terça-feira, 3 de outubro de 2023

O Ser humano com o Outro absoluto (3)

 


 

(Continuo as reflexões do artigo anterior - segunda parte - da série sobre o Ser humano)

Pergunto: No real, ou seja, em tudo o que existe - quais são as características da "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus? Fundamentalmente, são duas.

A primeira: ela é simultaneamente "ausência" e "presença" de Deus.

"Ausência": porque a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus (a relação ontológica ou criadora que se "concretiza" na existência dos seres) não é uma ação no sentido corrente. "O marceneiro está 'presente' ao móvel que faz, mediante o trabalho de fabricá-lo; a lua está 'presente' no oceano por meio da atração, que provoca as marés; o sol está 'presente' pela sua luz. 'Por em presença' implica 'ação sobre', 'transformação de'" (Podeur, L. Imagem moderna do mundo e Fé cristã. Paulinas, São Paulo, 1977, p. 126).

Ora, a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus "não é 'modificação de', mas 'pura posição'. Por isso, ela não é perceptível, mas fica como que 'oculta' atrás do mundo que ela 'põe' (...); só pode estar 'sob' o real, ou 'atrás' dele, ou 'do outro lado' dele; ela não poderia ser encontrada 'nele'" (Ib.).

A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus tem como "efeito" o próprio real; o sinal desta presença é a própria existência do real. Se neste momento - numa hipótese absurda - Deus não estivesse ontológica ou criadoramente presente, eu não existiria. Em outras palavras, a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus "põe" o quadro-mundo, mas - enquanto tal - não age "dentro", não "escreve" nele. A "ausência cósmica" de Deus é, portanto, inevitável e seu "silêncio cósmico", normal. A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus não é percebida; ela é a condição de possibilidade da existência do real, mas não pode estar no real, porque não é um elemento ou uma dimensão do real.

"Presença": porque a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus não é uma presença "física" ou "cósmica", mas uma presença muito mais intensa e muito mais profunda. Deus não é a "matéria" ou a "substância" das coisas, mas Ele as "põe" em tudo o que elas são (é esta a forma de presença mais imediata e próxima que se possa conceber). "Na presença comum de duas realidades, a existência de cada uma é pressuposta, depois são colocadas na presença uma da outra: a separação é anterior à presença, que de certo modo, é realizada de fora" (Ib., p. 127).

Na "presença ontológica" ou “presença criadora”, "a união precede e torna possível a diferença: Deus está presente ao real, de certo modo, 'antes' que ele exista e 'para que' ele exista" (Ib.),

Eu sou "eu" antes que alguém possa entrar em contato comigo, mas eu não sou "eu" (no sentido estrito do verbo ser) sem a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus que me "põe" no ser, como "põe" todas as coisas. Neste sentido, Deus é mais íntimo a mim do que eu mesmo. "Quando eu me torno presente, 'íntimo', a mim mesmo, Deus, de certo modo, 'já' está em mim: presente em mim antes de mim mesmo" (Ib. "Intimior intimo meo", escreve S. Agostinho a respeito de Deus).

A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus atinge o real por dentro e não por fora; é nisso que se funda toda relação para com Deus. Pela "presença ontológica" ou “presença criadora”, "Deus está no mais profundo da realidade; ele é o fundo, porque é o fundamento transcendente (absoluto) de tudo" (Ib., p. 128).



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 30 de setembro de 2023

 

O artigo foi publicado originalmente em:

https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-com-o-outro-absoluto-3/

(Continuarei as reflexões no próximo artigo, a quarta parte do mesmo tema)


                                    

O Ser humano com o Outro absoluto (4)


(Continuo as reflexões do artigo anterior da série sobre o Ser humano - terceira parte)


A segunda característica da "presença ontológica" (em linguagem filosófica) ou “presença criadora” (em linguagem teológica) de Deus é: no real, ou seja, em tudo o que existe, ela implica simultaneamente “dependência” e “independência” totais.

“Dependência total”: porque, de certo modo, o real é recebido a cada instante de Deus; é "re-posto" e "re-afirmado" sem cessar por Deus, Fonte do Ser nos seres.

“Independência total”: "devemos novamente sair dos esquemas habituais da ação. Quando um ser age sobre outro, ele o modifica, o de-'forma': a ação supõe sempre um paciente ao qual ela se aplica. Se, segundo este esquema, Deus é considerado como uma força, infinita e soberana, a autonomia e a consistência do real ficam por isso mesmo extenuadas. Considera-se, de fato, que Deus e o mundo estão no mesmo nível e, neste caso, o agir de Deus só poderia significar o esmagamento do mundo, ao passo que, inversamente, qualquer indício concreto em favor da consistência das realidades físicas pareceria retirar alguma coisa de Deus" (Podeur, L. Imagem moderna do mundo e Fé cristã. Paulinas, São Paulo, 1977, p. 128-129).

A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus não modifica nem transforma o mundo, mas o "põe" (o instaura) em sua consistência e autonomia.

Deus pode, sem dúvida, agir sobre o mundo, mas com isso não nos encontramos mais no nível de sua "presença ontológica" ou “presença criadora”. Logicamente, esta ação de Deus sobre o mundo só pode se realizar num segundo momento (não necessariamente cronológico, mas lógico).

A "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus, como tal, é doação de consistência e autonomia; é condição necessária e também condição suficiente para a efetivação do real. Neste sentido, ela é pressuposta por toda atividade no mundo. Somente a massa "real" atrai, somente o fogo "real" queima, somente o átomo radioativo "real" se desintegra, etc.

"Suposta a existência do universo, não é necessário procurar fora dele a fonte do que nele se passa; ou, pelo menos, é nele que se deve procurá-la primeiro. Atingimos aqui o nível no qual funciona o pensamento científico, com o sucesso que todos sabem. Apenas, e isto é capital para o nosso problema, não temos mais que escolher entre ciência e Deus. Um e outro se articulam sem dificuldade, porque Deus encontrou o seu 'lugar' (modo humano de falar da 'presença ontológica' ou ‘presença criadora’ de Deus)" (Ib., p. 129).

Como exemplo, podemos perguntar: Foi a criação (Deus) ou a evolução que fez o Ser humano? A resposta é clara: uma e outra. O Ser humano é produto da evolução, mas, ao mesmo tempo - como todo real - é "posto" (envolvido, levado) por Deus. "Dependência total e independência total, longe de se excluírem, se implicam mutuamente" (Ib.).

Para quem sabe o que a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus comporta, "tudo se torna sinal e evocação da presença divina: desde o menor sopro de vento até o firmamento fervilhante de astros. Pode-se - deve-se - então lê-la em qualquer fenômeno e em qualquer circunstância, uma vez que a integralidade do real, no seu conjunto como nos seus detalhes, nas suas características como nas suas particularidades locais, não tem realidade senão por ela" (Ib., p. 130). Por isso, tudo o que existe - do ponto de vista ontológico ou criador - é "bom".

Por fim, a "presença ontológica" ou “presença criadora” de Deus não só deve ser "demonstrada" ("conhecida", "pensada") pelo Ser humano, mas também (como veremos) deve ser "experienciada" - "vivida", "vivenciada" - por ele em sua Práxis. “Em Deus vivemos, nos movemos e existimos” ( At 17, 28).

(Com o próximo artigo - ainda dentro da série sobre o Ser humano - começarei a refletir sobre o Ser humano histórico)

Compartilhando:

  1. Para uma visão mais aprofundada do tema dos artigos que estou escrevendo sobre Ética (ou, Antropologia ética), leia o meu livro: Ética da Libertação: uma abordagem filosófico-teológica. Editora Lutas Anticapital, Marília - SP, 2023 (384 páginas).
  2. Se estiver, pois, interessado/a em refletir - teológica e pastoralmente - sobre a Igreja renovada e libertadora, leia o meu livro: Eclesiologia da Libertação: reflexões teológico-pastorais. Editora: a mesma, 2022 (120 páginas).

                                                 https://www.culturagenial.com/a-criacao-de-adao-michelangelo/


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 30 de setembro de 2023


 

O artigo foi pulicado originalmente em:

https://portaldascebs.org.br/o-ser-humano-com-o-outro-absoluto-4/

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