quarta-feira, 26 de junho de 2024

Missão profética da CPT

 


A Comissão Pastoral da Terra (CPT), Pastoral socioambiental vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), é organizada em 21 Regionais distribuídas em todo o Brasil.

“Criada em 1975 em nível nacional e em 1976 no Estado de Goiás, tendo o seu CNPJ registrado em 1980, ela nasce em um contexto extremamente delicado da história brasileira, marcado pela violação de direitos e pela privação de liberdade que buscava calar a voz do povo que ousava gritar por democracia e se opor ao regime autoritário militar que se instalou no país após o golpe de Estado ocorrido em 1964”.

Agentes pastorais de todo o Brasil da Comissão Pastoral da Terra (CPT) estiveram reunidos e reunidas em Goiânia, entre os dias 19 e 21 deste mês de junho, num Encontro de formação e preparação das comemorações do Ano jubilar da CPT, cuja abertura aconteceu sábado, dia 22.  

Nesse dia - com Ato público, caminhada e Celebração eucarística - a CPT deu início “às atividades de memória e festejo de 50 anos de atuação em defesa dos direitos das populações do campo, das águas e das florestas em todo o Brasil e de presença profética junto a estes povos”.

As atividades iniciaram na Praça Universitária, “com um momento de memória da caminhada pastoral e homenagem aos mártires que tombaram em defesa da terra e de seus povos, personagens históricos que infelizmente foram vitimados na luta pelos direitos dos mais empobrecidos, a exemplo da Ir. Dorothy Stang, Pe. Josimo e tantos/as outros/as religiosos/as e lideranças populares”.

Ao som do batuque do Grupo Coró de Pau, os e as participantes do Ato público saíram em caminhada - uma verdadeira Romaria - até a Catedral Metropolitana. Dom João Justino, arcebispo de Goiânia, presidiu a Celebração eucarística de lançamento do Ano Jubilar da CPT, concelebrada por Dom Ionilton Lisboa, presidente da CPT e bispo da Prelazia de Marajó (PA), outros bispos e padres presentes.

Desde sua fundação, a CPT Nacional e - de modo especial - a CPT Goiás sempre tiveram - mesmo nos tempos difíceis da ditadura civil militar - o apoio destemido e profético de Dom Fernado Gomes dos Santos, 1º arcebispo de Goiânia.

Pessoalmente tive a graça de ser seu colaborador e amigo na prestação do serviço de Coordenador da Pastoral arquidiocesana e, nos últimos tempos de sua vida, também de Vigário Geral. E ainda: estivemos juntos no apoio à luta dos trabalhadores e das trabalhadoras por terra de moradia nos bairros da periferia da Goiânia, denunciando e combatendo a especulação imobiliária capitalista injusta, desumana, antiética e anticristã.

A CPT Goiás e a CPT Nacional tiveram o mesmo apoio de Dom Tomás Balduíno, bispo da diocese de Goiás, de Dom Pedro Casaldáliga, bispo de S. Felix do Araguaia, de outros bispos, padres, religiosos/as e agentes pastorais.

“A CPT Goiás - unida à CPT Nacional - atuou com firmeza denunciando a violência contra as famílias camponesas, padres, religiosos/as, agentes pastorais e lideranças populares em geral, que foram perseguidas e assassinadas por defender Comunidades que se organizavam para exigir o cumprimento da lei brasileira e para que elas pudessem ter o acesso à terra ou permanecer na terra para nela trabalhar, produzir e prover o seu sustento”.

A CPT Goiás e a CPT Nacional sempre buscaram valorizar a vida e a dignidade das pessoas que vivem no campo e sempre foram uma referência: na defesa dos direitos da pessoa humana; na luta contra o trabalho escravo; no cuidado da Nossa Casa Comum (a Mãe Terra); no incentivo de práticas agroecológicas voltadas para a diversificação da produção e da autonomia produtiva, visando garantir a segurança alimentar nutricional, além do acesso a água, com a recuperação de nascentes e as articulações de defesa do cerrado; no apoio à luta dos Povos Indígenas pela demarcação de suas terras e por seus direitos. “Nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra e nenhum trabalhador sem direitos” (Papa Francisco).

A CPT Nacional publicou, em abril deste ano, o Caderno “Conflitos no Campo Brasil” (38ª edição). Em 2023 os conflitos foram 2.303, contra 2.050 do ano anterior. A partir dessa publicação, a CPT Goiás publicou o Caderno “Conflitos no Campo 2023. Análise dos dados registrados em Goiás”. No Estado, em 2023, os conflitos foram 167 contra 80 do ano anterior. Esses dados mostram o quanto é ainda necessária no Brasil a missão profética da CPT.

(As fontes dos textos com aspas e de todo o artigo são: https://cptnacional.org.br/ e https://cptgoias.org.br/)

 Esperançar é preciso! O primeiro mártir Jesus de Nazaré, foi preso e morto na cruz com a acusação: “achamos este homem fazendo subversão entre o nosso povo” (Lc 23,2). Os e as mártires da América Latina, do Brasil e de Goiás - seus seguidores e seguidoras - estão presentes e caminham conosco! A missão profética continua! Um “Mundo Novo” é possível!





CPT Goiás






Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br


Goiânia, 25 de junho de 2024


terça-feira, 11 de junho de 2024

Defender os que acreditam em Deus é defender a razão radicalmente

 


Há alguns dias, no O Popular de 25 e 26 de maio deste ano - publicado também na Folha de S. Paulo do dia anterior - li o artigo de Mário Sérgio Conti: “Defender os ateus é defender a razão”. Confesso que - embora respeitando muito os ateus, entre os quais tenho vários amigos - fiquei surpreso com o teor do artigo. O autor - com ironia - faz afirmações sobre o tema sem nenhuma fundamentação racional (filosófica). Cito uma: “Está firme na cadeira? Então escuta essa: deus não existe. É uma invenção compensatória”.

Lembrando, com razão, que no Brasil o Estado é laico desde 1891 e criticando o não cumprimento dessa laicidade pública, o autor usa uma expressão cínica e desrespeitosa para com todos os cristãos e cristãs. Diz ele: “Entra-se no plenário do STF e se topa com a imagem de um homem exangue, sangrando em troncos transversais. A mesma figura de mau gosto adorna o gabinete do presidente da República”. Que falta de consideração!

Numa perspectiva oposta à do jornalista M. S. Conti e no espaço de um artigo (ultrapassando-o um pouco), faço agora algumas reflexões filosóficas sobre o tema: Defender os que acreditam em Deus é defender a razão radicalmente, em todos os seus anseios e em todas suas aspirações mais profundas.

O Ser humano é um “ser-no-mundo”: a Irmã Mãe Terra Nossa Casa Comum (que integra o Universo). A mundanidade - espacialidade e temporalidade - é comum ao Ser humano e a todos os seres existentes. Ora, o Ser humano, por ser racional (dotado de razão), não é somente um “ser-no-mundo”, mas é também um “ser-com-o-mundo”. A "mundanidade" - "espacialidade" e "temporalidade" - torna-se "humana"; ela adquire um "sentido humano", um "valor humano"; ela torna-se "consciente" (pensante): uma realidade objetiva e subjetiva ao mesmo tempo.

"A consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos Seres humanos é o seu processo de vida real" (Marx, K. e Engels, F. A Ideologia Alemã (I - Feuerbach). Hucitec, São Paulo, 19865, p. 37). A mundanidade - espacialidade e temporalidade - consciente é a condição existencial própria do Ser humano racional.

A relação do Ser humano “com-o-mundo” material e vivente e “com-os-outros” (semelhantes) é um fato evidente por si mesmo, incontestável e indubitável. Não precisa demonstrá-la, mas somente mostrá-la e examiná-la criticamente, fazendo ver que é impossível negá-la sem negar a própria existência do Ser humano. O mundo material e vivente e os outros (semelhantes) impõem-se por si mesmos, irrompem - por assim dizer - na existência de todo Ser humano. O mundo material e vivente e os outros não existem porque o Ser humano pensou e demonstrou sua existência. Antes de qualquer argumento, eles existem. Sua existência-presença é uma exigência de relacionamento, um apelo dirigido ao Ser humano e à sua responsabilidade.

"Eu sou eu e minha circunstância". A vida do Ser humano "encontra-se sempre em certas circunstâncias, uma disposição em torno das coisas e demais pessoas. Não se vive num mundo vago, já que o mundo vital é constitutivamente circunstância, é este mundo, aqui, agora. E circunstância é alguma coisa determinada, fechada, mas ao mesmo tempo aberta e com largueza interior, com vão ou concavidade onde mover-se, onde decidir-se: a circunstância é um álveo que a vida se vai fazendo dentro de um rio inexorável. Viver é viver aqui e agora - o aqui e o agora são rígidos, impermutáveis, mas amplos" (Ortega y Gasset, J. Que é Filosofia? Livro Ibero-Americano, Rio de Janeiro, 19712, p. 184).

O Ser humano é um “vir-a-ser”, um ser de busca permanente. Para o Ser humano - por ir contra seus anseios e aspirações - é repugnante pensar que com a morte (aos 70, 80, 90 ou mais anos) acaba tudo, como se nunca tivesse existido. Na experiência de vida do Ser humano, o Infinito, o Absoluto, Deus está nele e com ele. O Ser humano participa do Infinito e - Nele - torna-se também infinito.

O Ser humano “é-no-mundo”, não somente “com-o-mundo” material e vivente e “com-os-outros” (semelhantes), mas também “com-o-Outro Absoluto” (Deus). Os anseios e aspirações do Ser humano não têm limites. A felicidade que ele busca é infinita.  Essa é a maior, a mais profunda e a mais radical experiência da razão humana. A questão de Deus é, antes de tudo, uma questão da razão: uma questão filosófica ou, mais especificamente, uma questão ontológica. Consequentemente, ela torna-se também uma questão teológica, ou seja, uma questão da razão iluminada pela Fé.

“A Fé ilumina todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do Ser humano e orienta a mente para soluções plenamente humanas” (Concílio Vaticano II, GS 11). Ora, se forem soluções plenamente humanas, pela lógica são também plenamente ou radicalmente racionais.

O Ser humano - como pessoa e como sociedade - é um ser histórico e, ao mesmo tempo, meta-histórico: “já-e-ainda-não” (neste mundo, passando de condições de vida menos humanas para condições de vida mais humanas) e “além-da-morte” (na eternidade, na plenitude da vida e da felicidade).

O Ser humano, portanto, “é estruturalmente orientado para o futuro; ele é um ser estruturalmente aberto à esperança. O futuro esconde possibilidades que o Ser humano nunca pode conhecer inteiramente. Todas estas possibilidades se referem ao Ser humano: são suas possibilidades, embora não possa realizá-las e nem as realizará todas. Por isso, o Ser humano pode olhar para o futuro com esperança (...). O Ser humano tem o direito de projetar a própria esperança também além da morte" (Gevaert, J. Il problema dell'uomo. Introduzione all'Antropologia Filosofica. Elle Di Ci, Torino, 19814, p. 189).

Desse “olhar para o futuro com esperança” - que é uma exigência da razão e, mais ainda, da razão iluminada pela fé - nasce a relação do Ser humano (“ser-no-mundo”) “com-o-Outro Absoluto” (Deus). A respeito dessa relação, não podemos dizer a mesma coisa das outras duas relações: “com-o-mundo” material e vivente e “com-os-outros” (semelhantes). Ela não é um fato incontestável, indubitável e evidente por si mesma; não só precisa ser mostrada e examinada, mas demonstrada e experiênciada. Mas como?

Precisamos reencontrar no real - previamente aceito em sua consistência e autonomia - o sentido da "presença ontológica" (em linguagem filosófica) ou “presença criadora” (em linguagem teológica) de Deus (Cf. Podeur, L. Imagem moderna do mundo e Fé cristã. Paulinas, São Paulo, 1977, p. 117- 142).

As ciências explicam ou poderão explicar - experimentalmente - tudo o que acontece ou acontecerá no mundo, desde a existência do Planeta Terra até a tempestade de ontem.

A filosofia (à luz da razão) e a teologia (à luz da razão, iluminada pela Fé) não são ciências, mas o horizonte no qual todas as ciências ganham profundidade de sentido.


Elas partem da explicação "experimental", vão além dela, voltam para ela e, assim, num processo contínuo de reflexão, procuram "compreender" sempre mais profundamente o mundo, seu sentido e seu valor.


E ainda, elas nos abrem o caminho para reconhecer em nossa existência a “presença ontológica” ou “presença criadora” de Deus, que designa a presença da Fonte ou Fundamento absoluto do Ser nos seres. O mundo "perpetuamente, a cada instante, atualmente, é 'posto' por Deus, 'sustentado' e 'fundado' por Ele na existência". Sem Deus atualmente "pondo" o mundo, ele não existiria.


Defender a razão radicalmente significa, pois, reconhecer e experienciar a “presença ontológica” ou “presença criadora” de Deus em cada momento da nossa existência. É ela que dá sentido à nossa vida de Seres humanos e divinos ao mesmo tempo (Cf. Ib.).


Por fim, defender a razão radicalmente significa também denunciar e combater o uso manipulado de Deus e da Fé para legitimar e legalizar situações sociais injustas, desumanas e antiéticas.

Para uma visão mais aprofundada e abrangente do tema tratado, leia o meu livro: Ética da Libertação. Uma abordagem filosófico-teológica. Lutas Anticapital, Marília - SP, 2023, pág. 384 (três partes: O Ser humano - O Ser humano como Ser de Práxis - O Ser humano práxico como Ser de Ética).

www.lutasanticapital.com.br/ - editora@lutasanticapital.com.br




Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br


Goiânia, 10 de junho de 2024


segunda-feira, 3 de junho de 2024

O Ser humano histórico-individual (2)

 


(Continua a série de artigos sobre o Ser humano)

Para o Ser humano histórico, “ser-no-mundo" individualmente, significa não só “ser-no-mundo" corporeamente (como vimos), mas também “ser-no-mundo" bio-psiquicamente (vitalmente). A dimensão da bio-psiquicidade (vitalidade) é constitutiva da individualidade humana. O Ser humano individual “é-na-vida”, “é-vida” (bio-psique). É vida individual ou indivíduo vivente.

Depois da percepção de sua corporeidade, a segunda (não no sentido cronológico, mas lógico) experiência existencial (concreta) que o Ser humano individual (o indivíduo) faz de si mesmo é a percepção de sua bio-psiquicidade (vitalidade).

A palavra “vida” (bios) ou “alma” (“nefes”, “psique”) significa o Ser humano individual todo enquanto ser vivente (bio-psíquico). Quando se diz que o Ser humano individual é “vida” (bio-psique), o sujeito é sempre o Ser humano individual todo (integral), mas a ênfase (o destaque) é colocada na sua bio-psiquicidade (vitalidade).

De fato, aprofundando nossa reflexão sobre um Ser humano individual concreto (um indivíduo), a segunda coisa que se constata é que o indivíduo todo - e não uma parte dele - é vida (bio-psique). O Ser humano individual “é integralmente vida”.

A bio-psiquicidade - como a corporeidade - diz respeito ao Ser humano individual todo (integral), mas não é a totalidade do Ser humano individual.

Enquanto ser bio-psíquico, o Ser humano individual relaciona-se com o mundo vivente, é natureza vivente e identifica-se com ela. Como "ser de natureza material vivente", o Ser humano individual tem também suas raízes na matéria viva (vivente). A natureza do indivíduo humano é, em segundo lugar, "a de suas células: em princípio idênticas à natureza de todos os seres vivos com apenas a diferença na sua programação diversa que lhe impõe as 'fichas perforadas' muito especiais que são seus cromossomos e seus genes. É, finalmente, a natureza de seus órgãos e sistemas internos, bastante semelhantes aos de muitos de seus contemporâneos e 'antepasados'...." (GIMÉNEZ, G. Hacia una Ética de Liberación social. Universidad Católica, Assunción, Mimeo 1972, p. 101-102).

O Ser humano individual, por ser parte da natureza material vivente e produto de sua evolução, acha-se completamente submetido às leis gerais do desenvolvimento da mesma.

Por exemplo, o Biólogo, enquanto cientista, pode provar - pela verificação experimental - e afirmar com razão que todos os fenômenos humanos individuais são totalmente biológicos: produtos de um conjunto de células vivas. O mesmo Biólogo, porém, sempre enquanto cientista, não pode provar e nem afirmar que o biológico (o vivente) é ou não é a totalidade do Ser humano individual.

O Psicólogo, também, enquanto cientista, pode provar - pela verificação experimental - e afirmar com razão que todos os fenômenos humanos individuais são totalmente psíquicos: produtos de um conjunto de caracterizações psíquicas. O mesmo Psicólogo, porém, sempre enquanto cientista, não pode provar e nem afirmar que o psíquico é ou não é a totalidade do Ser humano individual.

(No próximo artigo continuaremos as nossas reflexões, mostrando que - para o Ser humano histórico - “ser-no-mundo” individualmente significa ainda “ser-no-mundo” espiritualmente ou pessoalmente)

Compartilhando:

Para uma visão mais aprofundada e abrangente dos temas tratados, leia o meu livro: Ética da Libertação. Uma abordagem filosófico-teológica. Lutas Anticapital, Marília - SP, 2023 (pág. 384).


www.lutasanticapital.com.br/ - editora@lutasanticapital.com.br

 




Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 02 de junho de 2024
 

 

O artigo foi publicado originalmente em:

https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-histórico-individual-2/ (24/05/24)