quarta-feira, 25 de outubro de 2023

O Ser humano histórico

 


(Continuo a série de artigos sobre o Ser humano, abordando outro tema)

O Ser humano - por “ser-no-mundo" (“no-espaço” e “no-tempo”) “com-o-mundo” (o mundo material e vivente e os outros, e o Outro absoluto/Deus), ou seja, por “ser-no-mundo” conscientemente - percebe-se a si mesmo como um ser histórico.

"Os Seres humanos desenvolvem a consciência no interior do desenvolvimento histórico real" (Marx, K. e Engels, F. A Ideologia Alemã (I - Feuerbach). Hucitec, São Paulo, 19865, p. 44, nota *).

A dimensão da "historicidade" é constitutiva e própria do Ser humano. Ora - para o Ser humano - “ser-no-mundo" como ser histórico significa “ser-no-mundo" como "projeto" (tarefa) que se concretiza e realiza (historiciza) num "processo" contínuo. A "projetualidade" e a "processualidade" são características do Ser humano enquanto ser histórico (sujeito da história, que faz a história).

A liberdade humana - uma exigência e, ao mesmo tempo, uma consequência da racionalidade - como possibilidade de escolha "situada” e "datada", é uma componente determinante da historicidade.

Por “ser-no-mundo" historicamente, o Ser humano é sempre um "vir-a-ser". O mundo - que no Ser humano se torna história - apresenta-se ao Ser humano como algo já dado (ser dado, realizado) e, ao mesmo tempo, como devir (ser ainda não dado, possível).

A história do Ser humano (como projeto e como processo sempre inacabados) é sua existência e sua existência é, por assim dizer, sua essência.

"O ser do Ser humano, que é movimento na história, nunca se acha realizado mas vai se realizando, não está definitivamente dado, pois sua essência é um contínuo estar-sendo” (Caldera, A. Serrano. Filosofia e Crise. Pela Filosofia latino-americana. Vozes, Petrópolis, 1984, p. 42).

Portanto, "entendemos o ser do Ser humano como um fazer a história e como um fazer-se pela história. Neste sentido, a própria ontologia, o ser, se torna história. O ser do Ser humano acontece na história e pela história, e esta, por seu lado, só se realiza através do desenvolvimento do ser. Há entre o ser e a história uma unidade dialética (...)" (Ib., p. 44). A história não é a expressão externa do Ser humano, mas a sua própria manifestação. "O ser do Ser humano ao se manifestar o faz historicamente e o próprio ser é um manifestar-se na história" (Ib., p. 45).

Em síntese, a dimensão da "historicidade" comporta:


*  O fato que o Ser humano se encontra situado numa tensão entre o passado já realizado por outros Seres humanos (a história passada: patrimônio cultural, em sentido amplo) e novas possibilidades futuras a serem realizadas, social e individualmente, pelos Seres humanos de hoje e de amanhã (a história presente e futura: a cultura que acontece e que irá acontecer, sempre em sentido amplo);

*   A consciência de que o Ser humano - pela sua racionalidade e liberdade "situadas" e “datadas” - pode intervir no devir histórico;

*   O assumir o mundo e a si mesmo no mundo como tarefa, sublinhando a responsabilidade, que o Ser humano tem - para com a história, sobretudo para com o futuro da humanidade (Cf. Gevaert, J. Il problema dell'Uomo. Introduzione all'Antropologia filosófica. Elle Di Ci, Torino, 19814, p. 185. Ver também: VAZ, H. C. de Lima. Ontologia e História. Duas Cidades, 1968, p. 267-280 (Cap. IX: Consciência e História). 

O Ser humano é, pois, totalmente histórico (história), mas a historicidade não é - como veremos - a totalidade do Ser humano (o Ser humano todo).  

            (No próximo artigo começarei a refletir sobre o Ser humano histórico-social)

Compartilhando:

  1. Para uma visão mais abrangente e mais aprofundada do tema dos artigos sobre Ética (ou, Antropologia ética), leia o meu livro: Ética da Libertação: uma abordagem filosófico-teológica. Editora Lutas Anticapital, Marília - SP, 2023 (384 páginas).
  2. Se estiver, pois, interessado/a em refletir - teológica e pastoralmente - sobre a Igreja renovada e libertadora (com um enfoque ético-cristão), leia o meu livro: Eclesiologia da Libertação: reflexões teológico-pastorais. Editora: a mesma, 2022 (120 páginas).



                                                                                             Site: www.lutasanticapital.com.br/
                                                                                                  E-mail: editora@lutasanticapital.com.br


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 25 de outubro de 2023

 

O artigo foi publicado originalmente em:

https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-historico/

 








segunda-feira, 23 de outubro de 2023

À Comunidade Ocupação Paulo Freire

 


Carta aberta

 

Queridas irmãs e queridos irmãos, companheiras e companheiros de caminhada - heroínas e heróis, juntamente com suas crianças, da luta pelo direito à moradia digna - da Comunidade Ocupação Paulo Freire (cerca de 80 famílias), Setor Solar Ville (Goiânia - GO)

Sábado, dia 21 deste mês de outubro por volta das 10h - representantes de Ocupações do campo e da cidade, de Movimentos Sociais Populares, de Sindicatos de Trabalhadoras e Trabalhadores, de Partidos Políticos Populares, de Coletivos de Mulheres, de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), de Pastorais Sociais - com Dom João Justino, arcebispo da Arquidiocese de Goiânia - da Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil, do Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno e de outras Organizações Populares - nos encontramos na Comunidade de vocês para manifestar a nossa total solidariedade e irrestrito apoio contra as injustas ameaças de despejo da Prefeitura de Goiânia, que demostra - com isso - estar totalmente submissa aos interesses financeiros da especulação imobiliária dos donos do capital.

Todas e todos ficamos edificadas e edificados com a acolhida de vocês: uma acolhida de irmãos e irmãs, com muito calor humano e com muita amizade. Obrigado a todas e a todos. Os poderosos, “adoradores do deus dinheiro”, não têm condições de intender isso.

O direito à moradia digna é de todas e de todos. A terra que estão ocupando é de vocês. Continuem unidos e organizados. “Povo unido e organizado jamais será vencido”! Estamos com vocês. Contem conosco!

Já disse e reafirmo: o MST e os outros Movimentos Sociais, que lutam pelo Reforma Agrária Popular - o direito à terra de trabalho e de moradia no campo e na cidade - nunca realizaram, realizam e realizarão “Invasões”, mas “Ocupações”.

Toda terra sem função social no campo e na cidade; toda terra que na cidade, é “largada” - muitas vezes sem pagar impostos para o Poder Público - para futura especulação imobiliária, é de quem precisa dela para morar ou morar e trabalhar.

Repito o que já disse: os “Invasores” e verdadeiros “ladrões” do Brasil - não são as trabalhadoras e trabalhadores, mas os que fazem parte do 1% da população, que possui 50% dos bens do país.

Como cidadão, cristão, religioso e professor aposentado de Ética na UFG, reafirmo mais uma vez: todo despejo é injusto, antiético, desumano e anticristão e toda liminar de juiz, que pretende legalizar e institucionalizar a imoralidade pública do despejo, é iníqua, perversa e diabólica. Pessoa humana não se despeja! Só pode ser despejado o lixo degradável que não tem mais condições de ser reaproveitado.

Reafirmo ainda: só existem três casos nos quais as moradoras e os moradores podem ser removidos (não despejados), com muito respeito e dignidade, pelo Poder público:

Primeiro caso: se o terreno ocupado for uma área de risco de vida. Nesse caso, as moradoras e moradores devem ser removidos - com todo cuidado - o mais rápido possível e, se necessário, o Poder Público tem a obrigação de pagar o aluguel social.

Segundo caso:  se o terreno ocupado for uma área de preservação ambiental. Neste caso, porém, só depois que outras moradias estiverem prontas para receber com dignidade os novos moradores.

Terceiro caso: se o terreno ocupado for de utilidade pública. Nesse caso, vale o que eu disse no anterior.

Não esqueçamos: o sistema capitalista neoliberal é um “sistema econômico iníquo” (Documento de Aparecida - DA, 385), de uma iniquidade estrutural (pecado estrutural), ou um “sistema nefasto”, porque considera "o lucro como o motivo essencial do progresso econômico, a concorrência como lei suprema da economia, a propriedade privada dos bens de produção como um direito absoluto, sem limites nem obrigações correspondentes" (Paulo VI. Desenvolvimento dos Povos - PP 26).

Estou - e estamos - com vocês! Reforma agrária popular já! Um grande abraço de seu companheiro e irmão, Frei Marcos.



Ato de solidariedade à Comunidade Ocupação Paulo Freire,
ameaçada de despejo pela Prefeitura de Goiânia




Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 23 de outubro de 2023



terça-feira, 3 de outubro de 2023

O Ser humano com o Outro absoluto (3)

 


 

(Continuo as reflexões do artigo anterior - segunda parte - da série sobre o Ser humano)

Pergunto: No real, ou seja, em tudo o que existe - quais são as características da "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus? Fundamentalmente, são duas.

A primeira: ela é simultaneamente "ausência" e "presença" de Deus.

"Ausência": porque a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus (a relação ontológica ou criadora que se "concretiza" na existência dos seres) não é uma ação no sentido corrente. "O marceneiro está 'presente' ao móvel que faz, mediante o trabalho de fabricá-lo; a lua está 'presente' no oceano por meio da atração, que provoca as marés; o sol está 'presente' pela sua luz. 'Por em presença' implica 'ação sobre', 'transformação de'" (Podeur, L. Imagem moderna do mundo e Fé cristã. Paulinas, São Paulo, 1977, p. 126).

Ora, a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus "não é 'modificação de', mas 'pura posição'. Por isso, ela não é perceptível, mas fica como que 'oculta' atrás do mundo que ela 'põe' (...); só pode estar 'sob' o real, ou 'atrás' dele, ou 'do outro lado' dele; ela não poderia ser encontrada 'nele'" (Ib.).

A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus tem como "efeito" o próprio real; o sinal desta presença é a própria existência do real. Se neste momento - numa hipótese absurda - Deus não estivesse ontológica ou criadoramente presente, eu não existiria. Em outras palavras, a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus "põe" o quadro-mundo, mas - enquanto tal - não age "dentro", não "escreve" nele. A "ausência cósmica" de Deus é, portanto, inevitável e seu "silêncio cósmico", normal. A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus não é percebida; ela é a condição de possibilidade da existência do real, mas não pode estar no real, porque não é um elemento ou uma dimensão do real.

"Presença": porque a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus não é uma presença "física" ou "cósmica", mas uma presença muito mais intensa e muito mais profunda. Deus não é a "matéria" ou a "substância" das coisas, mas Ele as "põe" em tudo o que elas são (é esta a forma de presença mais imediata e próxima que se possa conceber). "Na presença comum de duas realidades, a existência de cada uma é pressuposta, depois são colocadas na presença uma da outra: a separação é anterior à presença, que de certo modo, é realizada de fora" (Ib., p. 127).

Na "presença ontológica" ou “presença criadora”, "a união precede e torna possível a diferença: Deus está presente ao real, de certo modo, 'antes' que ele exista e 'para que' ele exista" (Ib.),

Eu sou "eu" antes que alguém possa entrar em contato comigo, mas eu não sou "eu" (no sentido estrito do verbo ser) sem a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus que me "põe" no ser, como "põe" todas as coisas. Neste sentido, Deus é mais íntimo a mim do que eu mesmo. "Quando eu me torno presente, 'íntimo', a mim mesmo, Deus, de certo modo, 'já' está em mim: presente em mim antes de mim mesmo" (Ib. "Intimior intimo meo", escreve S. Agostinho a respeito de Deus).

A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus atinge o real por dentro e não por fora; é nisso que se funda toda relação para com Deus. Pela "presença ontológica" ou “presença criadora”, "Deus está no mais profundo da realidade; ele é o fundo, porque é o fundamento transcendente (absoluto) de tudo" (Ib., p. 128).



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 30 de setembro de 2023

 

O artigo foi publicado originalmente em:

https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-com-o-outro-absoluto-3/

(Continuarei as reflexões no próximo artigo, a quarta parte do mesmo tema)


                                    

O Ser humano com o Outro absoluto (4)


(Continuo as reflexões do artigo anterior da série sobre o Ser humano - terceira parte)


A segunda característica da "presença ontológica" (em linguagem filosófica) ou “presença criadora” (em linguagem teológica) de Deus é: no real, ou seja, em tudo o que existe, ela implica simultaneamente “dependência” e “independência” totais.

“Dependência total”: porque, de certo modo, o real é recebido a cada instante de Deus; é "re-posto" e "re-afirmado" sem cessar por Deus, Fonte do Ser nos seres.

“Independência total”: "devemos novamente sair dos esquemas habituais da ação. Quando um ser age sobre outro, ele o modifica, o de-'forma': a ação supõe sempre um paciente ao qual ela se aplica. Se, segundo este esquema, Deus é considerado como uma força, infinita e soberana, a autonomia e a consistência do real ficam por isso mesmo extenuadas. Considera-se, de fato, que Deus e o mundo estão no mesmo nível e, neste caso, o agir de Deus só poderia significar o esmagamento do mundo, ao passo que, inversamente, qualquer indício concreto em favor da consistência das realidades físicas pareceria retirar alguma coisa de Deus" (Podeur, L. Imagem moderna do mundo e Fé cristã. Paulinas, São Paulo, 1977, p. 128-129).

A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus não modifica nem transforma o mundo, mas o "põe" (o instaura) em sua consistência e autonomia.

Deus pode, sem dúvida, agir sobre o mundo, mas com isso não nos encontramos mais no nível de sua "presença ontológica" ou “presença criadora”. Logicamente, esta ação de Deus sobre o mundo só pode se realizar num segundo momento (não necessariamente cronológico, mas lógico).

A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus, como tal, é doação de consistência e autonomia; é condição necessária e também condição suficiente para a efetivação do real. Neste sentido, ela é pressuposta por toda atividade no mundo. Somente a massa "real" atrai, somente o fogo "real" queima, somente o átomo radioativo "real" se desintegra, etc.

"Suposta a existência do universo, não é necessário procurar fora dele a fonte do que nele se passa; ou, pelo menos, é nele que se deve procurá-la primeiro. Atingimos aqui o nível no qual funciona o pensamento científico, com o sucesso que todos sabem. Apenas, e isto é capital para o nosso problema, não temos mais que escolher entre ciência e Deus. Um e outro se articulam sem dificuldade, porque Deus encontrou o seu 'lugar' (modo humano de falar da 'presença ontológica' ou ‘presença criadora’ de Deus)" (Ib., p. 129).

Como exemplo, podemos perguntar: Foi a criação (Deus) ou a evolução que fez o Ser humano? A resposta é clara: uma e outra. O Ser humano é produto da evolução, mas, ao mesmo tempo - como todo real - é "posto" (envolvido, levado) por Deus. "Dependência total e independência total, longe de se excluírem, se implicam mutuamente" (Ib.).

Para quem sabe o que a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus comporta, "tudo se torna sinal e evocação da presença divina: desde o menor sopro de vento até o firmamento fervilhante de astros. Pode-se - deve-se - então lê-la em qualquer fenômeno e em qualquer circunstância, uma vez que a integralidade do real, no seu conjunto como nos seus detalhes, nas suas características como nas suas particularidades locais, não tem realidade senão por ela" (Ib., p. 130). Por isso, tudo o que existe - do ponto de vista ontológico ou criador - é "bom".

Por fim, a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus não só deve ser "demonstrada" ("conhecida", "pensada") pelo Ser humano, mas também (como veremos) deve ser "experienciada" - "vivida", "vivenciada" - por ele em sua Práxis. “Em Deus vivemos, nos movemos e existimos” ( At 17, 28).

(Com o próximo artigo - ainda dentro da série sobre o Ser humano - começarei a refletir sobre o Ser humano histórico)

Compartilhando:

  1. Para uma visão mais aprofundada do tema dos artigos que estou escrevendo sobre Ética (ou, Antropologia ética), leia o meu livro: Ética da Libertação: uma abordagem filosófico-teológica. Editora Lutas Anticapital, Marília - SP, 2023 (384 páginas).
  2. Se estiver, pois, interessado/a em refletir - teológica e pastoralmente - sobre a Igreja renovada e libertadora, leia o meu livro: Eclesiologia da Libertação: reflexões teológico-pastorais. Editora: a mesma, 2022 (120 páginas).

                                                 https://www.culturagenial.com/a-criacao-de-adao-michelangelo/


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 30 de setembro de 2023


 

O artigo foi pulicado originalmente em:

https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-com-o-outro-absoluto-4/

A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos