terça-feira, 14 de novembro de 2023

A Comunidade mãe de todas as Comunidades

 


Neste ano, a Festa litúrgica da “Dedicação da Basílica de São João do Latrão” (09/11) e os comentários sobre ela, suscitaram em mim o premente desejo de esclarecer pontos que são fundamentais, fazendo algumas reflexões teológico-pastorais a respeito da Igreja.

À luz do Evangelho, a “mãe e cabeça de todas as Igrejas” não é (como se costuma dizer) a Basílica de São João do Latrão, mas a primeira Comunidade cristã dos Atos dos Apóstolos, que devia ter sido - e que ainda deve ser - o referencial das Comunidades cristãs em todos os tempos e em todos os lugares.

A Basílica de S. João do Latrão, a primeira Igreja construída pelo imperador Constantino no século 4º em Roma (certamente não foi de graça e houve uma contrapartida), “representa” a mãe e a cabeça de todas as Igrejas que, no decorrer da história, esqueceram o Evangelho - sobretudo sua dimensão profética - e aderiram ao Poder dominante e opressor do Povo, fazendo aliança com o Imperialismo e, posteriormente, com o Feudalismo, com o Escravismo e com o Capitalismo.

A palavra “cátedra” - que não existe no Novo Testamento - é outro sinal de poder copiado do Imperialismo. Pedro nunca teve cátedra e nunca sentou em cátedra, a não ser na “cátedra da Cruz”, na qual - segundo a tradição - pediu para ser crucificado de cabeça para baixo, porque não se achava digno de ser crucificado do mesmo modo de Jesus.

O que realmente tem valor são as Comunidades cristãs dos seguidores e seguidoras de Jesus. Seus membros podem se encontrar, reunir e celebrar em diferentes lugares: nas casas (como as primeiras Comunidades Cristãs e, hoje, as Comunidades Eclesiais de Base - CEBs); em Centros Comunitários (também como as Comunidades Eclesiais de Base e os Grupos dos Movimentos Sociais Populares); e em Igrejas (templos) simples e pobres. Todos esses lugares convidam seus membros ao recolhimento, à meditação, à oração, à celebração do Mistério Pascal na Vida e da Vida no Mistério Pascal e à partilha de irmãos e irmãs.

No primeiro retrato da Comunidade cristã, os Atos dos Apóstolos afirmam: “Eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos Apóstolos (não diz: na submissão ao poder dos Apóstolos), na comunhão fraterna (de irmãos e irmãs), no partir do pão e nas orações”. “Todos e todas os e as que abraçaram a fé eram unidos e unidas e colocavam em comum todas as coisas” (At 2,42.44).

As Igrejas de luxo (cheias de cálices, ostensórios e outros objetos de ouro), que começaram a ser construídas a partir de Constantino, depois da aliança da Igreja com o Poder imperial; as Igrejas palanques teatrais e as Igrejas triunfalistas não têm nada a ver com Jesus de Nazaré e seu Evangelho.

A bem da verdade, a Basílica de São João do Latrão “representa” o começo da aliança da Igreja com o Poder Imperial e sua submissão aos interesses desse Poder.

Os sinais visíveis da presença de Cristo no mundo são, antes de tudo, as Comunidades cristãs. As Igrejas ou templos de pedra - desde que sejam simples e pobres - podem também se tornar sinais visíveis da presença de Cristo, por serem lugares - além de outros - de encontro das Comunidades Cristãs.

A Igreja que quer se impor pelo poder triunfalista não é a Igreja de Jesus de Nazaré. Basta lembrar a tiara do papa (três coroas, que representam três poderes: o real, o imperial e o eclesiástico: o maior), a farisaicamente chamada “sagrada púrpura” dos cardeais, as mitras dos bispos, as cátedras episcopais, as vestimentas luxuosas, os palácios episcopais (que tinham acabado, mas que - tudo demonstra - estão voltando). Esses sinais de poder vêm do Império e não do Evangelho.

A Igreja precisa se despojar de todas as formas de poder e voltar as fontes do Novo Testamento e dos Padres da Igreja.

Como caminhos para esse fim, apresento algumas propostas:

1- Que todos os ministros e todas as ministras da Igreja - inclusive papa, bispos e padres - vivam de maneira simples e pobre (a pobreza virtude e não a pobreza miséria) como irmãos e irmãs.

2- Que a Comunidade do Bispo da Igreja que está em Roma (o Papa) seja uma das Comunidades mais pobres da Igreja: sinal da unidade de todas as Comunidades da Igreja em Roma e no mundo inteiro

3- Que a Comunidade de todos os Bispos das Igrejas Particulares, que estão nos mais diferentes lugares do mundo, seja também uma das Comunidades mais pobres de suas Igrejas: sinal da unidade de todas as Comunidades dessas mesmas Igrejas.

4- Que na Igreja do mundo inteiro acabem todos os títulos honoríficos, inclusive os Cardeais e as Catedrais, que lembram o poder da Cátedra.

(Observação: Os títulos acadêmicos não devem ser considerados títulos honoríficos; eles indicam somente a área de conhecimento, na qual determinados cristãos e determinadas cristãs estão mais preparados e preparadas para servir os irmãos e as irmãs).

5- Que acabe o Estado do Vaticano. Jesus não veio fundar um Estado.

6- Que a Igreja dê testemunho de partilha e irmandade, e seja livre para advertir e denunciar todo tipo de abuso do poder social (sócio-econômico-político-ecológico-cultural-religioso) contra os Pobres.

7- Por fim, que a Igreja viva realmente as palavras de Jesus “Digam apenas ‘sim’, quando é ‘sim’; e ‘não’, quando é ‘não’. O que vocês disserem além disso, vem do Maligno” (Mt 5,37). À luz dessas palavras de Jesus, podemos dizer que toda diplomacia na Igreja - inclusive a diplomacia que envolve a nomeação dos bispos (que deveriam ser eleitos nas Igrejas Particulares) vem do maligno.

(Observação: Apesar de todos os “segredos”, devido a alguns serviços que prestei à Igreja, tomei conhecimento de fatos da diplomacia eclesiástica, que são de arrepiar os cabelos e que com certeza vem do Maligno. O pior é que, às vezes, a Igreja hipocritamente atribui esses fatos à ação do Espírito Santo).

Meditemos! Sejamos a Igreja de Jesus de Nazaré! 



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 13 de novembro de 2023


terça-feira, 7 de novembro de 2023

Caminhada sinodal: 2021 - 2024 - 2ª Parte: Questionamentos e Propostas

 


Depois de destacar - na 1ª parte do artigo - os pontos positivos e significativos da caminhada sinodal até o momento, apresento agora alguns questionamentos e duas propostas: pequena contribuição de um irmão para que a Igreja (que somos todos e todas nós) se torne - cada vez mais - conforme o Evangelho de Jesus de Nazaré.

Questionamentos:


1.    Sobre a Igreja e o poder

  • Por que, na história, a Igreja cedeu à tentação do poder e incorporou em suas estruturas internas elementos do imperialismo, do feudalismo, do escravismo e do capitalismo totalmente contrários ao Evangelho?

  • Por exemplo, como pôde a Igreja no Brasil - em pleno século 19 - ter ensinado e pregado que a virtude do escravo era a submissão e a virtude do dono de escravos, a benevolência? Essa prática não foi - e continua sendo - repugnante, desumana e antiética?

  • A convivência e conivência com o poder não é o pecado estrutural (eclesial e, sobretudo, eclesiástico) da Igreja, farisaicamente legitimado, legalizado e institucionalizado?

2.    Sobre a Igreja e a hierarquia

  • Os seres humanos não são criados à imagem e semelhança de Deus? Não são todos filhos e filhas de Deus, iguais em dignidade e valor?

  • Então, por que na Igreja se fala tanto em hierarquia?

  • Se a dignidade e o valor estão na pessoa humana e não no cargo que ela ocupa ou no serviço que ela presta, pode-se falar de superior ou superiora? Por uma questão de raciocínio lógico e coerência ética, não se deveria falar de coordenador ou coordenadora?

  • Numa Igreja hierárquica pode haver verdadeira comunhão? A chamada  comunhão hierárquica não é uma enganação do povo?

3.    Sobre a Igreja e a democracia

  • Por que na Igreja temos cristãos e cristãs - sobretudo ministros ordenados - que fazem sempre questão de sublinhar que a “sinodalidade” não é “democracia” e que os Conselhos Pastorais são consultivos e não deliberativos?

  • Por que há tanto medo da democracia? A Igreja não ensina que a democracia é um valor humano e um direto humano? Ela não defende todos os valores humanos e todos os direitos humanos?

  • Ainda por uma questão de raciocínio lógico e de coerência ética, se os cristãos e cristãs devem ser plenamente ou radicalmente seres humanos, não deveriam ser também plenamente ou radicalmente democráticos? Não deveriam ser um modelo de democracia?

  • A sinodalidade (o caminhar juntos) não deveria ser democracia radical? É possível a sinodalidade sem democracia? Não é - mais uma vez - uma enganação o povo?

Há tempo, um conhecido jurista brasileiro (se não estou enganado: Fábio Konder Comparato) escreveu com certa ironia: “por incrível que pareça, a palavra ‘superior’ ainda é usada somente no meio militar e no meio religioso”. Meditemos!

A Igreja - nos ensina o Concílio Vaticano II - é o Povo de Deus. Por isso -  sempre por uma questão de raciocínio lógico e de coerência ética - proponho:   

  1.  Que a 16ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos - em sua 2ª sessão (outubro 2024) - crie o Sínodo da Igreja Povo de Deusa Assembleia Geral Ordinária do Sínodo da Igreja Povo de Deus, em todos os níveis: local, regional, nacional, continental e mundial. (Retomo aqui a proposta que já tinha apresentado para a 1ª sessão da Assembleia).
  2. Que essa mesma Assembleia crie também os Sínodos Setoriais da Igreja Povo de Deus (Bispos, Presbíteros, Diáconos, Agentes das Pastorais Sacramentais ou Catequistas e Agentes das Pastorais Sicioambientais) e suas  Assembleias Gerais Ordinárias.

Serão essas Assembleias Sinodais que, em seus níveis ou em suas áreas de atuação - com as luzes do Espírito Santo e num clima de Comunhão e Participação na Missão - tomarão as decisões necessárias para a caminhada da Igreja no mundo.

Como estamos longe ainda do jeito de ser de Jesus de Nazaré e do jeito de ser Igreja que Ele sonhou! Não podemos desanimar! Um dia chegaremos lá! Esperançar é preciso!


Foto: Vatican media



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 07 de novembro de 2023


Caminhada sinodal: 2021 - 2024 - 1ª Parte: Passos positivos e significativos

 


A Igreja (Assembleia) é - ou, deveria ser - a Comunidade (Comum-unidade) de todos aqueles e aquelas que - ouvindo o chamado de Jesus: “segue-me” - imediatamente deixam tudo e o seguem.

Na diversidade dos carismas (dons) que recebem do Espírito Sando e na pluralidade dos ministérios (serviços) que prestam, os seguidores e as seguidoras de Jesus, continuam hoje sua presença visível no mundo, são seus discípulos missionários e discípulas missionárias; seus apóstolos e apóstolas, profetas e profetizas da vida. “Eu vim para que todos e todas tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

Os seguidores e as seguidoras de Jesus enfrentam qualquer provação ou perseguição e - se necessário - até o martírio. Eles e elas têm fé e creem nas Palavras de Jesus: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome (por minha causa e de meu Projeto), eu estou aí no meio deles” (Mt 18,20). “Eu estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo” (Ib 28,20).

Na caminhada sinodal (cujo tema é: “por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”) já foram dados - até o momento -  passos positivos e significativos, que fortalecem a nossa esperança:  

  • Dois anos de caminhada “desde que, a pedido do Papa Francisco, iniciamos um longo processo de escuta e discernimento, aberto a todo o Povo de Deus, sem excluir ninguém, para ‘caminhar juntos’, sob a guia do Espírito Santo, discípulos missionários e discípulas missionárias no seguimento de Jesus Cristo”.
  • Participação de muitas pessoas - cristãos e cristãs das Comunidades e outras - nessa caminhada: nas Igrejas locais, regionais, nacionais, continentais e mundial.
  • Presença, com direito a voto, na 1ª sessão da 16ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos de representantes de todo o Povo de Deus. “Pela primeira vez, homens e mulheres foram convidados (pelo Papa Francisco), em virtude do seu batismo, a sentarem-se à mesma mesa para participarem não só nos debates, mas também nas votações desta Assembleia do Sínodo dos Bispos. Juntos, na complementaridade das nossas vocações, carismas e ministérios, escutamos intensamente a Palavra de Deus e a experiência dos outros”.
  • Centralidade dos Pobres nas preocupações, reflexões e contribuições dos membros da Assembleia.
  • Desejo dos membros da Assembleia de contar a experiência vivida “ao maior número possível de pessoas, e sobretudo àquelas que ainda não foram alcançadas ou envolvidas no processo sinodal”.
  • Partilha de tudo o que os membros da Assembleia viveram. “Queremos, com todos vocês, dar graças a Deus pela bela e rica experiência que tivemos. Vivemos este tempo abençoado em profunda comunhão com todos e todas vocês. Fomos sustentados pelas orações de vocês, trazendo conosco suas expectativas, seus questionamentos, e também seus receios”.

Como irmãos e irmãs - partilhando os valores das nossas Comunidades em todos os Continentes - procuramos “discernir aquilo que o Espírito Santo quer dizer à Igreja hoje. Assim, experimentamos também a importância de promover intercâmbios mútuos entre a tradição latina e as tradições do Oriente cristão. A participação de delegados fraternos de outras Igrejas e Comunidades Eclesiais enriqueceu profundamente os nossos debates”.

Por fim, com muita dor, declaram: “A nossa Assembleia decorreu no contexto de um mundo em crise, cujas feridas e escandalosas desigualdades ressoaram dolorosamente nos nossos corações e conferiram aos nossos trabalhos uma gravidade peculiar, tanto mais que alguns de nós vieram de países onde a guerra deflagra. Rezamos pelas vítimas da violência assassina, sem esquecer todos aqueles e aquelas que a miséria e a corrupção atiraram para os perigosos caminhos da migração. Comprometemo-nos a ser solidários e empenhados ao lado das mulheres e dos homens que operam em todo lugar do mundo como artesãos da justiça e da paz”.

(Carta ao Povo de Deus, em: https://www.cnbb.org.br/16a-assembleia-geral-ordinaria-do-sinodo-dos-bispos-divulga-carta-ao-povo-de-deus/.  Veja também: Relatório de Síntese da mesma Assembleia Geral, em: https://pascombrasil.org.br/sinodo-santa-se-divulga-relatorio-de-sintese-em-lingua-portuguesa/               

 Na segunda parte do Artigo, apresentarei alguns questionamentos e duas propostas.




Foto: Vatican media



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 07 de novembro de 2023

 


A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos