terça-feira, 29 de abril de 2025

O Ser humano meta-histórico-social



    (Continua o tema dos artigos anterioriores sobre o Ser humano)


Na vida do Ser humano histórico - “já e ainda não” meta-histórico - a liberdade é uma exigência e, ao mesmo tempo, uma consequência da racionalidade. Ela "é um risco e um mistério que envolvem a absoluta frustração no ódio (morte plena) ou a radical realização no amor (vida plena)” (BOFF, L., Vida para além da Morte. Vozes, Petrópolis, 1973, p. 94). Esse risco e esse mistério devem ser assumidos e vividos permanentemente.


A realidade que chamamos de "morte" - como todos e todas sabemos por experiência - é constitutiva da condição existencial do Ser humano histórico. Sabemos que temos de morrer e - vendo a morte dos outros e das outras ou antecipando a nossa pela imaginação - podemos adquirir a experiência vital e a convicção real de nossa própria morte.


"Vejo claramente diante de mim minha morte. No constante incremento da eficácia vivida do meu passado, que ata cada vez mais fortemente cada um dos meus passos, sob cuja determinação nos sentimos cada vez mais claramente, e que atua como um todo sobre a vida; no progressivo estreitamento da esfera do futuro que me está dada na expectação imediata; na pressão, cada vez mais forte, do âmbito do presente, inserido entre o passado e o futuro; em todas as vivências, me está dado o acercamento da morte, que se aproxima por segundos; independente do lugar em que me encontre, dentro do ritmo vital de minha espécie humana, esteja enfermo ou são, observe-o ou não o observe, chegue ou não a formulá-lo claramente num juízo. Porque esta experiência está jacente na vida, na essência da vida, não no acaso de minha organização humana e no especial ritmo de sua existência: infância, juventude, velhice e duração da vida" (SCHELER, M. Murte y Supervivencia. Revista de Occidente, Madrid, s.d., p. 75-76. Citado por: DEL VALLE, A. Basave. Filosofia do homem - Fundamentos de Antropologia metafísica. Convívio, São Paulo, 1975, p. 247).


Neste sentido, o Ser humano, desde os primeiros momentos de sua vida,  caminha para  a "morte".


Ele é um "ser-para-a-morte", ou seja, um "ser-para-a-passagem” - última e definitiva - do "modo de ser histórico" (em processo permanente de meta-historicização: meta-histórico “já e ainda não”) para o "modo de ser meta-histórico" (em estado pleno: meta-histórico “além da morte”). Como, porém, o Ser humano histórico é "ontologicamente" voltado para a vida e a vida plena, ele é, sobretudo, um "ser-para-a-vida”.  


Em síntese, podemos dizer que o Ser humano histórico como "corpo" biopsíquico e espiritual ou pessoal, "morre" (a ênfase é colocada no corpo); o Ser humano histórico como "espírito" (ou "pessoa") biopsíquico e corpóreo, "ressuscita" ou "vive para além da morte" (a ênfase é colocada no espírito ou pessoa). O sujeito, porém, da Morte e Ressurreição é sempre o Ser humano histórico todo.


Na "morte" (cisão total do tempo para a eternidade) o Ser humano "acaba de nascer totalmente" (BOFF, L., o.c., p. 55) para a vida plena ou morte plena.


O Ser humano meta-histórico é, antes de tudo, Ser humano meta-social (meta-sociedade), mas a “meta-socialidade” não é a totalidade do Ser humano meta-histórico. A "meta-socialidade" é - podemos dizer - "meta-socialidade individual", porque a sociedade influencia e condiciona dialeticamente o indivíduo.


O Ser humano social, ou seja, o Ser humano histórico em suas relações sociais ou estruturais, é "ontologicamente" voltado para o meta-social; é, "já e ainda não", meta-social. A dimensão da meta-socialidade é constitutiva da meta-historicidade do Ser humano.


O Ser humano histórico meta-socializa-se dialética e permanentemente como “Vida social” ou “Morte social”, até à meta-socialização plena (total, absoluta) como “Vida social plena” ou “Morte social plena”.


A meta-socialização plena (total, absoluta) como “Vida social plena” é a afirmação da dimensão social do Ser humano em sua plenitude, ou seja, da humanização plena (da Vida eterna, da Páscoa definitiva, da Plenitude da Ressurreição, da Plenitude do Reino de Deus, da Salvação eterna, do Céu, do Paraíso).


A meta-socialização plena (total, absoluta) como “Morte social plena” é a negação de tudo o que foi dito no parágrafo anterior.


Contrariamente a uma interpretação "individualista", afirmar a meta-socialidade do Ser humano meta-histórico, significa "afirmar uma Comunidade humana 'além da morte’ (temporal), no sentido que a Comunidade humana - tendo já uma dimensão meta-histórica - náo é destruida por esta mesma morte" (GEVAERT, J., o.c., p. 268).


Para o Ser humano meta-social, “estrutural e constitutivamente” ligado aos outros (semelhantes), o processo dialético permanente (o caminho) da meta-socialização - até à meta-socialização plena (total, absoluta) como Vida meta-social plena ou Morte meta-social plena - passa pelo reconhecimento ou não dos outros como outros e pela experiência do amor meta-social (meta-estrutural) ou não (desamor meta-social, egoísmo meta-social), em todas as suas manifestações.


Essa experiência é ainda a condição necessária para encontrar (conhecer e vivenciar) o significado fundamental - último e definitivo - da existência humana meta-social.


A experiência do amor meta-social se dá (acontece) na e pela Práxis meta-sócial (voltaremos sobre   o assunto, falando da Práxis meta-social).


     (Continua nos próximos artigos sobre o Ser humano)

    O artigo foi publicado originalmente em:

                  https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-meta-historico-social/ (27/03/25)





Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)   

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br - Cel. e WA: (62) 9 9979 2282 


https://freimarcos.blogspot.com/ - Goiânia, 28 de abril de 2025



segunda-feira, 21 de abril de 2025

Irrestrita solidariedade às Ocupações - Veemente repúdio às ameaças de despejo

 


“Mabel quer ceder áreas públicas para a construção civil” (O Popular, 02/04/25, p. 4 - Manchete). “A Prefeitura tem uma lista preliminar de 125 terrenos que poderiam entrar nas parcerias” (ib.).

Na realidade, o que o prefeito quer mesmo com as parcerias é: colaborar com o crescimento da especulação imobiliária na cidade de Goiânia, tornando os ricos cada vez mais ricos. Em contrapartida, ele quer receber “uma determinada quantia de dinheiro” para legalizar as parcerias e inibir as Ocupações, ameaçando-as de despejo.

De acordo com a SEPLAN, segundo o Sistema de cadastro de áreas da Prefeitura, “há atualmente 875 áreas públicas vagas e 305 ‘invadidas’ no município de Goiânia. O Órgão admite, no entanto, que os dados precisam ser checados” (ib.).

“Mabel diz que a gestão adotará medidas para a retirada de Ocupações irregulares. Na lista prévia de 125 terrenos, há 8 processos judiciais, que tratam de Ocupação”. O prefeito declara: “Vamos buscar estas áreas que estão invadidas (...). Será assim: ou a pessoa paga para que a gente possa pagar outras áreas, ou nós vamos tirar a invasão. O fato é que nós vamos recuperar essas áreas públicas que estão invadidas. São muitas” (ib.).

Antes de tudo, um esclarecimento: senhor prefeito, não se trata de “Invasões irregulares”, mas de Ocupações legítimas de terrenos sem função social por trabalhadores e trabalhadoras que querem e necessitam ter uma moradia digna: um direito fundamental de todo ser humano. Os verdadeiros invasores são os capitalistas, que se apropriam de terrenos - que são de todos e todas - para a especulação imobiliária.

Que vergonha, senhor prefeito! Infelizmente, suas atitudes mostram claramente de que lado o senhor está: do lado dos poderosos. Se o senhor estivesse do lado dos pobres, sua primeira preocupação - depois de eleito - teria sido: criar - com as áreas públicas e com a desapropriação de outras áreas sem função social - as condições necessárias para que todos e todas tivessem seu direito à moradia digna respeitado.

São Tomás de Aquino - em sua época - já dizia que, do ponto de vista ético, nenhum ser humano tem direito ao supérfluo, enquanto o outro (ser humano) não tem o necessário. E dizia ainda que a destinação dos bens para uso de todos os seres humanos é de direito natural primário e a posse (ou propriedade), de direito natural secundário. Quando o direito natural secundário impede o acesso de todos os seres humanos ao direito natural primário, é injusto e antiético (seja do ponto de vista filosófico ou teológico). Trata-se de verdades fundamentais que integram o Pensamento Social Cristão.

Papa Francisco pergunta: “Reconhecemos que este Sistema impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social nem na destruição da natureza? Se é assim - insisto - digamo-lo sem medo: queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas. Este Sistema é insuportável: não o suportam os Camponeses, não o suportam os Trabalhadores, não o suportam as Comunidades, não o suportam os Povos. E nem sequer o suporta a Terra, a Irmã Mãe Terra, como dizia São Francisco”. O Papa diz ainda que este Sistema insuportável exclui, degrada e mata”; e que os “3 T” - terra, teto (moradia) e trabalho - são direitos fundamentais de todo ser humano (2º Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Santa Cruz de la Sierra - Bolívia, 09/07/15).

Do ponto de vista da ética humana e cristã (radicalmente humana), declaro e advirto:

1.    Declaro:

·         Na cidade, os terrenos “largados” para futura especulação imobiliária são de quem precisa deles para morar e trabalhar dignamente. São terrenos que não só podem, mas que devem ser ocupados por essas pessoas.

·         No campo, os latifúndios improdutivos e sem nenhuma função social são de quem precisa deles para morar e trabalhar dignamente na agricultura familiar e comunitária, produzindo alimentos sadios (sem venenos) para a alimentação do povo. São latifúndios que não só podem, mas que devem ser ocupados por essas pessoas.

·    Todo despejo é injusto (como já disse outras vezes). Ora, se o despejo tiver liminar de juiz, é mais injusto ainda, porque se trata de uma injustiça legalizada e institucionalizada. Pessoa humana nunca se despeja.


Observação: só existem três casos nos quais as pessoas podem ser removidas (não despejadas) com dignidade e respeito de uma Ocupação. Primeiro caso: quando a área é de utilidade pública; segundo caso: quando a área é de preservação ambiental. Nestes dois casos, a remoção pode acontecer somente depois que outras moradias estiverem prontas para serem ocupadas. Terceiro caso: quando a área é de risco para a vida dos moradores. Neste terceiro caso, a remoção deve ser imediata e o Poder Público tem a obrigação de pagar o aluguel social até que outras moradias estejam prontas para serem ocupadas.


2.    Advirto:

·         Os que foram eleitos para algum cargo público devem estar sempre a serviço do Povo, a partir dos mais pobres.

·         Lembrem-se que Deus é justo e “seus caminhos são justos e verdadeiros” (Ap 15,3). A justiça de Deus pode tardar, mas não falha.

     Por fim, a denúncia e o pedido de solidariedade do Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Diteitos (MTD), do Comitê de Direitos Humanos Dom Tomás Balduino e da Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil são meus também.

300 famílias em Situação de Ocupação no setor Solar Ville (Goiânia), distribuídas em quatro Ocupações diferentes: Paulo Freire, Marielle Franco, Terra Prometida e Manaim, recebem periodicamente novas ameaças de despejo. Nesse contexto, dezenas de crianças, mães, pessoas idosas, com deficiência e doentes - que foram acolhidos e acolhidas nas Comunidades - continuam vivendo em estado de aflição e surpresa. Quanta maldade! (cf. @mtd.goias, @comitedomtomas, @justpazop).



 


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)   
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br - Cel. e WA: (62) 9 9979 2282

Goiânia, 17 de abril de 2025

domingo, 13 de abril de 2025

A anistia como “um ato humanitário”! Que deboche!



Em São Paulo, “um dia após participar da manifestação na Avenida Paulista, promovida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em favor da anistia aos envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, o governador Ronaldo Caiado (UB) classificou nesta segunda-feira (7), a medida como um ato humanitário, de significado maior, em decorrência das penas, que extrapolam aquilo que a população também entende como parâmetro em outros casos” (O Popular, 8 de abril de 2025). O governador Ronaldo Caiado é muito cara-de-pau!

21 anos de ditadura civil - militar (1964-1985) marcados:

  • pela suspensão dos direitos democráticos;
  • pela violação sistemática de todos os direitos humanos e
  • pela repressão mais cruel, perversa e diabólica possível (massacres, torturas, mortes).

Declarar publicamente - como fez Ronaldo Caiado - que a anistia aos envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro/23 é “um ato humanitário”, significa debochar de todos e todas nós. È um absurdo! É inadmissível!

Somente três breves relatos - entre muitos, feitos à Comissão Nacional da Verdade por brasileiros e brasileiras que caíram nas garras da ditadura - são suficientes para nos mostrar o que ela foi:

  • Dirce Machado da Silva, agricultora do Norte de Goiás filiada ao Partido Comunista Brasileiro, conta o que os militares fizeram com seu marido para obrigá-la a delatar seus companheiros:

“Quebraram o nariz do Ribeiro com soco, arrastaram pelos pés e penduraram em uma árvore de cabeça para baixo, o sangue pelo nariz escorrendo. Se eu não falasse o que eles queriam ouvir, iriam matar o Ribeiro enforcado".

  • Izabel Fávero, professora e militante da organização Vanguarda Armada Revolucionária (VAR), conta que foi torturada em casa, na cidade de Nova Aurora, no Paraná, junto com seu marido:

"Batiam na gente com toalhas molhadas, tinham um alicate e beliscavam a gente no corpo, eles levaram meu marido e o jogaram no córrego que tinha ao lado de casa, deram choques elétricos, dentro do córrego. Ele ficou com traumas o resto da vida, ele teve problemas urinários e teve que tratar a vida toda".

  • Robeni Baptista da Costa, que era estudante secundarista e militante da União Nacional dos Estudantes (UNE):

"Eu fui para a cadeira do dragão (aparelho de tortura) em que os caras jogaram água e me deram um choque na vagina, no seio, o pior foi na orelha, porque a impressão que dá é que jogaram o cérebro da gente no liquidificador, sabe?".

Depoimentos como esses revelam uma perversidade diabólica e desmentem também o trecho do texto, assinado (no dia 01 de abril/22) pelos então Ministro da Defesa Braga Neto e Comandantes das Forças Armadas, segundo o qual "nos anos seguintes ao dia 31 de março de 1964, a sociedade brasileira conduziu um período de estabilização, de segurança, de crescimento econômico e de amadurecimento político, que resultou no restabelecimento da paz no País".

Rebatem ainda as palavras do então vice-presidente Hamilton Mourão, para quem em 1964 "a nação salvou a si mesma". Que salvação é essa, que prende, tortura e mata os que discordam do regime!

Para completar, o então presidente Jair Bolsonaro, entre outras idiotices, disse que sem a ditadura o Brasil seria "uma republiqueta". Que mentira! Para Bolsonaro “uma mentira a mais ou a menos não faz a menor diferença” (https://noticias.uol.com.br/colunas/chico-alves/2022/04/01/elogios-a-ditadura-anteciparam-o-dia-da-mentira.htm).

Governador Ronaldo Caiado, como o senhor - em sã consciência - pode afirmar que a anistia dada aos que tramaram a volta à ditadura é “um ato humanitário”? É muita hipocrisia! O senhor deve achar que o povo é idiota!

Como podem existir pessoas que ainda querem a volta da ditadura! Anistia nunca!

Respeitando seus direitos de pessoas humanas (o que a ditadura não fez), os responsáveis pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro/23 e tentativa de golpe devem ser presos e punidos. Terão, assim, tempo para refletir e - quem sabe - mudar de vida! Esperançar é preciso. Feliz Páscoa!


 
             Militares cercam o Campus Saúde da UFMG em Belo Horizonte.                                           Senado, 08/01/23                                 
                                      Foto: Projeto República/UFMG                                                                               Marcelo Camargo - Agência Brasil
   




Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)   
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br - Cel. e WA: (62) 9 9979 2282

Goiânia, 11 de abril de 2025

 


A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos