Para os que somos cristãos e cristãs, à luz da fé, a espiritualidade humana é espiritualidade cristã (evangélica). Não são duas espiritualidades diferentes. É a mesma espiritualidade. A espiritualidade não pode ser cristã se não for humana e, se for humana, é - implícita ou explicitamente - cristã.

"A fé esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do ser humano. E por isso orienta a mente para soluções plenamente humanas" (GS 11).

O plenamente humano inclui a dimensão da fé. Quando verdadeira, a fé humaniza, torna o ser humano mais ser humano. O autêntico cristianismo é um humanismo pleno (radical). Ser cristãos e cristãs é ser plenamente (radicalmente) humanos.

Trata-se de uma solidariedade (compaixão) entranhável dos que somos cristãos e cristãs para com todos os seres humanos e com a Irmã Mãe Terra Nossa Casa Comum, a partir dos pobres, marginalizados, explorados, oprimidos, excluídos e descartados.

A espiritualidade cristã é, pois, espiritualidade pascal, ou seja, espiritualidade que brota da vivência, sempre mais profunda, da Páscoa (o mistério do Cristo crucificado, sepultado e ressuscitado). Para os que somos cristãos e cristãs, o mistério pascal é o centro da nossa vida na sociedade e no mundo. Do ponto de vista celebrativo, ele é o centro do ano litúrgico. A liturgia é a celebração do mistério pascal na vida e a celebração da vida no mistério pascal.

Viver o mistério pascal - a espiritualidade pascal - significa viver como Jesus viveu, morrer como Jesus morreu, ressuscitar como Jesus ressuscitou.

A espiritualidade pascal é "espiritualidade de comunhão" (DA 181, 307, 316); é “espiritualidade de comunhão com todos os e as que creem em Cristo” (DA 189); e é “espiritualidade de comunhão missionária" (DA 203).

A alma (a vida) da espiritualidade pascal é o Espírito Santo, o Amor de Deus, que nos faz mergulhar no mistério da Santíssima Trindade, a “melhor Comunidade”, nos torna testemunhas do Cristo Ressuscitado e nos compromete com o seu Projeto de Vida, que é o Reino de Deus na sociedade e no mundo.

A espiritualidade pascal é, pois, espiritualidade do seguimento de Jesus de Nazaré. "Todo aquele que segue Cristo, o Homem perfeito, torna-se ele também mais ser humano" (GS 41).

“No seguimento de Jesus Cristo, aprendemos e praticamos as bem-aventuranças do Reino, o estilo de vida do próprio Jesus: seu amor e obediência filial ao Pai, sua compaixão entranhável frente à dor humana, sua proximidade aos pobres e aos pequenos, sua fidelidade à missão, seu amor serviçal até à doação de sua vida” (DA 139).

Os cristãos e cristãs somos chamados a ser hoje “profetas e profetisas da vida” nas situações concretas da realidade do ser humano e do mundo. Vivamos essa espiritualidade! É o caminho da felicidade!







Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

Goiânia, 15 de outubro de 2021



O Artigo foi publicado originalmente no Portal das CEBs:
https://portaldascebs.org.br/cebs-uma-igreja-que-vive-a-espiritualidade-da-libertacao/


A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos