Assistindo e, ao mesmo tempo, participando do
debate público que nestes dias, de maneira acirrada e apaixonada, está se travando
sobre o momento político atual e principalmente sobre os protestos em curso no
Brasil inteiro, pretendo fazer - como pequena contribuição ao debate - algumas reflexões
sobre o sistema capitalista neoliberal (o neoliberalismo puro e o
neoliberalismo atenuado por políticas públicas compensatórias, chamado
neodesenvolvimentismo), o projeto político do Governo Federal do PT e seus
aliados (a nova e a velha burguesia), a reforma política por meio de uma
Constituinte exclusiva e soberana (a mudança estrutural do sistema político), e
o projeto político popular (a democracia popular).
Neste
primeiro artigo, começo refletindo sobre o sistema capitalista neoliberal, no
qual vivemos. Ele é o “estado de mal-estar social” (http://laurocampos.org.br/2015/01/neoliberalismo-estado-de-mal-estar-social/). Ele é a raiz ou a causa última de todos os males
sociais que levam o povo às ruas para protestar. Em linguagem teológico-moral,
ele é hoje a concretização histórica do pecado social ou pecado estrutural. Nas
manifestações públicas não podemos esquecer essa realidade.
O sistema capitalista neoliberal é um “sistema
econômico iniquo” (Documento
de Aparecida - DA, 385). A corrupção, a violência,
a injustiça, a desumanidade e a imoralidade são constitutivas da própria
estrutura do sistema e consideradas naturais.
As práticas pontuais de corrupção, de violência, de
injustiça, de desumanidade e de imoralidade, que - quando descobertas - são denunciadas
na mídia, provocam hipocritamente grandes escândalos. Na verdade - sem negar a
responsabilidade pessoal e de grupos - elas são simples reflexos de uma
iniquidade estrutural muito mais profunda, que é a iniquidade do sistema.
O
papa Francisco afirma categoricamente que “o sistema social e econômico é
injusto em sua raiz” e “um mal embrenhado nas estruturas”. E declara: “devemos
dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade social’. Essa economia
mata. (...) Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte,
em que o poderoso engole o mais fraco. (...) O ser humano é considerado, em si
mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve
início a cultura do ‘descartável’, que, aliás, chega a ser promovida. (...) Os
excluídos e excluídas não são ‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras’” (A Alegria
do Evangelho - EG, 53 e 59).
O
nosso irmão Francisco lembra-nos também que “a necessidade de resolver as
causas estruturais da pobreza não pode esperar (...). Os planos de assistência,
que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se apenas como
respostas provisórias. Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas
dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação
financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se
resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A
desigualdade é a raiz dos males sociais”.
E diz ainda: “a
dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam
estruturar toda a política econômica, mas às vezes parecem somente apêndices
adicionados de fora para completar um discurso político sem perspectivas nem programas
de verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas palavras se tornaram molestas
para este sistema! Molesta que se fale de ética, molesta que se fale de solidariedade
mundial, molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta que se fale de
defender os postos de trabalho, molesta que se fale da dignidade dos fracos,
molesta que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da justiça.
Outras vezes acontece que estas palavras se tornam objeto duma manipulação
oportunista que as desonra. A cômoda indiferença diante destas questões esvazia
a nossa vida e as nossas palavras de todo o significado” (EG, 202-203).
Os protestos dos
Movimentos Sociais Populares e do povo em geral - sem deixar de denunciar e combater
as práticas pontuais de corrupção (como a da Petrobras e outras), que são
reflexos de um sistema estruturalmente corrupto - devem ter como foco principal
o próprio sistema e apontar caminhos novos que levem a uma mudança de
estruturas.
Os programas sociais
de políticas públicas compensatórias do Governo Federal, do tipo Bolsa Família,
Minha Casa Minha Vida, Pro Uni, Luz para Todos, Mais Médicos e outros, são
necessários, mas não bastam. Além de tudo, são programas que têm uma ambiguidade
muito grande. De um lado, servem para atenuar os efeitos antissociais da
desigualdade econômica vigente, injusta e imoral, e, de outro lado, servem para
amortecer as lutas sociais, cooptar os Movimentos Sociais Populares (atrasando
sua organização), legitimar e fortalecer o sistema econômico dominante,
tranquilizar o mercado e evitar que o povo se revolte.
"A misericórdia (leia-se: as obras
sociais ou os programas sociais de políticas públicas compensatórias) sempre
será necessária, mas não deve contribuir para criar círculos viciosos que sejam
funcionais para um sistema econômico iníquo. Requer-se que as obras de
misericórdia sejam acompanhadas pela busca da verdadeira justiça social (...)"
(DA, 385).
A respeito dos programas sociais do
Governo Federal do PT e seus aliados, o economista Paulo Feldmann, professor da
Faculdade de Economia da USP, escreve: “o Lula foi muito hábil, muito
inteligente quando criou os programas sociais, principalmente o Bolsa Família.
Ele pegou uma parcela que tinha no orçamento federal e criou o Bolsa Família.
Não houve um imposto novo sobre os ricos. Foi um processo de distribuição de
renda bem atípico, sem onerar os mais ricos. Não foi distribuição de renda, o Governo
usou seus próprios recursos” (Diário da Manhã, 13 de março de 2015, p. 9).
Os programas sociais governamentais -
embora necessários - não tiram dinheiro dos ricos e não mudam as estruturas da
desigualdade social. Eles precisam ser acompanhados de políticas públicas, que abram
caminhos novos e levem a uma mudança do sistema dominante. São justamente essas políticas públicas que devem
ser o foco principal dos protestos daqueles e daquelas (pessoas, movimentos populares,
movimentos sindicais e outras instituições) que lutam por um outro Brasil
possível.
A reflexão do próximo artigo será sobre o projeto político
do Governo Federal do PT e seus aliados (a nova e a velha burguesia).
Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral
(Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 18
de março de 2015