Uma
reportagem que me deixou indignado
Costuma-se dizer - e é a pura verdade - que todo ponto de
vista é a vista de um ponto. O ponto desde o qual eu vejo (ou, ao menos,
esforço-me para ver) a realidade é o ponto desde os Direitos Humanos e, no
nosso caso concreto, desde o Direito à Moradia, que - como diz o Papa Francisco
- é um direito sagrado. Portanto, o ponto desde o qual eu vejo a realidade não
é o ponto desde a especulação imobiliária, que é parte integrante de “um sistema
econômico iníquo” (Documento de Aparecida - DA, 385)
Lendo a reportagem de O Popular, de 16 de fevereiro deste
ano (capa e p, 5), “10 anos depois - O bairro que surgiu da invasão do Parque
Oeste”, fiquei profundamente indignado. Antes de tudo, não se trata de “invasão”,
mas de “ocupação” de um terreno que não tinha, havia muitos anos, nenhuma
função social. O que é bem diferente! A leitura que a reportagem faz do despejo
violento da Ocupação “Sonho Real” - a cinicamente chamada “Operação Triunfo” - é
desde o ponto de vista dos “coronéis urbanos” (leia: os donos das grandes
imobiliárias de Goiânia).
Citando João Batista de Deus, professor do Instituto de
Estudos Sócio-Ambientais da Universidade Federal de Goiàs - UFG, o título de um
dos textos da reportagem é: “sem desocupação, o problema ficaria maior”. No
próprio texto, a reportagem diz: “segundo o pesquisador, se houvesse
desapropriação, naquele contexto, inúmeros grupos iriam criar novas ocupações,
gerando um barril de pólvora na habitação”.
Professor,
esse é o ponto desde o qual os “coronéis urbanos”, que são os que de fato
mandam em Goiânia, veem a realidade. Eles fizeram o governador Marconi Perillo
voltar atrás, depois de declarar em entrevista coletiva que estava decidida a
desapropriação. O povo fez até festa. Com seu poder econômico, os “coronéis
urbanos” transformaram o governador num mentiroso público, ou seja, num
fantoche. Num documento do Governo Estadual (eu vi com os meus olhos) estava
escrito: “essa área é imprópria para habitação popular”.
Segundo
o ponto desde o qual os sem-teto veem a realidade, criar novas ocupações não
gera nenhum barril de pólvora, mas abre caminhos para o reconhecimento de um
dos Direitos Humanos fundamentais de toda pessoa, que é o Direito à Moradia.
Atualmente, vivemos numa sociedade, na qual “a exclusão
virou princípio da organização socioeconômica, a lei do mercado, da
competitividade. Quem não consegue competir deve desaparecer, quem não consegue
consumir deve sumir. Escondemos favelas por trás de placas publicitárias. Que
os feios, os aleijados, os idosos, os doentes de Aids (e - acrescento eu - os
sem-teto) não poluam os nossos cartões postais” (Vida Pastoral,
janeiro-fevereiro de 2015, p. 60).
“Hoje - diz o Papa Francisco - devemos dizer ‘não a uma
economia da exclusão e da desigualdade’. Essa economia mata. (...) O ser humano
é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois
lançar fora. Assim teve início a cultura do ‘descartável’, que, aliás, chega a
ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e
opressão, mas de uma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz,
a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia
ou sem poder, já não está nela, mas fora. Os excluídos não são ‘explorados’,
mas resíduos, ‘sobras’” ( A Alegria do Evangelho - EG, 53).
A área da Ocupação “Sonho Real” - independentemente da
questão da Justiça - tinha todos os requisitos legais e constitucionais para ser
desapropriada. Inclusive, o que o Poder
Público gastou depois do despejo violento foi muito mais do que o valor da
desapropriação. Para construir 2.500 casas no Residencial Real Conquista (um
dos bairros do Município de Goiânia mais distantes) - prometidas como indenização
pelas casas destruídas - o Governo do Estado de Goiás demorou quase dez anos.
Após o término de cada etapa, as casas construídas eram entregues em cerimônia
oficial com toda demagogia, como se fossem um presente do governador “bonzinho”
e não um direito do povo. O governador sempre tentou empurrar debaixo do tapete
a vergonhosa história do Parque Oeste Industrial e sempre fingiu não saber que
as casas, construídas a passos de tartaruga, eram uma conquista da luta persistente
dos sem-teto.
Para o Estado de Goiás e a Prefeitura de Goiânia (em conluio
com o Poder Judiciário), totalmente submissos aos interesses dos “coronéis
urbanos”, o importante não era o dinheiro necessário para a desapropriação da
área, mas dar um castigo (uma lição exemplar) aos sem-teto, para que nunca mais
tivessem a ousadia de ocupar outras áreas, desafiando os “coronéis urbanos” e seus
empreendimentos imobiliários.
A reportagem de O Popular, que aparentemente pretende ser
neutra (no comportamento humano não há neutralidade), na realidade toma o
partido dos “coronéis urbanos” e o justifica.
Professor João Batista de Deus, não existe somente o
ponto desde o qual os “coronéis urbanos” veem a realidade, mas existe também o
ponto desde o qual os sem-teto veem a realidade, que é o dos Direitos Humanos. Para
esses, a desapropriação da área da Ocupação “Sonho Real” teria sido uma grande
conquista e teria fortalecido a organização dos Movimentos Populares dos Sem-Teto.
Mesmo,
porém, que os sem-teto tenham perdido essa luta, os “coronéis urbanos” e todos
os poderosos - que se acham donos do mundo - não se iludam. Lembrem-se que os
Movimentos Populares dos Sem-Teto podem estar momentaneamente acuados, mas não
vencidos. Um sinal concreto disso é o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
(MTST), que está se organizando cada vez mais no Brasil inteiro, sobretudo nas
grandes cidades. Aguardem!
Uma
derrota traz muito sofrimento para os trabalhadores, mas a médio e longo prazo,
traz também muita vontade de se organizar e de lutar, renovando a esperança da
vitória final.
O Papa Francisco, em outubro de 2014, promoveu o Encontro
Mundial dos Movimentos Populares, manifestando em seu Discurso toda
solidariedade e apoio a suas lutas. É um grande sinal dos tempos!
Enfim, a reportagem de O Popular teve também um lado
positivo: serviu para dar maior visibilidade a Eronilde, viúva de Pedro
Nascimento, jovem de 27 anos, assassinado a queima-roupa durante a “Operação
Triunfo”. Eronilde tornou-se uma grande e incansável lutadora pelos Direitos
Humanos, sobretudo pelo Direito à Moradia. Ela é uma mulher extraordinária e
uma verdadeira líder popular!
Termino afirmando: tenho certeza que os empreendimentos
imobiliários (25 condomínios verticais) da área da Ocupação “Sonho Real” -
ensopada de sangue inocente - não são abençoados por Deus. “Ai daqueles que
juntam casa com casa e emendam campo a campo, até que não sobre mais espaço e
sejam os únicos a habitarem no meio do país. Deus dos exércitos jurou no meu ouvido.
Suas muitas casas serão arrasadas, seus palácios luxuosos ficarão desabitados”
(Is 5, 8-9).
Os responsáveis, diretos e indiretos, do massacre do
Parque Oeste Industrial - que foi a pior barbárie de toda a história de Goiânia
- lembrem-se sempre: Deus é justo e sua justiça não falha!
Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral
(Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 18
de fevereiro de 2015