segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Jesus como o grande Educador

 

No Brasil, desde 1964, a Igreja promove a Campanha da Fraternidade (CF), que tem seu tempo forte na Quaresma e continua durante o ano todo. A Campanha apresenta sempre um Tema e um Lema que nos ajudam a viver a Quaresma como tempo de conversão, mudança de vida e preparação para a Páscoa, construindo uma sociedade e uma cultura mais justas, fraternas e solidárias, e fazendo acontecer a Boa Notícia do Reino de Deus na história do ser humano e do mundo: a Irmã Mãe Terra Nossa Casa Comum.

O Tema deste ano de 2022 é: Fraternidade e Educação e o Lema: Fala com sabedoria, ensina com amor (cf. Pr 31,26). Por ser sempre atual, neste ano, é a terceira vez que o tema Educação aparece na CF (as primeiras duas foram em 1982 e 1998), sob prismas diferentes.

O mundo e nele o Brasil “estão diante de um desafio: redescobrir caminhos para uma reconstrução que não é parcial, mas global; que não atinge somente alguns aspectos, mas deve chegar às raízes do modo como pessoas e povos compreendem e organizam a totalidade da vida. O mundo de nosso tempo precisa encontrar caminhos para se reconstruir, ouvindo os clamores dos vulneráveis em uma casa comum cada vez mais vulnerabilizada” (CF22. Texto-Base. Apresentação).

Educar “é um ato eminentemente humano. Somos renovados quando aprendemos mais a respeito da vida e seu sentido, quando nos ensinam novos conhecimentos e quando percebemos que em nós existe a profunda sede de aprender e ensinar” (ib.).     

Educar “é também uma ação divina. A Bíblia nos mostra a história de um Deus que educa seu povo, caminhando com ele, compreendendo suas fragilidades, respeitando suas etapas e alertando diante dos erros. Quando contemplamos as ações e palavras de Jesus, encontramos um caminhar educativo. Sua presença atenciosa junto às pessoas, a relação entre os milagres e a conversão, o uso de exemplos recolhidos do cotidiano, tudo, enfim, nos apresenta Jesus como o grande educador” (ib).

Neste ano, a CF 22, “mais do que abordar um ou outro aspecto específico da problemática educacional, nos convoca a refletir sobre os fundamentos do ato de educar” (ib.). Nos recorda que educar não é um ato isolado. É encontro no qual todos são educadores e educandos. É tarefa da própria pessoa, da família, da escola, da Igreja e de toda a sociedade. Afinal, como nos ensina o conhecido provérbio de origem africana, ‘é preciso uma aldeia para se educar uma criança’” (ib.)

A realidade da educação “nos interpela e exige profunda conversão de todos/as. Verdadeira mudança de mentalidade, reorientação da vida, revisão das atitudes e busca de um caminho que promova o desenvolvimento pessoal integral, a formação para a vida fraterna e para a cidadania” (CF22. Texto Base, nº 5)

Todos e todas “somos convidados a ver a realidade da educação em diversos âmbitos, iluminá-la com a Palavra de Deus, encontrando e redescobrindo meios eficazes que favoreçam processos mais adequados e criativos a fim de que ninguém seja excluído de um caminho educativo integral que humanize, promova a vida e estabeleça relações de proximidade, justiça e paz. A educação é um indispensável serviço à vida. Ela nos ajuda a crescer na vivência do amor, do cuidado e da fraternidade” (ib. nº 6)

“O testemunho de uma Igreja (acrescento eu: de Base) missionária é o princípio que qualifica o anúncio do Evangelho e a torna capaz de propor aos homens e mulheres de boa vontade um novo aprendizado: educar é um ato de esperança no ser humano. É contribuir para que cada pessoa, cada discípulo/a missionário/a de Jesus Cristo ofereça o melhor de si a Deus, ao próximo, à Igreja e à sociedade. Educar com sabedoria e amor é estimular o cuidado pela vida, desde a concepção, passando pelo fim natural, até a eternidade. Convictos do poder transformador da educação pedimos: Senhor, ajudai-nos a criar um mundo novo!” (CF22. Texto Base, nº 221).

Educação pública de qualidade para todos e para todas!

Vivamos e sejamos sempre promotores de uma educação libertadora “desde os Pobres”: a educação praticada pelo grande educador Jesus de Nazaré e seu seguidor Paulo Freire.

 

Oração da Campanha da Fraternidade 2022

           

Pai Santo, neste tempo favorável de conversão e compromisso, dai-nos a graça de sermos educados pela Palavra que liberta e salva. Livrai-nos da influência negativa de uma cultura em que a educação não é assumida como ato de amor aos irmãos e de esperança no ser humano. Renovai-nos com a vossa graça para vencermos o medo, o desânimo e o cansaço, e ajudai-nos a promover uma educação integral, fraterna e solidária. Fortalecei-nos, para que sejamos corajosos na missão de educar para a vida plena em família, em Comunidades Eclesiais (de Base) missionárias, nas escolas, nas universidades e em todos os ambientes. Ensinai-nos a falar com sabedoria e educar com amor! Permitais que a Virgem Maria, Mãe educadora, com a sabedoria dos pequenos e pobres, nos ajude a educar e servir com a pedagogia do diálogo, da solidariedade e da paz. Por Jesus, vosso Filho amado, no Espírito, Senhor que dá a vida. Amém.




Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 28 de fevereiro de 2022

A questão da “sinodalidade” na Igreja (1ª parte)

 

Em outubro de 2021, o Papa Francisco deu início a um novo Sínodo (sýnodos: caminhar juntos)  com o tema: "Por uma Igreja Sinodal: comunhão, participação e missão". Trata-se de um caminho sinodal de três anos, articulado em três fases: diocesana, continental, universal.

  • Fase diocesana: outubro de 2021 a abril de 2022;
  • Fase continental: setembro de 2022 a março de 2023;
  • Fase universal: outubro de 2023.

Terminada a fase continental, a Secretaria Geral do Sínodo - recolhendo tudo o que foi refletido nas bases - enviará um segundo Documento de Trabalho aos participantes da Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que será realizado em Roma, segundo os procedimentos da Constituição Apostólica “Episcopalis Communio” (terceira e última fase).

O itinerário do caminho sinodal - afirma o papa Francisco - “foi concebido como um dinamismo de escuta recíproca (gostaria de frisar: um dinamismo de escuta recíproca), conduzido em todos os níveis da Igreja e que diz respeito a todo o Povo de Deus”. Os bispos, os padres, os religiosos, as religiosas e todos os cristãos e cristãs “devem ouvir-se” e, depois, “ouvir-se uns aos outros”. “Quem tiver ouvidos, ouça o que o Espírito diz às Igrejas” (Ap. 2,7).

“O Sínodo é até o limite. Inclui a todos e todas: os pobres, os mendigos, os jovens toxicodependentes, todos esses que a sociedade descarta, fazem parte do Sínodo”. “O cristianismo deve ser sempre humano, humanizante, reconciliar diferenças e distâncias, transformando-as em familiaridade, em proximidade”. “Em tempo de pandemia, o Senhor impulsiona a missão de uma Igreja que seja sacramento de cuidado”. “Um dos males da Igreja, aliás uma perversão, é esse clericalismo que separa o padre, o bispo das pessoas”.  

 “O tema da sinodalidade não é o capítulo de um tratado sobre eclesiologia, e muito menos uma moda, um slogan ou um novo termo a ser usado ou instrumentalizado nos nossos encontros. Não! A sinodalidade expressa a natureza da Igreja, a sua forma, o seu estilo, a sua missão”. Assim falamos de Igreja sinodal, “seguindo o que podemos considerar o primeiro e mais importante ‘manual’ de eclesiologia, que é o livro dos Atos dos Apóstolos.

No caminho sinodal, “a fase diocesana é muito importante, porque realiza a escuta de todos os batizados e batizadas”. Precisamos “superar a imagem de uma Igreja dividida entre líderes e subordinados, entre os que ensinam e os que têm de aprender, esquecendo que Deus gosta de inverter as posições: ‘derrubou os poderosos dos seus tronos e elevou os humildes’ (Lc 1, 52)”.

Caminhar juntos “evidencia mais a horizontalidade do que a verticalidade”. Nós pastores “caminhamos com o povo, às vezes à frente, outras no meio e outras atrás. O bom pastor deve caminhar na frente para guiar, no meio para encorajar e não esquecer o cheiro do rebanho, atrás porque também o povo tem ‘faro’. Tem olfato para encontrar novas vias para o caminho, ou para encontrar novamente a vereda perdida”.

Como cristãos e cristãs, “o senso da fé (sensus fidei) nos qualifica na missão profética de Jesus Cristo, para que possamos discernir quais são os caminhos do Evangelho hoje” (cf. Concílio E. Vaticano II. A Igreja - LG, 34-35).

(Fonte:https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2021/september/documents/20210918-fedeli-diocesiroma.html).

Fala-se que o Sínodo é “o maior processo de consulta democrática da história da Igreja Católica” (acrescento: a partir da Igreja imperial). Nas Comunidades da Igreja primitiva, todos e todas viviam como irmãos e irmãs. Tudo era comum e decidido em comum.

É realmente louvável e merece total apoio o esforço do nosso irmão o papa Francisco para que toda a Igreja viva a sinodalidade, o caminhar juntos. Ora, na vivência da sinodalidade temos - penso eu - quatro momentos. Neste Sínodo estamos vivendo os primeiros dois momentos:

  • 1º momento: a vivência da sinodalidade nas reflexões dos Encontros diocesanos e continentais;
  • 2º momento: a vivência da sinodalidade nas propostas que surgem nesses Encontros (apresentação e aprovação). 

Falta ainda a vivência do terceiro e do quarto momentos da sinodalidade - abaixo relacionados - para que a Igreja volte a ser, em nossa realidade de hoje, uma Igreja realmente evangélica, como as primeiras Comunidades cristãs.

  • 3º momento: a vivência da sinodalidade na Assembleia Geral Ordinária do Sínodo do Povo de Deus (terceira e última fase do caminho sinodal), substituindo o Sínodo dos Bispos. Afinal, a Igreja não é o Povo de Deus?
  • 4º momento: a vivência da sinodalidade na aprovação das decisões tomadas na Assembleia e publicadas no Documento final.

A vivência do 3º e 4º momentos da sinodalidade só será possível quando a nossa Igreja Católica tomar realmente consciência que todos os seres humanos têm a mesma dignidade e que, por isso, devem viver a igualdade e praticar a democracia de maneira plena, sem restrições.

A vivência da sinodalidade é, portanto, a prática da democracia radical na Igreja das pessoas de fé.

Um exemplo a ser seguido: por 50 anos a Prelazia de S. Felix do Araguaia, com seu bispo Dom Pedro Casaldáliga, viveu plenamente a sinodalidade (em seus quatro momentos). “Havia uma verdadeira horizontalidade - bispo, padres, religiosos, religiosas e demais cristãos e cristãs - todos e todas eram protagonistas. Todos e todas tinham direito a falar nas reuniões e a votar em assuntos que exigiam decisões conjuntas. Todos e todas eram irmãos e irmãs pelo mesmo batismo que receberam. Este jeito de ser Igreja vivido na Prelazia mostra que outra Igreja é possível!” (Prelazia de São Félix do Araguaia. Alvorada, julho-setembro, 2021).

Um dia chegaremos lá! Esperançar é preciso! (Veja no http://freimarcos.blogspot.com/ os artigos sobre as questões da dignidade, da igualdade e da democracia na Igreja).



                                                                     Ave Maria


Dom Pedro Casaldáliga - Brasil de Fato RS


Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

Goiânia, 14 de fevereiro de 2022


O Artigo foi publicado originalmente em:
https://portaldascebs.org.br/a-questao-da-sinodalidade-na-igreja/



segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

A Igreja das catacumbas está muito viva


A Igreja das Catacumbas é a “Igreja Pobre, para os Pobres, com os Pobres e dos Pobres”. É a Igreja CEBs, “que nasce do povo pelo Espírito de Deus”. É a Igreja de Jesus de Nazaré.

No dia 16 deste mês de fevereiro, assistimos - presencialmente ou online - ao espetáculo de uma Igreja imperial e triunfalista: a chamada “posse canônica” do novo arcebispo de Goiânia - GO, Dom João Justino de Medeiros Silva, no Santuário Basílica Sagrada Família. Como já escrevi no artigo anterior, cristão ou cristã não toma posse, mormente se a “posse” for a demonstração de uma Igreja poderosa (veja em: http://freimarcos.blogspot.com/2022/02/cristao-ou-crista-nao-toma-posse.html ou https://ocaminheirodoreino.com/2022/02/16/cristao-ou-crista-nao-toma-posse%EF%BF%BC/).

A respeito da Celebração de “posse” do novo arcebispo de Goiânia, duas denúncias precisam ser feitas:

Primeira denúncia: a irresponsabilidade da Arquidiocese de Goiânia em relação à questão da saúde. Na ”posse”, a Igreja desrespeitou acintosamente as orientações de segurança sanitária da OMS, em relação a COVID-19 e suas variantes. Uma das orientações é justamente evitar aglomerações e o contato próximo com muitas pessoas, principalmente em espaços fechados. As imagens da chamada “posse canônica” comprovam essas aglomerações.

Segunda denúncia: infelizmente, o Projeto pastoral de Dom João Justino é - como ele mesmo disse - a continuação do Projeto pastoral de Dom Washington Cruz. Ele está claramente delineado nessas palavras:

“Meu querido Dom Washington, meu querido patriarca. Sucedê-lo é uma bênção e uma grande responsabilidade. O senhor ofereceu sua vida à Igreja do Brasil, particularmente neste Regional onde está como bispo há 35 anos. Os seus últimos 20 anos de zelo, cuidado e serviço à Igreja de Goiânia nos permitem, hoje, avançar mais seguros. Qualquer agradecimento que eu lhe fizer será muito pouco por tudo o que o senhor fez. Já disse ao senhor que quero tê-lo como referência. Escutá-lo será muito importante para compreender o que esta Igreja pede de mim. Saiba que terei a alegria de zelar por seu bem-estar”.

Enganam-se redondamente aqueles e aquelas que pensam que essas palavras são somente uma cortesia ou um agrado a Dom Washington. Dizer isso, significa não conhecer os meandros dos ambientes eclesiásticos (não eclesiais) ou clericais.

Sem julgar a consciência de ninguém - só Deus pode fazer isso - na caminhada de renovação da Igreja em Goiânia - que eu vivi intensamente desde o início da década de 70 - Dom Washington representa um retrocesso de 50 anos em 20, ou seja, a volta a uma Igreja pré-conciliar.

Só para citar um exemplo: no último Diretório de Catequese da Arquidiocese de Goiânia, a “Catequese Renovada” (que marcou a renovação da Catequese no Brasil depois do Concílio) e os Documentos da II Conferência de Medellín (que são o Concílio para a América Latina e Caribe) não são nem lembrados. Trata-se de um esquecimento proposital.

 Tudo indica que Dom João Justino vai dar continuidade - embora com alguns atos ditos progressistas - ao projeto de restauração pastoral de Dom Washington. Também o que podemos esperar de um arcebispo que - como o próprio Dom Washington - vai morar num palacete episcopal? Não é um contratestemunho permanente para a Igreja dos Pobres? Não tinha acabado a época dos palacetes episcopais?

A meu ver, a primeira atitude que Dom João Justino devia ter tomado seria: morar numa casa simples numa Comunidade pobre e transformar o palacete episcopal num Centro para as Pastorais Sociais Ambientais que trabalham junto com os Movimentos Populares. Fica aqui uma sugestão.

Pessoalmente, não estou disposto a “mendigar” pequenos espaços de apoio aos Pobres dentro de uma estrutura de Igreja aliada dos Pilatos e Herodes de hoje. Pobres não precisam de “momentos de atenção ou cuidados especiais”. Eles precisam que a Igreja assuma - como Jesus de Nazaré - seu lado e se comprometa com sua causa, que é a causa de um Mundo Novo, ou seja, do Reino de Deus na história do ser humano e da Irmã Mãe Terra Nossa Casa Comum. Só assim a Igreja será realmente evangélica.

A Igreja das CEBs e a Teologia da Libertação têm a força do Espírito Santo e é por isso que continuam vivas, muito vivas, mesmo que seja nas Catacumbas.  





                   https://www.oabgo.org.br/oab/noticias/institucional/oab-go-prestigia-posse-canonica-de-dom-justino-de-medeiros-silva/


Marcos Sassatelli, Frade dominicna
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 18 de fevereiro de 2022


quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Cristão ou cristã não “toma posse”

 


Voltemos às fontes: a vida de Jesus de Nazaré e a vida das primeiras Comunidades cristãs. Jesus, em sua vida anônima, foi carpinteiro com seu pai José e, em sua vida pública, esteve do lado dos Pobres como verdadeiro irmão. Vivendo a compaixão, Ele sempre foi solidário com aqueles e aquelas que na sociedade não tinham voz e vez, ajudando-os a se libertarem de tudo o que impedia a vida. ”Eu vim para que tenham vida e a tenham em plenitude” (Jo 10,10).

"Vocês sabem: aqueles que se dizem governadores das nações têm poder sobre elas, e os seus dirigentes têm autoridade sobre elas. Mas, entre vocês não deve ser assim: quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servidor de vocês, e quem de vocês quiser ser o primeiro, deve tornar-se o servidor de todos. Porque o Filho do Homem (Jesus) não veio para ser servido, mas para servir e dar a própria vida como resgate por todos e todas” (Mc 10,42-45).

Com seu ensinamento e com sua prática, Jesus incomodou os poderosos: fariseus, mestre da Lei e sumos sacerdotes. Na sinagoga de Nazaré, depois de afirmar - citando os profetas Elias e Eliseu - que “nenhum profeta é aceito em sua pátria”, “todos na sinagoga ficaram furiosos. Levantaram-se e o expulsaram da cidade. Levaram-no até o alto do morro sobre o qual a cidade estava construída, com a intenção de lança-lo no precipício. Jesus, porém, passando pelo meio deles, continuou o seu caminho” (Lc 4,24.28-30).

Na última Ceia, depois do lava-pés, Jesus dirigindo-se aos discípulos disse: “eu lhes dei um exemplo, para que vocês façam do modo como eu fiz” (Jo 13,15). Jesus nunca “tomou posse” e nunca sentou em “cátedras”, a não ser a cátedra da cruz.

Os membros das primeiras Comunidades cristãs - seguindo o exemplo de Jesus - viviam como irmãos e irmãs e serviam uns aos outros conforme as necessidades de cada um e de cada uma. Nas Comunidades, os apóstolos eram irmãos entre irmãos e irmãs. Nunca “tomaram posse” e nunca sentaram em “cátedras episcopais”. Como a de Jesus, a “cátedra de S. Pedro” foi a cruz, na qual - segundo a tradição - ele pediu para ser crucificado de cabeça para baixo, por não se achar digno de ser crucificado do mesmo jeito de Jesus.

“A multidão dos que acreditavam era um só coração e uma só alma. Ninguém dizia que eram seus os bens que possuía, mas tudo entre eles era posto em comum. Os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus. E todos eles e elas eram muito estimados” (At 4,32-33).

Como estamos longe desse modelo de Comunidade cristã e de Igreja! Por conseguinte, como estamos longe do Evangelho de Jesus de Nazaré!

As insígnias episcopais, as cátedras, os objetos litúrgicos de ouro, as celebrações luxuosas e triunfalistas e a chamada “posse canônica” denotam uma Igreja que pretende ser poderosa, hierárquica e triunfalista: uma “sociedade perfeita”.

Jesus pediu aos discípulos/as: “entre vocês não deve ser assim”. Infelizmente, a Igreja não atendeu ao pedido de Jesus e fez justamente o contrário. Só para citar um exemplo, a maneira como os bispos são escolhidos e nomeados é totalmente antidemocrática - contrária à prática da sinodalidade da qual se fala tanto hoje - e antievangélica.

No início do Cristianismo, os bispos eram escolhidos pelas Comunidades e, às vezes, até por aclamação, como no caso de Santo Ambrósio

Portanto: cristão ou cristã - mesmo padre, bispo ou papa - nunca “toma posse”, mas se coloca sempre disponível para servir: “Aqui estou! Envia-me” (Is 6,8). Depois da extraordinária pescaria, Simão Pedro e seu grupo deixaram tudo e seguiram a Jesus” (Lc 5,11), por incrível que pareça sem ”posse canônica”.

Após sua Ressurreição, aparecendo aos discípulos, Jesus disse: “A paz esteja com vocês! Assim como o Pai me enviou, eu também envio vocês. Tendo falado isso, Jesus soprou sobre eles, dizendo: ‘Recebam o Espírito Santo’” (Jo 20,21). Mais uma vez, sem “posse canônica”.

Na perspectiva do Evangelho, o nosso irmão Dom João Justino, devia ter chegado em Goiânia alguns dias antes do dia fixado para assumir seu novo ministério, visitado algumas Comunidades pobres da periferia de Goiânia e em uma delas (mesmo que fosse na Rua em frente à porta de entrada da Igrejinha da Comunidade) marcada a Missa do Espírito Santo, convidando (com todos os cuidados necessários por causa da pandemia da Covid-19 e suas variantes) representantes de toda a Arquidiocese de Goiânia. Como teria sido bonito! A Celebração falaria por si só e mostraria que a Igreja tem lado: o lado dos pobres, o lado de Jesus de Nazaré.

Continuemos sonhando! Com certeza, um dia nosso sonho tornar-se-á realidade!

Em tempo: no lugar das palavras “governo” ou” “governar”, usemos as palavras “pastoreio” ou “apascentar”, que é muito mais evangélico. Na Igreja não existe “governo”, mas “pastoreio”. Como cristãos e cristãs - além de sermos ovelhas do rebanho de Jesus - somos chamados também a participar de sua missão de Bom Pastor. 


Rumo ao 15º Intereclesial

cebsdobrasil.com.br





                                                                                                                                                                            Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 15 de fevereiro de 2022










Em memória de Pedro e Vagner

 

NOTA



16 de fevereiro de 2005: “14 mil pessoas são brutalmente despejadas da Ocupação Sonho Real (no Parque Oeste Industrial), em Goiânia - GO, através da Operação Noturna Criminosa da Polícia Militar, provocando inclusive o assassinato de Pedro e Vagner(Livro-Agenda Lat.-americana Mundial 2022).

A data - por representar uma das piores barbáries humanas não só da história de Goiânia, mas também do Brasil e do mundo - entrou, há anos, no calendário latino-americano mundial, para que sua memória não seja esquecida e nunca mais se repita uma barbárie como essa. Fazer sua memória - ou seja, torna-la presente - fortalece a resistência e a luta do povo por seus direitos.

O direito à moradia digna é um direito fundamental e sagrado de toda pessoa humana e, consequentemente, o direito à ocupação de terras sem função social, “largadas” para fins de especulação imobiliária.

A desocupação ocorreu através da cinicamente chamada Operação Triunfo, que contou com a mobilização de 1,8 mil militares. A ação policial durou cerca de uma hora e trinta minutos e - pelo seu nível de maldade e crueldade - foi uma verdadeira operação de guerra nazista contra os pobres. Durante o massacre, Pedro Nascimento da Silva, de 27 anos (companheiro da lutadora Eronildes) e Wagner da Silva, de 20 anos, foram mortos a tiros. 40 pessoas foram feridas a bala (ficando uma paraplégica) e 800 foram detidas. Várias pessoas desapareceram e, por isso, levantou-se a suspeita de mais vítimas fatais não identificadas.

Antes da Operação Triunfo, a Polícia Militar realizou - de 0 às 6h e por 10 dias - a também cinicamente chamada Operação Inquietação com o intuito de assustar os moradores (muitas crianças ficaram traumatizadas) e desmobilizá-los. Pelo requinte de crueldade e perversidade, foram duas Operações diabólicas. Os responsáveis pela Operação Triunfo tiveram o descaramento de dizer - citando São Paulo - que os militares “combateram o bom combate”: uma verdadeira blasfêmia.

Após o despejo, durante a permanência dos Sem-Teto nos Ginásios do Novo Horizonte e da Capuava (três meses) e no Acampamento provisório do Grajaú (três anos), várias pessoas morreram por causa das condições insalubres de vida. Não dá para entender como tamanha barbárie humana possa ser até hoje impune! É realmente inacreditável! Os principais responsáveis por essa barbárie foram o Governador Marconi Perillo com seu Secretário de Segurança Pública, Jonatas Silva e o Prefeito Iris Rezende Machado.

Acompanhei pessoalmente a diabólica operação de guerra, abraçando os Irmãos/as e partilhando sua dor. O lado de Jesus de Nazaré é o lado dos Pobres e o lado dos Pobres é o nosso lado. Unidos e unidas lutamos pelos três “T” (papa Francisco): Terra, Teto e Trabalho. Pedro e Vagner: PRESENTES!

                          


Velório de Pedro e Vagner na Catedral de Goiânia

fotografia.folha.uol.com.br



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 16 de fevereiro de 2022


segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

A questão da “democracia” na Igreja

 


Vimos - no segundo artigo da série - que vários teólogos, inspirados pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, sugeriram que fosse repensada a estrutura social da Igreja e reelaborada toda a Teologia dos Ministérios (Serviços) a partir do binômio Comunidade - Carismas e Ministérios, que é a perspectiva do Novo Testamento, e não do binômio Hierarquia - Laicato (cf. CNBB. Missão e Ministérios dos Cristãos Leigos e Leigas, 62 - 1999).

Lamentavelmente, em Documento de 17 anos depois sobre o mesmo tema, a nossa Igreja “desconhece” e “desconsidera” a parte do Documento acima citado, que abre caminhos novos. Ao invés de retomá-la e aprofundá-la, ela reafirma o binômio “Hierarquia - Laicato”: uma Igreja de duas classes (na realidade, três: Hierarquia, Vida Religiosa Consagrada e Laicato), que não tem nenhum fundamento bíblico (cf. CNBB. Cristãos Leigos e Leigas na Igreja e na Sociedade, 105 - 2016). Ora, numa sociedade e numa Igreja de classes - ainda mais, patriarcal - não há verdadeira democracia. Falar em democracia é hipocrisia.

A democracia (demokratía: demos = povo + kratos = poder), direta e/ou indireta, é o regime político em que a soberania é exercida pelo povo. “A democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo” (Abraham Lincoln. Discurso de Gettysburg, 1863). Portanto, só um governo popular é realmente democrático e socialista (no verdadeiro sentido da palavra e não no sentido do “socialismo real” = “capitalismo de estado”).

Hoje, “multiplicam-­se sem cessar as relações do ser humano com os seus semelhantes, ao mesmo tempo que a própria socialização introduz novas ligações, sem, no entanto, favorecer em todos os casos uma conveniente maturação das pessoas e relações verdadeiramente pessoais: personalização” (Concílio Vaticano II. A Igreja no mundo de hoje, 6). “Socialização” e “personalização” devem caminhar sempre juntas.

O governo do Brasil e da maioria dos países que se dizem democráticos, na realidade não são democracias, mas oligarquias ("oligarkhía" = governo de poucos), ou - permitam-me um neologismo - “elitocracias”. São governos da elite econômica, ou seja, do grupo de capitalistas que detém o poder econômico: os donos das grandes empresas multinacionais e nacionais.

Trata-se da dominação do poder econômico (o “deus dinheiro”), que se mantém e fortalece por meio da dominação ideológica. Por ela, o dominador (o opressor) hospeda-se “agradavelmente” na cabeça do dominado (o oprimido), de tal forma que este pensa e age com a cabeça do dominador.

Daí a importância do “trabalho de base” nos Movimentos Populares, nos Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras e nas Comunidades para que o dominado se liberte do dominador e tome consciência do seu valor como sujeito de sua própria história.

Infelizmente, no Brasil e também em outros países, a nossa Igreja Instituição (falo aqui da Igreja Católica) se adaptou e absorveu, ao menos em parte, o jeito de ser do capitalismo, como nos períodos colonial e imperial, se adaptou e absorveu, ao menos em parte, o jeito de ser do escravismo (escravidão).

Na época do escravismo, a Igreja Instituição ensinava que a virtude do dono (proprietário) de escravos era a benevolência e a virtude do escravo, a submissão. Ela condenava os excessos (os exageros, os maus-tratos) praticados contra os escravos e escravas, mas não condenava o escravismo como tal, ou seja, a estrutura escravista como sendo desumana, antiética e anticristã, mesmo que os escravos e escravas fossem “bem tratados”. Com esse comportamento, a Igreja legitimava a situação social vigente.

Hoje, essa mesma Igreja Instituição condena os excessos do capitalismo praticados contra os trabalhadores e trabalhadoras, mas não condena o capitalismo como tal, ou seja, a estrutura capitalista como sendo desumana, antiética e anticristã, mesmo que os trabalhadores e trabalhadoras, sejam “bem-tratados”. Com esse comportamento a Igreja legitima, mais uma vez, a situação social vigente.

É necessário, porém, ressaltar que no Brasil, tanto na época do escravismo, como hoje em pleno capitalismo ultraneoliberal, sempre existiram, existem e existirão profetas e profetisas, que conscientemente denunciavam, denunciam e denunciarão o escravismo e o capitalismo como sendo regimes políticos desumanos, antiéticos e anticristãos (mesmo que em graus diferentes).

Por fim, se a Igreja ensina - como de fato faz - que a democracia é um valor humano e cristão (radicalmente humano), ela deveria ser um exemplo de Instituição democrática; mais democrática que as outras Instituições, ou melhor, radicalmente democrática. Por que, na prática, isso não acontece?

Termino com as palavras do Concílio Ecumênico Vaticano II: “Não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no coração da Igreja” (A Igreja no mundo de hoje - GS, 1). Ah, se isso fosse sempre verdade!

Continuemos sonhando e lutando para que o nosso sonho se torne um dia realidade.

 


Oliveira Advocacia - Montes Claros e Região


Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

Goiânia, 14 de janeiro de 2022

O artigo foi publicado originalmente em:
https://portaldascebs.org.br/a-questao-da-democracia-na-igreja/