quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Em homenagem aos 63 anos da UFG

 


Como professor de Filosofia aposentado da Universidade Federal de Goiás (UFG) - com muita honra - uno-me aos estudantes, funcionários e funcionárias, professores e professoras, pesquisadores e pesquisadoras da UFG nas homenagens prestadas à Universidade pelos seus 63 anos de existência.

Não pude estar fisicamente presente na sessão solene da Assembleia Legislativa de Goiás (ALEGO), proposta pela deputada Bia de Lima (06/12/23) e da Câmara Municipal de Goiânia (14/12/23: dia do aniversário à noite), mas estou unido a todos e todas vocês. A UFG merece!

Na sessão solene da Câmara Municipal de Goiânia, a reitora Angelita Pereira de Lima, em seu discurso, lembra-nos que a Instituição “mesmo sendo uma Universidade jovem, figura entre as mil melhores do mundo em todos os rankings”. E conclui: “Temos muito que comemorar e celebrar e, principalmente, muito a agradecer à Comunidade externa” (O Popular, 15/12/23, p. 20). No artigo “A UFG nasceu para ser de Goiás”, a reitora escreve: “Em 2023, a UFG posicionou-se nos principais rankings internacionais entre as 5% maiores e melhores do mundo” e “está entre as 20 melhores do país” (Ib., 20/12/23, p. 3).

Como eterno aprendiz de filósofo - em homenagem à UFG pelos seus 63 anos de existência - coloco para nossa reflexão (no breve espaço de um artigo) uma questão que considero de fundamental importância, sobretudo hoje, na vida das Universidades: a questão da “não-neutralidade” ou da “não possibilidade da indiferença política” da ciência.

Embora essa questão refira-se a todos os momentos do processo do Conhecimento - comum (a maioria dos nossos conhecimentos, mesmo dos cientistas, são do Conhecimento comum), científico, filosófico e teológico - devido ao extraordinário desenvolvimento das Ciências - ela é particularmente sentida e debatida quando se trata do Conhecimento científico.

Em sentido amplo, Conhecimento científico é todo Conhecimento metódico e sistemático; em sentido estrito, é o Conhecimento metódico e sistemático que se fundamenta na observação rigorosa e na verificação experimental dos fatos ou fenômenos. O objeto do Conhecimento científico pode ser a realidade natural (o mundo material e vivente) e/ou a realidade humana (o mundo especificamente humano). O sujeito do Conhecimento científico é sempre o Ser humano.

Portanto, do ponto de vista do objeto do Conhecimento, podemos distinguir as Ciências em "Ciências naturais" e "Ciências humanas"; do ponto de vista do sujeito do Conhecimento, todas as Ciências são "Ciências humanas".

À postura da chamada “neutralidade científica” podemos fazer uma "crítica externalista" e uma "crítica internalista".

A "crítica externalista" procura revelar os mecanismos que condicionam externamente a prática científica. "Esse tipo de crítica, que investiu contra a concepção ingênua, segundo a qual a ciência seria um produto do espírito desligado das situações socialmente determinadas, tem mostrado que as ideias científicas partem necessariamente de um contexto social, são favorecidas ou entravadas por ele, mas, de qualquer forma, dependem dele como contexto de gênese, como o solo do qual brotam. Com mais ênfase, esse tipo de crítica tem mostrado que a atividade científica não se esgota em puro Conhecimento, pura ideia, mas retorna ao meio social na forma concreta de utilização prática de seus resultados. Dessa maneira, a crítica à neutralidade científica situa a atividade científica no contexto social mais amplo mostrando que ele é, ao mesmo tempo, o contexto de gênese e de utilização do Conhecimento científico" (MENDONÇA, W. Sobre a Neutralidade Científica, em "Encontros com a Civilização Brasileira", 12 (1979) 226. Cf. também: JAPIASSU, H. O mito da neutralidade científica. Imago, Rio de Janeiro, 1975).).

A "crítica externalista" à “neutralidade científica” é "muito sensível aos aspectos institucionais da prática científica, frequentemente deixados de lado pelo discurso da Filosofia da Ciência". Ela contribui "para orientar uma ação política a respeito da ciência" e representa "um verdadeiro progresso para a compreensão das implicações sociais do Conhecimento científico" (Ib.). Não consegue, porém, vincular definitivamente Conhecimento científico e sociedade, negando, assim, a possibilidade da neutralidade científica.

A "crítica internalista" à neutralidade científica - mesmo reconhecendo a importância da crítica ideológica ao contexto social de gênese e de utilização do Conhecimento científico - estende esta mesma crítica ao contexto específico da prática científica, isto é, ao espaço interno da ciência.

Ela mostra que "antes de qualquer aplicação específica do Conhecimento, há uma ligação profunda entre o projeto científico e o projeto social. Uma tentativa neste sentido exige que o universo do discurso científico, por um lado, e o universo da palavra e da ação correntes, por outro lado, sejam postos em correspondência como regidos pela mesma lógica. Segundo este modo de ver as coisas, as regras que definem as práticas sociais operam também nas abstrações do Conhecimento científico, isto é, operam internamente no discurso da Ciência. Somente assim resulta eliminada a separação entre conhecer e valorar, ou entre saber e agir; numa palavra, somente assim mostra-se que o Conhecimento científico é fato político" (Ib., p. 229).

Falamos aqui do Conhecimento científico como atividade humana e não dos produtos materiais obtidos através dele (exemplo: o computador). Estes, enquanto formulações acabadas das teorias científicas, são os resultados finais da pesquisa científica, ou seja, de todo o processo do Conhecimento científico e não têm conotação político-ideológica (Cf. Ib., p. 227-228).

Por fim, podemos dizer que - na Filosofia da Ciência - todas as ciências ganham um sentido mais profundo e mais humano.

Feliz Natal e um Ano Novo de muitas lutas e vitórias a todos/as da UFG e aos prezados/as leitores/as.

Sugestão: leiam ou releiam - nesses dias - os artigos “No Natal, Jesus tem lado” (2021) e “Natal 2022: que o lado de Jesus seja nosso lado” (2022): no IHU, no BLOG do Frei Marcos ou em outros sites)



Câmara de Goiânia entrega Comenda Colemar Natal e Silva - Foto: Antônio Silva
(14/12/23: 63 anos da UFG)



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 20 de dezembro de 2023


quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Mais uma Lei que criminaliza Trabalhadores e Trabalhadoras

 



No dia 27 de novembro passado, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado sancionou a Lei Estadual Nº 22.419/2023, aprovada pela Assembleia Legislativa de Goiás (ALEGO) no dia 21 do mesmo mês.

A Lei “estabelece a política estadual de segurança pública nas faixas de domínio e nas lindeiras das rodovias estaduais, bem como das rodovias federais delegadas ao Estado de Goiás” (Art. 1º).

Segundo a Lei, “compete ao Poder Público, para viabilizar a política instituída por esta Lei, observada a legislação aplicável a cada medida, entre outras ações:

  • adotar medidas de desforço imediato para garantir a dominialidade do bem público;
  • lavrar autuação administrativa (...);
  • realizar autuação por infração ambiental (...);
  • identificar os invasores e cruzar os dados para verificar quais deles são beneficiários de programas sociais do Governo Estadual;
  • promover medidas judiciais para a responsabilização civil dos invasores;
  • conduzir coercitivamente os invasores para a oitiva deles pelas autoridades policiais;
  • realizar busca e apreensão de materiais usados para invadir as faixas de domínio;
  • requerer o afastamento de sigilos, nos termos da lei, bem como busca domiciliar, quando forem necessários para a efetivação da política pública;
  • e promover o indiciamento dos invasores por crimes porventura cometidos na ocorrência do ilícito” (Art. 3º, I-IX. Leia o texto da Lei na íntegra).
  • Lembrar também que os moradores e moradoras dos Acampamentos ou Ocupações não são “invasores” e “criminosos”, mas pessoas que lutam pela Reforma Agrária Popular e ocupam terrenos - que por direito já são delas - para morar e trabalhar.

A questão específica dos Acampamentos “nas faixas de domínio e nas lindeiras das rodovias”, da qual trata a Lei, denuncia a urgência da Reforma Agrária Popular.

Segundo a CPT, “mais de 3 mil famílias que vivem nos 51 Acampamentos localizados às margens de rodovias em Goiás ficam agora sob risco de despejo, sem garantia de seu direito de defesa e de seus direitos fundamentais” (cptnacional.org.br). Que descaramento! Que crueldade!

O “Goiás Social” - do qual o governo faz tanta propaganda - deveria se preocupar não só em dar assistência em situações de vulnerabilidade ou de extrema necessidade (o que é necessário), mas - também e sobretudo - enfrentando as injustiças sociais estruturais, como:

  • Apoiando os trabalhadores e trabalhadoras, que lutam pelos três T (como diz o Papa Francisco): Terra, Teto (ou Moradia) e Trabalho, direitos fundamentais de toda pessoa humana.
  • Combatendo a concentração de terra nas mãos de poucos, o latifúndio improdutivo e o trabalho escravo. “Goiás retoma liderança de trabalho escravo” (O Popular, 13/12/23, p. 11. Manchete). Em 2023 número parcial do Ministério do Trabalho aponta 729 resgates (Cf. Ib.). Que vergonha, senhor governador Ronaldo Caiado!
  • Humanizando o sistema prisional de Goiás para que os nossos irmãos e irmãs presos sejam tratados como pessoas humanas e não como rejeitos da sociedade (Cf. https://www.cnj.jus.br/link-cnj-retrata-situacao-dos-presidios-em-goias/). Feliz Natal e um  2024 de muitas lutas e vitórias!

 

“Direitos Humanos não se pede de joelhos,

exige-se de pé” (Dom Tomás Balduino).


Acampamento Garça Branca, às margens da GO 173, em Jaupaci (GO)
Foto: Tiago de Melo - cptgoias.org.br



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 16 de dezembro de 2023


sábado, 9 de dezembro de 2023

O Ser humano histórico-social (1)

 


 

(Continua a série de artigos sobre o Ser humano)

Para o Ser humano, “ser-no-mundo" historicamente, significa, antes de tudo, “ser-no-mundo" socialmente (sócio-econômico-político-ecológico-cultural-religiosamente). O Ser humano histórico “é-na-sociedade", “é-sociedade". Trata-se de uma sociedade que influencia e condiciona dialeticamente o indivíduo. O Ser humano histórico é socialidade na individualidade e - como veremos - individualidade na socialidade. A dimensão da socialidade é constitutiva do Ser humano histórico.

Mais especificamente, o Ser humano histórico é numa sociedade historicamente determinada, ou seja, numa formação social (sócio-econômico-político-ecológico-cultural-religiosa): uma totalidade social estruturada num dado momento histórico, uma realidade concreta, empírica (Cf. MENDONÇA, N. Domingues, O uso dos conceitos. Uma questão de interdisciplinariedade.  Vozes, Petrópolis, 19852, p. 63).

Uma sociedade historicamente determinada torna-se um sistema social (sócio-econômico-político-ecológico-cultural-religioso), isto é, um conjunto de estruturas sociais (sócio-econômico-político-ecológico-culturais-religiosas) diversas, dialeticamente interligadas, interrelacionadas, interdependentes e interatuantes, como partes que se mantêm articuladas entre si. Modificar uma das partes significa modificar o conjunto (Cf. Ib., p. 40).

Um sistema social não se reduz à soma de suas partes; não é uma simples justaposição de indivíduos humanos. É um sistema de interação humana estrutural, é algo de objetivo, que independe da consciência e da vontade dos indivíduos.

Por sua vez, todo sistema se constitui de subsistemas. Por exemplo, o sistema social (em sentido estrito), o sistema econômico, o sistema político, o sistema ecológico e o sistema cultural-religioso, são subsistemas do sistema social (em sentido amplo); o sistema capitalista é um subsistema do sistema econômico; o sistema legislativo e um subsistema do sistema político (que é chamado também de regime político), e assim por diante. Um subsistema pode às vezes, ser subsistema de dois ou mais sistemas, que se sobrepõem apenas parcialmente. O sistema mercantilista, por exemplo, é subsistema tanto do sistema econômico, quanto do sistema político. Um sistema pode ainda ser considerado, numa outra situação, um subsistema (Cf. Ib., p. 40-41).

Embora com diferentes enfoques, na análise do conceito de sistema, "as ideias de conjunto, organicidade, e funcionamento se apresentam como constantes e permitem a dialética entre o que é diverso, mas simultaneamente interdependente entre si, contudo formando um todo complexo ou unitário" (Ib., p. 41).

Ver, pois, uma formação social como sistema é um instrumento de análise, ou seja, uma forma analítica de perceber uma realidade concreta.

O sistema social (sócio-econômico-político-ecológico-cultural-religioso) é entendido, por sua vez, como uma estrutura de relações humanas objetivas. De fato, o significado de estrutura vincula-se à ideia de sistema. A estrutura é "a forma pela qual se articulam as partes de um sistema, como o tipo de relação e combinação que estas partes mantêm entre si e com o todo, como também o tipo de relação e de combinação do todo com as partes" (Ib., p. 47).

O conceito de estrutura, portanto, se inter-relaciona com o de sistema. Em certo sentido, o sistema é uma estrutura e a estrutura é um sistema.

A noção de estrutura é ligada à de conjuntura. A conjuntura é a maneira como a estrutura se manifesta (se concretiza) em determinado momento histórico. "A conjuntura é entendida como o estado momentâneo da estrutura, a maneira como num determinado momento os fatores se combinam para influenciar os acontecimentos. O termo conjuntura é empregado para designar o conjunto de elementos que mudam com mais frequência, quando comparados ao conjunto de elementos que são mais estáveis dentro do sistema" (Ib., p. 52).

            (Continua no próximo artigo)


Compartilhando:

Editora Lutas Anticapital: Marília - SP, 2023 (p. 384)



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 04 de dezembro de 2023

 


A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos