domingo, 28 de agosto de 2022

A Missão Goiânia visita as Ocupações

 

Segundo dados divulgados pela Campanha Despejo Zero em maio deste ano, Goiás possui 2.756 famílias ameaçadas de despejo e outras 1.623 despejadas, além de 976 em Ocupações, com despejos suspensos temporariamente: até 31 de outubro deste ano.

Para muitas pessoas e famílias de nossa sociedade capitalista - profundamente injusta e de uma desigualdade estrutural gritante - as Ocupações são o único caminho para conquistar legitimamente (sublinho: legitimamente) o Direito à moradia.

De 17 a 19 de agosto, representantes do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), da Campanha Despejo Zero, da Plataforma Dhesca e do Fórum Nacional de Reforma Urbana em Goiás realizaram a Missão Goiânia, visitando famílias das Ocupações ameaçadas de despejo e pessoas em Situação de Rua na capital e na região metropolitana.

As Ocupações visitadas foram: do Povo Trabalhador (Teresópolis de Goiás), Solar Ville, Nova Canaã e Alfredo Nasser (Goiânia), Beira da Mata e Alto da Boa Vista (Aparecida de Goiânia).   

Os membros da Missão Goiânia participaram também da Reunião ordinária do Comitê interestadual de Monitoramento de Políticas Públicas para a População em Situação de Rua (CIAMP); de Roda de Conversa com a mesma População; e ainda de Roda de Conversa com famílias do Assentamento Popular Dom Tomás de Formosa - GO; de Reunião com a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e com a Secretaria Estadual de Administração.

Por fim, no dia 19 (sexta-feira) participaram da Audiência Pública na Câmara Municipal de Goiânia, presidida pelo vereador Mauro Rubem (PT), da Comissão de Saúde e Assistência Social da Casa. Participou também do debate, a vereadora Aava Santiago (PSDB), presidenta da Comissão de Direitos Humanos da mesma Casa.

Acompanhamos os membros da Missão Goiânia - em suas Visitas, Reuniões, Rodas de Conversa e Audiência Pública - representantes do:

  • Rodas de Conversa e Audiência Pública - representantes do:
  • Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno,
  • Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD),
  • Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST),
  • Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM),
  • Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR),
  • Programa de Extensão (Educação, Saúde e Direito à Cidade) do Instituto Federal Goiano (IFG), e da:
  • Universidade Estadual de Goiás (UEG) e
  • Comissão de Saúde e Assistência Social da Câmara Municipal de Goiânia,

Getúlio Vargas do CNDH informou que o Relatório das visitas, em Goiânia, será concluído em dois meses. Fez algumas recomendações e destacou: “Em nossa missão, aqui, o que vimos é que (além do direito à Moradia) são muitos os Direitos Humanos violados”. Segundo ele, as famílias que vivem em Ocupações ou em Situação de Rua, em Goiânia e na região metropolitana, não têm água; não conseguem atendimento em Unidades de Saúde, nem vagas para as crianças em Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs) e Escolas, porque não podem “apresentar um CEP”.

(Cf. https://www.jornalonlinenossavoz.com/2022/08/em-audienciapublica-camara-discute.html; https://ohoje.com/noticia/politica/n/1430632/t/camara-discute-violacao-de-direitos-de-pessoas-em-situacao-de-rua/)

A Resolução Nº 17 do CNDH, de 06 de agosto de 2021, logo no início - em destaque - “reconhece como conduta contrária aos Direitos Humanos a realização de despejos, remoções e deslocamentos sem ordem judicial e dispõe medidas preventivas e soluções garantidoras de Direitos Humanos”.

Permito-me uma observação crítica - que considero de fundamental importância - ao texto da Resolução. Os despejos de pessoas e famílias de suas Ocupações são uma “conduta contrária aos Direitos Humanos” não só “sem ordem judicial”, mas também “com ordem judicial”.

A questão dos despejos, antes de ser jurídica, é ética (humana). Inclusive - por se tratar de pessoas - a própria palavra “despejo” é ofensiva e seu uso é uma “conduta contrária aos Direitos Humanos”.

Do ponto de vista ético, só existem três razões para “remover com dignidade” (não “despejar”) pessoas humanas de uma Ocupação; se a área for:

  • de risco,
  • de preservação ambiental,
  • e de utilidade pública.

Mesmo nestes três casos, a remoção só pode ser realizada depois que estiverem prontas outras moradias - provisórias ou definitivas - para serem ocupadas.

Todo despejo - mesmo com ordem judicial - é injusto e antiético. Despejo nunca mais!


Visita à Ocupação Beira da Mata em Aparecida de Goiânia -18/08/22
https://www.maisgoias.com.br/



                                                                             Foto: Divulgação/Câmara Municipal - 19/08/22  




Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 27 de agosto de 2022


A Ética hoje

 

Seguem, a partir de agora, algumas reflexões teológico-pastorais sobre a Ética na perspectiva libertadora.

Neste primeiro artigo - de caráter introdutório - trato da questão da Ética hoje e, no final, apresento as linhas fundamentais da proposta de Ética da Libertação, que pretendo desenvolver posteriormente.

A questão da Ética, na sociedade e cultura contemporânea, voltou a ser central. Desde as décadas de 1980 e 1990 fala-se:

- da "necessidade cultural de Ética" (Viano, C. A. (Org.). Teorie etiche contemporanee. Bollati Boringhieri, Torino, 1990, p. 11);

- do "retorno à Ética" e das "tendências e ambiguidades de tal fenômeno" (Angelini, G. Ritorno all'Etica? Tendenze e ambiguità di un fenomeno recente, em "Il Regno" 14 (1990) 438-449);

- da "emergência da Ética" (VV. AA. L’ Etica nel Pensiero contempoaneo. Mucchi, Modena, 1989, p.7);

- do “renascimento da Ética", da "urgência da reflexão ética" e da "atenção com a qual são considerados e discutidos os problemas éticos", que "envolvem a vida e a qualidade da vida das gerações presentes e futuras" (Da Re, A. Il ritorno dell'Etica nel Pensiero contemporaneo. Gregoriana, Padova, 1988, p. 9-17);

- da "necessidade de um projeto de Ética mundial" e de "uma Moral ecumênica em vista da sobrevivência humana” (KÜNG, H. Projeto de Ética Mundial. Uma Moral ecumênica em vista da sobrevivência humana. Paulinas, São Paulo, 1993).

Pergunta-se, pois: “como pensar a Ética a partir das contradições de um mundo que produz uma ciência e seus intelectuais dedicados a pesquisar, no mesmo espaço e ao mesmo tempo, princípios de vida e armas de morte?” (VV. AA. Ética. Companhia das Letras, São Paulo, 1992).

Pergunta-se, pois: “como pensar a Ética a partir das contradições de um mundo que produz uma ciência e seus intelectuais dedicados a pesquisar, no mesmo espaço e ao mesmo tempo, princípios de vida e armas de morte?” (VV. AA. Ética. Companhia das Letras, São Paulo, 1992).

Para o Ser humano de hoje, "trata-se de compreender o processo epocal que tornou incertas a solidez e a estabilidade na transmissão dos valores e das normas achadas evidentes, pelo qual perderam eficácia os habituais critérios de legitimidade, os princípios reconhecidos para estabelecer aquilo que é bem e aquilo que é mal”.

As mudanças produzidas por essa transformação - que são muitas - podem ser descritas como:        

- “passagem de uma sociedade tradicional, que prescrevia comportamentos socialmente apreciados e aceitos sem discutir sua legitimidade, a uma sociedade pós-tradicional, na qual temos sistemas morais baseados não em prescrições sociais, mas em preferências individuais”; ou como:

- “passagem de uma sociedade de diferenciação estratificada, na qual a pertença a um estrato comportava a aceitação de uma moral no âmbito de uma mais geral subordinação desta última à religião, a uma diferenciação funcional, que reconhece ao ser humano maiores liberdades em relação ao seu ambiente social, inclusive a liberdade de comportar-se de maneira não racional e não moral" (L’Etica nel pensiero contemporâneo, op. cit., p. 7).

É nesta realidade complexa e contraditória que surge a Ética da Libertação. Ela elabora - e emite - juízos de valor desde o ponto de vista dos Pobres (a partir dos Pobres, na ótica dos Pobres): empobrecidos, marginalizados, oprimidos, excluídos e descartados. É este, aliás, o ponto de vista de Jesus de Nazaré e do Evangelho: a Boa Notícia do Reino de Deus.  

Propriamente falando, a Ética da Libertação não é um dos ramos da Filosofia e/ou da Teologia da Libertação, mas é o tema que a perpassa. Por ser “intrinsecamente moral”, o ético é uma dimensão “constitutiva” ou “consubstancial” de toda a Filosofia e/ou Teologia da Libertação.

Mesmo, porém, tendo como fonte de inspiração uma realidade particular, seu valor é universal, porque a Ética da Libertação é Ética da Vida e da Vida em plenitude para todos os seres humanos e para a Irmã Mãe Terra Nossa Casa Comum.  

A proposta de Ética da Libertação - que irei aprofundar nas próximas reflexões teológico-pastorais - é vivida e tematizada em torno de três eixos: o ser humano, o ser humano como ser práxico (prático-teórico e teórico-prático) e o ser humano práxico como ser ético.

Portanto - além deste que situa historicamente a Ética da Libertação - estão previstas três séries de artigos.


Paulo Meneses e Outros
A Hora da Ética Libertadora, 1985
Traça Livraria e Sebo





Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 26 de agosto de 2022


O artigo foi publicado originalmente em:
https://portaldascebs.org.br/a-etica-hoje/


terça-feira, 2 de agosto de 2022

A questão da “obediência” na Igreja

 


Termino - ao menos por enquanto - a terceira e última série de reflexões teológico-pastorais sobre a Igreja na perspectiva libertadora, abordando a questão da “obediência” na Igreja.

Jesus, como ser humano, “foi obediente até a morte e morte de cruz” (Fl 2,8) por estar em plena e total “comunhão” com o Pai. “Pai, se queres, afasta de mim este cálice. Contudo, não se faça a minha vontade, mas a tua” (Lc 22,42). Jesus, “embora sendo Filho, sofrendo aprendeu o que é obedecer. Levado à perfeição, tornou-se a fonte da salvação eterna para todos/as os/as que lhe obedecem” (Hb 5,8-9).

Com sua vida, Jesus nos mostra que ser obedientes significa estar:

  • em plena comunhão com Deus e
  • totalmente disponíveis para realizar o seu Projeto no mundo, que é o Reino

Todos e todas nós cristãos e cristãs - cada um e cada uma de acordo com sua vocação particular - somos chamados e chamadas a viver, teórica e praticamente, essa obediência.

Aqueles e aquelas que na Igreja e, sobretudo, na “Vida Cristã de Particular Consagração” (Vida Religiosa Consagrada) são chamados e chamadas a exercer o ministério da Coordenação nos diversos níveis devem ser mais obedientes do que os outros e as outras.

Por objeção de consciência - às vezes - para sermos obedientes, temos que praticar a “desobediência civil” e/ou “religiosa”, como fez o próprio Jesus.

Na Igreja - que é (ou, deveria ser) uma Comunidade de irmãos e irmãs “em comunhão”, iguais em dignidade e valor - as relações entre as pessoas e entre os diferentes ministérios (serviços) devem ser relações de “comunhão”: “comunhão eclesial”.

Ora, nas relações de “comunhão” não há espaço para relações de “dependência”, de “submissão”, de “subordinação”, de “subserviência”, de “dominação”, de “inferioridade” ou “superioridade”. Todos e todas - na diversidade dos carismas (dons) e ministérios (serviços) - são sujeitos eclesiais conscientes e responsáveis de suas opções, atitudes e atos. “A cada um/uma é concedida a manifestação do Espírito para o bem comum” (1Cor 12,7).  

Na Igreja, as palavras “obediência”, “autoridade”, “poder”, não têm (ou, não deveriam ter) o mesmo sentido que têm na sociedade, sobretudo na sociedade capitalista neoliberal de hoje. "Vocês sabem: aqueles que se dizem governadores das nações têm poder sobre elas, e os seus dirigentes têm autoridade sobre elas. Mas, entre vocês não deve ser assim: quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servidor de vocês, e quem de vocês quiser ser o primeiro, deve tornar-se o servidor de todos" (Mc 10,42-44).

Há tempo, um conhecido jurista escreveu com certa ironia: “por incrível que pareça, a palavra ‘superior’ ainda é usada somente no meio militar e no meio religioso”. É lamentável!

Ninguém é “superior” a ninguém e a última razão do agir humano é sempre a consciência da pessoa, que deve ser respeitada.

 

Infelizmente, na Igreja e - de maneira especial - na “Vida Cristã de Particular Consagração” (Vida Religiosa Consagrada), a “obediência” tornou-se às vezes (felizmente, não sempre) uma questão meramente jurídica e formal, que violenta a consciência das pessoas e não tem nada a ver com o Evangelho.

Para exemplificar, cito dois casos. Primeiro: “Irmã Maria” (nome fictício) é transferida pela “Superiora” Provincial da Casa onde mora atualmente no Brasil para outra, em outro país. Depois de muita reflexão e oração, a Irmã diz à “Superiora” que em consciência, pela idade avançada e outras razões pessoais, não está em condições psicológicas de aceitar a transferência. Mesmo assim, em nome da obediência, a “Superiora” mantém a transferência e a Irmã, seguindo sua consciência, decide deixar a Congregação e continuar com o seu compromisso de doação exclusiva a serviço do Reino de forma particular.

Segundo caso: Frei Pedro (nome fictício) é transferido pelo “Superior” Provincial da Casa Religiosa onde mora atualmente para outra, em outro lugar, para assumir uma nova responsabilidade pastoral. O Frei está passando por um período de graves problemas pessoais e a única coisa da qual precisa no momento é toda atenção, compreensão e carinho dos irmãos. Mesmo assim, em nome da “obediência”, o “Superior” mantém a transferência, sem medir as possíveis consequências de seu ato.

Essa obediência meramente “jurídica e formal” - que não respeita a consciência das pessoas, a última razão do agir humano - é uma violação dos Direitos Humanos. Meditemos!

Observação: Com o próximo artigo, começarei algumas reflexões teológico-pastorais sobre a Ética, sempre na perspectiva libertadora. Serão - prevejo eu - três séries de reflexões: sobre: o Ser humano, o Ser humano práxico (prático-teórico e teórico-prático) e o Ser humano ético.

Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 26 de julho de 2022





A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos