(Continuo as
reflexões do artigo anterior - segunda parte - da série sobre o Ser humano)
Pergunto: No real, ou seja, em
tudo o que existe - quais são as
características da "presença ontológica" ou “presença criadora” de
Deus? Fundamentalmente, são duas.
A primeira: ela é simultaneamente "ausência"
e "presença" de Deus.
"Ausência": porque a
"presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus (a relação
ontológica ou criadora que se "concretiza" na existência dos seres)
não é uma ação no sentido corrente. "O marceneiro está 'presente' ao móvel
que faz, mediante o trabalho de fabricá-lo; a lua está 'presente' no oceano por
meio da atração, que provoca as marés; o sol está 'presente' pela sua luz. 'Por
em presença' implica 'ação sobre',
'transformação de'" (Podeur, L. Imagem moderna do mundo e Fé cristã.
Paulinas, São Paulo, 1977, p. 126).
Ora, a "presença
ontológica" ou “presença criadora” de Deus "não é 'modificação de',
mas 'pura posição'. Por isso, ela não é perceptível, mas fica como que
'oculta' atrás do mundo que ela 'põe' (...); só pode estar 'sob' o real, ou
'atrás' dele, ou 'do outro lado' dele; ela não poderia ser encontrada
'nele'" (Ib.).
A "presença
ontológica" ou “presença criadora” de Deus tem como "efeito" o
próprio real; o sinal desta presença é a própria existência do real. Se neste momento - numa hipótese absurda - Deus não estivesse ontológica
ou criadoramente presente, eu não existiria. Em outras palavras, a
"presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus "põe"
o quadro-mundo, mas - enquanto tal - não age "dentro", não
"escreve" nele. A "ausência cósmica" de Deus é, portanto,
inevitável e seu "silêncio cósmico", normal. A "presença
ontológica" ou “presença criadora” de Deus não é percebida; ela é a condição de possibilidade da existência
do real, mas não pode estar no real, porque não é um elemento ou uma
dimensão do real.
"Presença": porque a "presença ontológica" ou
“presença criadora” de Deus não é uma presença "física" ou
"cósmica", mas uma presença muito mais intensa e muito mais profunda.
Deus não é a "matéria" ou a
"substância" das coisas, mas Ele as "põe" em tudo o que
elas são (é esta a forma de presença mais imediata e próxima que se possa
conceber). "Na presença comum de duas realidades, a existência de cada uma
é pressuposta, depois são colocadas na presença uma da outra: a separação é
anterior à presença, que de certo modo, é realizada de fora" (Ib.,
p. 127).
Na "presença ontológica" ou “presença
criadora”, "a união precede e torna possível a diferença: Deus está
presente ao real, de certo modo, 'antes' que ele exista e 'para que' ele
exista" (Ib.),
Eu sou "eu"
antes que alguém possa entrar em contato comigo, mas eu não sou "eu"
(no sentido estrito do verbo ser) sem a "presença ontológica" ou
“presença criadora” de Deus que me "põe" no ser, como "põe"
todas as coisas. Neste sentido, Deus é mais íntimo a mim do que eu mesmo. "Quando
eu me torno presente, 'íntimo', a mim mesmo, Deus, de certo modo, 'já' está em
mim: presente em mim antes de mim mesmo" (Ib. "Intimior intimo meo", escreve S. Agostinho a respeito de
Deus).
A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus atinge
o real por dentro e não por fora; é nisso que se funda toda relação para com Deus.
Pela "presença ontológica" ou “presença criadora”, "Deus está no
mais profundo da realidade; ele é o fundo, porque é o fundamento transcendente
(absoluto) de tudo" (Ib., p.
128).
Marcos Sassatelli,
Frade dominicanoDoutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral
(Assunção - SP)Professor aposentado de Filosofia da UFGE-mail: mpsassatelli@uol.com.br
Goiânia,
30 de setembro de 2023
O artigo foi publicado originalmente em:
https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-com-o-outro-absoluto-3/
(Continuarei as reflexões no próximo artigo, a quarta parte do mesmo tema)
O Ser humano com o Outro absoluto (4)
(Continuo as reflexões do artigo anterior da série sobre o Ser humano - terceira parte)
A segunda característica da "presença
ontológica" (em linguagem filosófica) ou “presença criadora” (em linguagem teológica) de Deus é: no real, ou seja, em tudo o que existe, ela
implica simultaneamente “dependência” e “independência” totais.
“Dependência total”: porque, de certo
modo, o real é recebido a cada instante de Deus; é "re-posto" e "re-afirmado"
sem cessar por Deus, Fonte do Ser nos seres.
“Independência total”: "devemos
novamente sair dos esquemas habituais da ação. Quando um ser age sobre outro,
ele o modifica, o de-'forma': a ação supõe sempre um paciente ao qual ela se
aplica. Se, segundo este esquema, Deus é considerado como uma força, infinita e
soberana, a autonomia e a consistência do real ficam por isso mesmo extenuadas.
Considera-se, de fato, que Deus e o mundo estão no mesmo nível e, neste caso, o
agir de Deus só poderia significar o esmagamento do mundo, ao passo que,
inversamente, qualquer indício concreto em favor da consistência das realidades
físicas pareceria retirar alguma coisa de Deus" (Podeur, L. Imagem
moderna do mundo e Fé cristã. Paulinas, São Paulo, 1977, p.
128-129).
A "presença
ontológica" ou “presença criadora” de Deus não modifica nem transforma o
mundo, mas o "põe" (o instaura) em sua consistência e autonomia.
Deus pode, sem dúvida, agir sobre o mundo, mas com isso não nos
encontramos mais no nível de sua "presença ontológica" ou “presença
criadora”. Logicamente, esta ação de Deus sobre o mundo só pode se realizar num
segundo momento (não necessariamente cronológico, mas lógico).
A "presença
ontológica" ou “presença criadora” de Deus, como tal, é doação de
consistência e autonomia; é condição necessária e também condição suficiente para a efetivação
do real. Neste sentido, ela é pressuposta por toda atividade no mundo. Somente
a massa "real" atrai, somente o fogo "real" queima, somente
o átomo radioativo "real" se desintegra, etc.
"Suposta a existência do universo, não é necessário procurar fora
dele a fonte do que nele se passa; ou, pelo menos, é nele que se deve
procurá-la primeiro. Atingimos aqui o nível no qual funciona o pensamento científico, com o sucesso
que todos sabem. Apenas, e isto é capital para o nosso problema, não temos mais que escolher entre ciência e
Deus. Um e outro se articulam sem
dificuldade, porque Deus encontrou o seu 'lugar' (modo humano de falar da
'presença ontológica' ou ‘presença criadora’ de Deus)" (Ib., p. 129).
Como exemplo, podemos perguntar:
Foi a criação (Deus) ou a evolução que fez o Ser humano? A resposta é clara:
uma e outra. O Ser humano é produto da evolução, mas, ao mesmo tempo - como
todo real - é "posto" (envolvido, levado) por Deus. "Dependência total e independência
total, longe de se excluírem, se implicam mutuamente" (Ib.).
Para quem sabe o que a "presença
ontológica" ou “presença
criadora” de Deus comporta, "tudo
se torna sinal e evocação da presença divina: desde o menor sopro de vento até
o firmamento fervilhante de astros. Pode-se - deve-se - então lê-la em qualquer
fenômeno e em qualquer circunstância, uma vez que a integralidade do real, no
seu conjunto como nos seus detalhes, nas suas características como nas suas
particularidades locais, não tem realidade senão por ela" (Ib., p. 130). Por isso, tudo o que existe - do ponto de
vista ontológico ou criador - é "bom".
Por fim, a "presença ontológica" ou “presença criadora” de
Deus não só deve ser "demonstrada"
("conhecida", "pensada") pelo Ser humano, mas também (como
veremos) deve ser "experienciada"
- "vivida", "vivenciada" - por ele em sua Práxis. “Em Deus vivemos, nos movemos e existimos” ( At 17, 28).
(Com o próximo artigo - ainda dentro da série sobre o Ser humano - começarei a refletir sobre o Ser humano histórico)
Compartilhando:
- Para uma visão mais aprofundada do tema dos artigos que estou escrevendo sobre Ética (ou, Antropologia ética), leia o meu livro: Ética da Libertação: uma abordagem filosófico-teológica. Editora Lutas Anticapital, Marília - SP, 2023 (384 páginas).
- Se estiver, pois, interessado/a em refletir - teológica e pastoralmente - sobre a Igreja renovada e libertadora, leia o meu livro: Eclesiologia da Libertação: reflexões teológico-pastorais. Editora: a mesma, 2022 (120 páginas).
https://www.culturagenial.com/a-criacao-de-adao-michelangelo/
Marcos Sassatelli,
Frade dominicanoDoutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral
(Assunção - SP)Professor aposentado de Filosofia da UFGE-mail: mpsassatelli@uol.com.br
Goiânia,
30 de setembro de 2023
O artigo foi pulicado originalmente em:
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