quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Ser Igreja-comunidade

 


“O Vaticano II faz-nos passar de uma Igreja-instituição ou de uma Igreja-sociedade perfeita para uma Igreja-comunidade, inserida no mundo, a serviço do Reino de Deus” (Dom Aloísio Lorscheider). 

Na Igreja sempre houve, há e haverá pessoas - cristãos e cristãs - que viveram, vivem e viverão a radicalidade evangélica, anunciando, testemunhando e fazendo acontecer o Reino de Deus na sociedade e no mundo. 

Como instituição ou sociedade perfeita, porém, a Igreja em sua história de mais de dois mil anos - ao contrário de Jesus de Nazaré que resistiu, superou e venceu as tentações do prestígio, do poder e da riqueza (cf. Mt 4,1-11) - deixou-se muitas vezes seduzir por essas tentações, que - além de desfigurar seu rosto - desacreditaram sua missão no mundo. 

Por iniciativa do Papa São João XXIII, o Concílio Vaticano II abriu as janelas da Igreja para que os ventos da renovação - que já estavam no ar - entrassem com toda força, sacudissem a Igreja e a libertassem de uma estrutura de poder hierárquico esclerosada, adquirida ao longo dos anos. 

O Concílio abriu novos caminhos para que a Igreja voltasse a ser - mesmo com suas limitações humanas - uma Igreja realmente evangélica. Os Padres Conciliares retornaram às origens da Igreja e às suas fontes bíblicas e patrísticas. A Constituição dogmática “A Igreja” (LG) e a Constituição pastoral “A Igreja no Mundo de Hoje” (GS) são documentos-chave para a compreensão do Concílio e da posterior caminhada de renovação da Igreja. 

Depois do Vaticano II, a Igreja passa a ser uma Comunidade de cristãos e cristãs espalhados e espalhadas por todo o mundo. Muitos de nós vivemos - e ainda estamos vivendo - essa passagem: uma verdadeira Páscoa, acontecendo sob a ação do Espírito.

Construímos uma nova igreja que - no Brasil e na América Latina - chamamos com o expressivo nome “Igreja da Caminhada” ou “Igreja das Comunidades de Base”, comprometida com a luta pelos Direitos Humanos, pelos Direitos da Irmã Mãe Terra (Nossa Casa Comum), pela Justiça e Paz e por uma sociedade de irmãos e irmãs: o Reino de Deus acontecendo na história do ser humano e do mundo.

Infelizmente, há mais de duas décadas, surgiram movimentos eclesiais - marcados por uma espiritualidade fundamentalista, individualista e conservadora -  que começaram um processo de retorno ao modelo de Igreja pré-conciliar, com o apoio e incentivo de padres e bispos (muitos dos quais nem viveram esse modelo).

Animados pelo testemunho profético do nosso irmão o Papa Francisco e pelos seus escritos ou pronunciamentos, não podemos permitir que esse retrocesso aconteça. Vamos nos unir, resistir e avançar. Muito já se fez, mas ainda tem muito a ser feito para que a Igreja seja realmente - e cada dia mais - a de Jesus de Nazaré. 

A imagem que - mundial-nacional-regional e localmente - representa a Igreja-comunidade é o círculo e não a pirâmide. Na Igreja-comunidade todos e todas - embora diferentes - são iguais em dignidade e valor, todos e todas são irmãos e irmãs em comunhão, filhos e filhas do mesmo Deus: a Santíssima Trindade (Pai-Mãe. Filho, Espírito Santo), Comunidade de Amor, a melhor Comunidade. 

"Deve-se reconhecer cada vez mais a igualdade fundamental entre todos os seres humanos (homens e mulheres)" (A Igreja no mundo de hoje - GS 29). Na Igreja “reina verdadeira igualdade quanto à dignidade e ação comum a todos os fiéis na edificação do Corpo de Cristo" (A Igreja - LG 32). 

A Igreja-comunidade é Igreja encarnada e inserida no mundo - Igreja na Base e de Base, Igreja Popular - a serviço do Reino de Deus, que é um mundo novo, a sociedade do bem viver e bem conviver (como nos ensinam os nossos irmãos/ãs indígenas). "Como Cristo, por sua Encarnação ligou-se às condições sociais e culturais dos seres humanos com quem conviveu; assim também deve (reparem: deve!) a Igreja inserir-se nas sociedades, para que a todos/as possa oferecer o mistério da salvação e a vida trazida por Deus” (A atividade missionária da Igreja - AG 10). 

É essa a Igreja de Jesus de Nazaré! É essa a Igreja que queremos ser! Lutemos por ela!

Círculo, Comunidade, Mãos, Exploração, Pessoas 


Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

Goiânia, 20 de novembro de 2020



O artigo foi publicado originalmente em:

https://portaldascebs.org.br/2020/11/24/ser-igreja-comunidade/ 



domingo, 8 de novembro de 2020

Ser Igreja hoje

 


Na história do ser humano, no mundo com o mundo (a Irmã Mãe Terra, Nossa Casa Comum), ser Igreja significa ser - nessa mesma história - a continuidade da presença visível de Jesus de Nazaré.

Nós cristãos e cristãs não queremos “imitar” Jesus de Nazaré de maneira formal e a-histórica, de maneira individualista e subjetivista, de maneira mecanicista e fundamentalista, mas queremos viver hoje como Jesus de Nazaré viveu no tempo dele; lutar hoje como Jesus de Nazaré lutou no tempo dele; morrer hoje como Jesus de Nazaré morreu no tempo dele e ressuscitar hoje como Jesus de Nazaré ressuscitou no tempo dele. Queremos, pois, segui-lo. 

Meditamos - profunda e permanentemente - a vida de Jesus de Nazaré para perguntarmo-nos sempre: nessa situação concreta social (sócio-econômico-político-ecológico-cultural-religiosa) e individual na qual nos encontramos - como Jesus de Nazaré agiria? 

Hoje, “contemplamos a Jesus Cristo tal como os Evangelhos nos transmitem para conhecermos o que Ele fez e para discernirmos o que nós devemos fazer nas atuais circunstâncias” (Documento de Aparecida - DA 139). 

A Igreja, “a todo momento (reparem: a todo momento!), deve escutar os sinais dos tempos (ou seja, ouvir a voz de Deus nos acontecimentos) e interpretá-los à luz do Evangelho (ou seja, na ótica dos Pobres, desde os Pobres, a partir dos Pobres), de tal modo que possa responder, de maneira adaptada a cada geração, às interrogações eternas sobre os significados da vida presente e futura e de suas relações mútuas. É necessário, por conseguinte, conhecer e entender (reparem novamente: conhecer e entender!) o mundo no qual vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole frequentemente dramática" (Concílio Vaticano II. A Igreja no mundo de hoje - GS 4. Cf. também: DA 33).

O método (“caminho”) - “ver, julgar, agir” (“analisar, interpretar, libertar”) - vivido pela chamada “Igreja da Caminhada” - nos coloca em atitude de escuta permanente. Ele "nos permite articular, de modo sistemático, a perspectiva cristã de ver a realidade (que é a perspectiva “desde os Pobres”); a assunção de critérios que provêm da fé e da razão (ou seja, da razão iluminada pela fé) para seu discernimento e valorização com sentido crítico; e, em consequência, a projeção do agir como discípulos missionários de Jesus Cristo” (DA 19).

Para viver isso, a Igreja - que somos todos e todas nós seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré - precisa voltar ao Evangelho, ser uma Igreja realmente “evangélica”, se despojar e libertar de todas as insígnias imperiais, feudais e capitalistas que - no decurso da história - incorporou em sua estrutura e que desfiguraram totalmente o seu rosto. 

O Concílio Vaticano II (1962-1965) e a II Conferência Episcopal Latino-Americana e Caribenha de Medellín (1968) abriram caminhos para que possamos fazer isso. Cabe a nós percorrer, com amor e perseverança esses caminhos! Até o momento o processo de renovação e de libertação da Igreja depois do Concílio Vaticano II foi longo, com muitos altos e baixos, avanços e recuos, mas a esperança nunca morre. A luta continua!

Nessa primeira série de artigos - a começar do presente texto, que é a introdução - pretendo fazer algumas reflexões teológico-pastorais sobre a Igreja, na perspectiva da Eclesiologia da Libertação, tendo como pano de fundo e fonte inspiradora a “Fotografia da Igreja que o Concílio Vaticano II sonhou” de Dom Aloísio Lorscheider.

 “O Vaticano II faz-nos passar:

  • de uma Igreja-instituição ou de uma Igreja-sociedade perfeita para uma Igreja- comunidade, inserida no mundo, a serviço do Reino de Deus; 

  • de uma Igreja-poder para uma Igreja pobre, despojada, peregrina

  • de uma Igreja-autoridade para uma Igreja serva, servidora, ministerial

  • de uma Igreja piramidal para uma Igreja-povo

  • de uma Igreja pura e sem mancha para uma Igreja santa e pecadora, sempre 

 necessitada de conversão, de reforma;  

  • de uma Igreja-cristandade para uma Igreja-missão, uma Igreja toda ela missionária” (os grifos são meus).  

Mãos à obra!



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Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

Goiânia, 20 de outubro de 2020




O artigo foi publicado originalmente em:

http://portaldascebs.org.br/2020/10/31/ser-igreja-hoje/  


segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Eleições municipais e Projeto Popular

 


Em teoria, concordo com o psicanalista Contardo Calligaris quando, de maneira clara e contundente, afirma que julgar, escolher, decidir e agir ou (no nosso caso) votar para respeitar valores estabelecidos, sejam eles quais forem, é um comportamento imoral; e que julgar, escolher, decidir e agir ou votar de maneira autônoma e segundo a consciência é um comportamento moral (cf. Votem segundo a consciência. Folha de S. Paulo, 08/10/20, p. B13; Quem é imoral? Ib., 15/10/20, p. B13).

O raciocínio é perfeito, irrefutável. Só tem uma coisa que Contardo não considera e que é fundamental: a historicidade (espacialidade e temporalidade) do ser humano, constitutiva de sua condição no mundo com o mundo. 

O ser humano em si (a-histórico) não existe. O que existe é o ser humano histórico, situado (num lugar) e datado (num tempo). Portanto, a autonomia, a consciência e a liberdade do ser humano nunca são absolutas, mas condicionadas, ou seja, históricas, situadas e datadas.

Ora, considerando sua historicidade, o comportamento moral do ser humano, mesmo no caso do voto, é o comportamento mais humano - mais autônomo, mais consciente e mais livre - possível na situação histórica concreta na qual ele se encontra.

Dirijo-me aqui aos companheiros e companheiras que - por decisão autônoma, consciente e livre, mas histórica - fizeram a Opção pelos Pobres (empobrecidos, marginalizados, oprimidos, excluídos e descartados) e que, portanto, têm lado definido: o dos Pobres. Caminham com eles/as e lutam com eles/as por um Projeto Social (sócio-econômico-político-ecológico-cultural) alternativo ao Projeto Social Capitalista neoliberal dominante. Para os e as que somos cristãos e cristãs, essa é também a Opção de Jesus de Nazaré.

O Projeto Social Capitalista dominante (muitas vezes legitimado por uma prática religiosa hipócrita, oportunista e interesseira) baseia-se na desigualdade social, acaba com os poucos direitos que os trabalhadores/as conquistaram à duras penas e com muita luta, oprime, marginaliza, explora e descarta os pobres. Para esse Projeto, o importante não é a vida do povo, mas o deus-mercado e os interesses dos seus servidores e adoradores. 

É um Projeto estruturalmente desumano, antiético e - à luz da fé - anticristão: uma concretização histórica do Anti-Reino de Deus. Por considerar "o lucro como o motivo essencial do progresso econômico, a concorrência como lei suprema da economia, a propriedade privada dos bens de produção como um direito absoluto, sem limites nem obrigações correspondentes”, é um “sistema nefasto” (Paulo VI. O Desenvolvimento dos Povos - PP 26), ou, em outras palavras, um "sistema econômico iníquo” (Documento de Aparecida - DA 385).

Como disse o Papa Francisco aos Movimentos Populares (Bolívia, julho de 2015), “este sistema é insuportável: exclui, degrada, mata!”. É preciso mudá-lo.

O Projeto Social alternativo ao Projeto Capitalista é o Projeto Popular (ou, Projeto Socialista Democrático). 

O Concílio Vaticano II reconhece - com alguns reparos - que a humanidade caminha para uma socialização sempre maior. “Multiplicam-se sem cessar as relações do ser humano com os seus semelhantes (e - podemos acrescentar - com a Irmã Mãe Terra, Nossa Casa Comum), ao mesmo tempo que a própria socialização introduz novas ligações, sem no entanto favorecer em todos os casos uma conveniente maturação das pessoas e relações verdadeiramente pessoais - ‘personalização’ -” (A Igreja no mundo de hoje - GS 6).

As Forças Sociais Populares (Movimentos Populares e Centrais ou Frentes de Movimentos Populares, Sindicatos e Centrais Sindicais de Trabalhadores/as, Partidos Políticos Populares, Fóruns ou Comitês de Direitos Humanos, Conselhos de Direitos e outras Organizações Populares ou de Base, precisam - reconhecendo e valorizando suas diferenças - se unir cada vez mais numa grande Frente Popular Nacional para derrubar o Projeto Capitalista e construir (ou, fazer acontecer) o Projeto Popular.

As Forças Sociais Populares que - para ganhar um pequeno espaço de poder - fazem aliança com as Forças Sociais Capitalistas - traem o povo. Por motivos estratégicos (não, oportunistas) - em determinadas circunstâncias (por exemplo, para amenizar situações de extrema pobreza) as Forças Sociais Populares poderão fazer acordos pontuais com as Forças Sociais Capitalistas, mas nunca aliança, que significa comunhão de Projetos.

As eleições municipais - por estarem em contato mais direto com o povo e o trabalho de base nas Comunidades - têm um papel fundamental na construção do Projeto Popular. Infelizmente, todas as eleições têm ainda - em grande parte - um caráter personalista e, muitas vezes, os partidos são usados como meras siglas de aluguel para viabilizar projetos pessoais. Precisamos acabar com essa visão e maneira de fazer política partidária.

Nesse tempo da propaganda eleitoral para as próximas eleições municipais (como também, para todas as eleições) não perguntemos (ao menos primeiramente) aos candidatos/as a vereadores/as e a prefeitos/as o que eles e elas pretendem fazer se eleitos/as e qual é o seu programa de trabalho. Perguntemos, antes, se o partido político, ao qual são filiados/as, está ou não comprometido com a construção do Projeto Popular e - se está - de que maneira. Em seguida, perguntemos o que eles ou elas - se eleitos/as vereadores/as ou prefeitos/as - pretendem fazer, e de que maneira, para dar sua contribuição na construção do Projeto Popular, a partir do seu município. 

Por fim, testemunhando claramente de que lado estamos, no nosso jeito de fazer política busquemos sempre - com coerência partidária e pessoal - a unidade (reconhecendo e valorizando as diferenças) em torno do Projeto Popular. Só assim teremos a força necessária para construir um novo Brasil. Vamos à luta! Vote consciente! Vote no Projeto Popular! Vote nos candidatos/as a vereadores/as e a prefeitos/as que estão realmente comprometidos/as com esse Projeto!

Em tempo: Comunico aos prezados leitores e leitoras que nos meses de novembro, dezembro/20 e janeiro/21, o meu artigo será mensal. Em fevereiro/21, voltará a ser - espero - semanal.


Plano de fundo do download 2020

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Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

Goiânia, 20 de outubro de 2020


segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Demônios exaltando demônios


Na Nota pública “Em repúdio à manifestação de Mourão exaltando Ustra”, do dia 9 deste mês de outubro, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns (Comissão Arns) “manifesta seu mais veemente repúdio à declaração do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, em entrevista para a rede alemã Deutsche Welle, de que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (reparem o descaramento e o cinismo!) foi ‘um homem de honra, que respeitou os Direitos Humanos dos seus subordinados’. As palavras do vice-presidente, que é um general reformado do Exército, não apenas desonram as Forças Armadas, como agridem a dignidade dos que padeceram nas mãos desse torturador já condenado pela Justiça”. 

Trata-se de uma declaração que, para qualquer pessoa com um mínimo de sensibilidade humana, dá nojo. Hamilton Mourão deve estar pensando que os brasileiros e brasileiras são todos e todas idiotas.

A tortura é o pior crime contra os Direitos Humanos. Os torturadores são perversos, sádicos e revelam um grau de maldade inimaginável. São monstros, verdadeiros demônios. Ora, quando pensamos ter chegado no limite máximo possível dessa maldade humana, deparamos com aqueles que - como Jair Bolsonaro, Hamilton Mourão e outros - enaltecem e exaltam, com arrogância e sarcasmo, os torturadores. Com certeza esses seres humanos (se é que merecem serem chamados de seres humanos) são duplamente demônios. São demônios exaltando demônios.

“Não é de hoje - diz a Nota - que autoridades do atual governo exaltam a figura macabra do ex-chefe do DOI-Codi do 2º Exército, em São Paulo, de cujos porões emergiram inesquecíveis relatos de terror e sadismo contra cidadãos brasileiros. Para se ter ideia da barbárie autorizada como política de Estado, entre 1970 e 1974, a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, liderada por Dom Paulo Evaristo Arns, patrono da Comissão Arns, reuniu mais de 500 denúncias de tortura no DOI-Codi comandado por Ustra”. 

 E relata: “Passaram-se mais de 30 anos para que, finalmente em 2008, Ustra fosse reconhecido como autor de sequestro e tortura, em ação declaratória movida pela família Telles, cujos membros puderam sobreviver para testemunhar as crueldades perpetradas por esse militar e seus ‘subordinados’, nos porões da ditadura”: verdadeiras sucursais do inferno.

Por fim, declara: “Hoje e sempre, serão inaceitáveis homenagens a esse violador da Carta Constitucional de 1967/9, do Código Penal Militar de 1969 e das Convenções de Genebra de 1949, como documentado no Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV)”.  

Termina, pois, com uma denúncia profética: “Ao proferir tais elogios, Hamilton Mourão conspurca, de saída, a honra dos militares brasileiros. Ao fazê-lo na condição de vice-presidente, constrange a Nação e desrespeita a memória dos que tombaram sob Ustra. E, ao insistir em reverenciar o carrasco, fere mais uma vez o decoro do cargo em que foi investido sob juramento de respeitar a Constituição. É ela que nos ensina: ‘Tortura é crime inafiançável, insuscetível de graça ou anistia’”. 

Seguem as assinaturas dos membros da Comissão Arns.

Muitas Entidades - como a “Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil - manifestaram total apoio à Comissão Arns e irrestrita solidariedade às famílias das vítimas dos horrores da ditadura.

Jair Bolsonaro - que já tinha feito a apologia da ditadura militar - “chamou de ‘herói nacional’ o coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, apontado pela Comissão da Verdade como responsável por 47 sequestros e homicídios, além de ter atuado pessoalmente (com choques elétricos e rindo) em sessões de tortura durante o regime. "Um herói nacional que evitou que o Brasil caísse naquilo que a esquerda hoje em dia quer", disse Bolsonaro (cf. https://www.brasil247.com/brasil/bolsonaro-diz-que-o-torturador-ustra-e-heroi-nacional). Que sadismo!

Perguntamo-nos: Como é possível que - em pleno século 21 - o Brasil seja governado por políticos dessa laia? Façamos uma análise e interpretação crítica da situação. Que Deus nos livre dessa “pandemia política” e nos dê a força para lutar por um novo Brasil. 

Aproveitemos as eleições municipais para iniciar um verdadeiro processo de mudanças! Chega de tanta barbárie! Chega de demônios na política! 


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https://www.brasil247.com 




Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

Goiânia, 13 de outubro de 2020


sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Opção pelos Pobres: único caminho para seguir Jesus de Nazaré

 


Confesso que fiquei surpreso com o título do artigo do meu irmão dominicano Frei Betto, a quem admiro muito: “E correto ainda falar de Opção pelos Pobres”? A pergunta coloca em dúvida a Opção pelos Pobres e - com isso - acaba reforçando, mesmo que involuntariamente, o modelo de Igreja conservadora que, com razão, o próprio Frei Betto critica.

As CEBs (e não “o Movimento das CEBs” - como diz Frei Betto) foram e continuam sendo uma experiência concreta e atual do “novo e antigo jeito” - o “jeito evangélico” - de ser Igreja (e - enquanto ideal - de toda a Igreja ser). 

Infelizmente - nisso concordo com Frei Betto - as CEBs, juntamente com as Pastorais Populares, foram atropeladas “por 34 anos de pontificados conservadores de João Paulo II (26 anos) e Bento XVI (8 anos). A ‘volta à grande tradição’ (J.B. Libânio), incentivada por aqueles pontífices, penetrou Seminários e trouxe de fora para dentro do Brasil diversos Movimentos marcados por uma espiritualidade intimista, carismática, clericalista, desprovida de caráter social e de compromisso com a Opção pelos Pobres”. 

É justamente por isso que precisamos reafirmar com toda força a Opção pelos Pobres. Ela não é uma questão semântica; não é uma questão de linguagem “correta” ou “incorreta”; não é também uma questão de Opção “preferencial”, ou seja, de uma alternativa entre duas ou mais alternativas possíveis (aliás, a palavra “preferencial” não se encontra nos Documentos de Medellín - 1968, mas foi colocada posteriormente para agradar aqueles que - sobretudo bispos - não entendiam o sentido da Opção pelos Pobres). 

Fazendo suas as palavras do profeta Isaias, Jesus diz: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar a Boa Notícia aos Pobres” (Lc. 4,18). Ele não diz: para anunciar “preferencialmente” a Boa Notícia aos Pobres. 

A Opção pelos Pobres é uma Opção de vida, uma Opção que tem lado. É a Opção do Evangelho; é a Opção “desde a manjedoura” de Jesus de Nazaré: o caminho que Ele fez e que não exclui ninguém.  “Eu vim para que todos e todas tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Todos e todas são chamados/as a se converter, mudar de vida, praticar a partilha e a entrar nesse caminho, como fez Zaqueu, o homem rico do Evangelho. Mas, cuidado! Jesus diz também: “É mais fácil um camelo passar pelo vão de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (Mt 19,24).

Em poucas palavras, a Opção pelos Pobres é o único caminho para seguir Jesus de Nazaré: “Caminho, Verdade e Vida” (Jo 14,6).

Fazer a Opção pelos Pobres não significa, pois, exaltar ou idolatrar a pobreza que - enquanto falta (grave ou gravíssima) de condições de vida digna, é um mal, uma violência institucionalizada, um pecado social (sócio-econômico-político-ecológico-cultural e religioso) ou pecado estrutural: o Anti-Reino de Deus. 

Fazer a Opção pelos Pobres (trabalhadores/as sem terra, sem teto e sem trabalho, trabalhadores/as explorados/as, marginalizados/as, oprimidos/as, abandonados/as e descartados/as de nossa sociedade capitalista ultra neoliberal, injusta e perversa) significa ficar do lado deles e delas, ser companheiros/as e irmãos/ãs de caminhada, para que eles e elas tenham voz e vez e se tornem o sujeito principal de sua própria libertação.

A “pobreza - virtude” não é a “pobreza - falta de condições de vida digna”, mas é a vida humana vivida com simplicidade, na partilha, no amor e na solidariedade

Dou graças a Deus por ter-me dado a possibilidade de mergulhar no trabalho de base nas CEBs e nos Movimentos Populares não só nos anos em que esse trabalho “estava na moda”, mas durante toda a minha vida - nos tempos favoráveis e desfavoráveis - e posso afirmar: não é verdade - como parece insinuar o meu irmão Frei Betto - que nesse trabalho de base não se fazia ou não se faz uma análise estrutural e conjuntural crítica da realidade. Houve e há limitações naturais, faltas de recursos materiais e humanos e outras falhas, mas - mesmo com tudo isso - o eixo ou a espinha dorsal da práxis (prática e teoria dialeticamente unidas) de libertação foi sempre (e continua sendo) a leitura - análise e interpretação - dos sinais dos tempos à luz da razão (ou, nas CEBs, à luz da razão, iluminada pela fé), a partir da Opção pelos Pobres, desde os Pobres, na ótica dos Pobres. O método usado foi e continua sendo “ver, julgar e agir” (analisar, interpretar e libertar).

A Teologia da Libertação (as palavras “da Libertação” servem de lembrete, porque toda Teologia verdadeira é da Libertação) brota da Práxis da Libertação e a fortalece. O mergulho permanente nesse trabalho - em tempos favoráveis e, sobretudo, em tempos desfavoráveis - foi a minha verdadeira Universidade de Vida. 

Os assessores de Encontros de Base - Intereclesiais e outros (já disse isso na avaliação do último Intereclesial em Londrina) não devem ser “assessores de helicóptero” (que aparecem e, logo depois de sua assessoria, somem), mas pessoas que participam integralmente do Encontro numa atitude de escuta para apreender com a experiência e a sabedoria do povo e que - dentro desse contexto de participação - contribuem com sua assessoria, conforme a especialidade de cada um.

Aqueles e aquelas (bispos, padres, religiosos/as e outras pessoas) que pensam que acabaram com a Igreja da Caminhada - a Igreja das CEBs e das Pastorais Populares - estão muito enganados. Ela está viva mais do que nunca, está nas catacumbas. O Espírito Santo a sustenta e um dia ela irá irromper novamente - ou já está irrompendo - com toda força do Espírito. Ninguém resiste à ação do Espírito Santo (as palavras “de Base” são também um lembrete, porque toda Comunidade - para ser cristã - tem que ser “de Base”, territorial ou ambiental, ou seja, uma Comunidade inserida e encarnada na realidade desde os Pobres. 

A nossa missão como Igreja é combater o Anti-Reino e fazer acontecer o Reino de Deus na história do ser humano e do mundo: a Irmã-Mãe Terra, nossa Casa Comum. “Num país de injustiças, se a Igreja não é perseguida, é porque é conivente com a injustiça” (Santo Oscar Romero).

Enfim, na diversidade dos carismas (dons) e dos ministérios (serviços) lutemos para sermos, cada vez mais, a Igreja de Jesus de Nazaré.

(Veja o artigo do Frei Betto, em: https://domtotal.com/artigo/9064/2020/10/e-correto-ainda-falar-de-opcao-pelos-pobres/).


Resultado de imagem para imagens de CEBs

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Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

Goiânia, 06 de outubro de 2020


sexta-feira, 2 de outubro de 2020

A exploração dos pobres em nome da fé

 


No dia 21 de agosto último, o Ministério Público de Goiás (MP-GO) deflagrou a Operação Vendilhões para investigar o caso Padre Robson de Oliveira Pereira (46 anos de idade), até então reitor do Santuário Basílica do Divino Pai Eterno (Trindade-GO) e presidente da Associação Filhos do Pai Eterno (AFIPE).

Segundo foi amplamente divulgado nos meios de comunicação e nas redes sociais, existem muitas denúncias - acusações e suspeitas - contra ele. Padre Robson é acusado de comprar fazendas, aviões e imóveis de luxo com a verba destinada à construção de um novo Santuário Basílica (do qual não há nenhuma necessidade e - se construído do jeito que foi planejado - será mais uma prova concreta de uma Igreja triunfalista, poderosa e antievangélica). 

Padre Robson - sempre conforme o que já foi amplamente divulgado - é também suspeito de apropriação indébita, falsificação de documentos, sonegação fiscal, tráfico de influências, propinas, associação criminosa, lavagem de dinheiro de doações, chantagens e extorsões por causa de envolvimentos pessoais.

Devido a essas denúncias, a Operação fez buscas e apreensões em vários imóveis ligados ao Padre Robson e à AFIPE. 

A notícia do escândalo estourou como uma bomba. Para muitas pessoas - sobretudo devotos e devotas do Divino Pai Eterno - foi uma surpresa. Pessoalmente - há tempo - tinha a convicção que um dia ou outro tudo isso iria acontecer. Não demorou para que o meu pressentimento se tornasse realidade.

Infelizmente, Padre Robson, mesmo que tenha sido por motivações ditas “religiosas” (só Deus julga a consciência das pessoas), tornou-se um grande e poderoso empresário capitalista. Ora, para quem segue a lógica do sistema capitalista, todas essas práticas são consideradas “normais”.

Mesmo, porém, que Padre Robson consiga provar (o que será difícil) que as denúncias são falsas e que sempre agiu dentro da lei, suas negociatas são - com certeza - imorais.

Como permanente aprendiz de filósofo (que lê - analisa e interpreta -  os fatos à luz da razão) e de teólogo (que lê - analisa e interpreta -  os fatos à luz da razão iluminada pela fé), em consciência sinto-me no dever de denunciar que, por trás de todas essas falcatruas, existe uma visão de Deus e de Igreja anticristã

Padre Robson apresenta um Deus faraônico e imperial; um Deus que gosta de imponência, de riqueza e de luxo; um Deus que precisa de um novo Santuário Basílica majestoso (inserido num complexo religioso de 146 mil metros quadrados de construção, com 94 metros de altura - o equivalente a um prédio de 30 andares - no valor de R$ 1,4 bilhão) e do maior sino suspenso do mundo (importado da Polônia) no valor de R$ 6 milhões para que os pobres possam ouvir sua voz; enfim, um Deus que é totalmente o oposto do Deus revelado por Jesus de Nazaré e que, portanto, é anticristão. Desse Deus eu sou ateu!  

Como consequência de sua visão de Deus, Pe. Robson apresenta também uma Igreja faraônica, imperial, feudal, capitalista e clerical; uma Igreja que se impõe pelo luxo, pela grandiosidade e suntuosidade de seus templos (inclusive o projeto do novo Santuário Basílica de Trindade), de suas grandiosas e ricas catedrais (dou graças a Deus que - ao menos por enquanto - a nova Catedral de Goiânia não saiu do papel), de suas majestosas cátedras, de suas sofisticadas vestimentas e de seus vasos sagrados cheios de ouro. Que Igreja dos pobres é essa! Como o povo está sendo enganado! Não dá para não ficar indignados/as! Essa não é a minha Igreja! 

Tudo isso não tem nada a ver com a vida e a prática de Jesus de Nazaré. Por exemplo, Jesus e seus apóstolos nunca sentaram em cátedras imperiais. As únicas cátedras de Jesus foram a manjedoura e a cruz. Sua coroa foi a coroa de espinhos. Falar em cátedra de São Pedro é mentir. Pedro nunca sentou em cátedra. Aliás - seguindo o exemplo de Jesus - sua única cátedra foi a cruz (na qual - segundo a tradição - ele quis ser crucificado de cabeça para baixo, por não se achar digno de ser crucificado como Jesus). 

Essa visão de Deus e de Igreja levou o Padre Robson, seus seguidores e apoiadores, a praticarem de maneira planejada (consciente ou não, só Deus sabe), a exploração dos pobres em nome da fé. Os 20 milhões mensais arrecadados pela AFIPE são - em sua maioria - dinheiro tirado da boca dos pobres. A pressão psicológica e religiosa da Associação é tanta que cria dependência. Em muitos casos, as pessoas pensam que para serem filhos e filhas do Divino Pai Eterno e receberem suas bênçãos têm que pagar o boleto mensal da AFIPE. 

Um fato que aconteceu comigo, ilustra muito bem o que estou dizendo. Há tempo, saindo de um hospital, tomei um taxi. O motorista, depois de saber que eu era padre, fez um desabafo, carregado de escrúpulos e preocupações. Disse: “há muito tempo pago todo mês o boleto da AFIPE. Nestes últimos meses não paguei por falta de condições, mas todo mês recebo a cartinha do Padre Robson”. Percebi claramente que o motorista - por causa do atraso no pagamento do boleto - estava com receio de não ser abençoado pelo Divino Pai Eterno. Tive que tranquilizá-lo, mostrando que mesmo sem pagar, ele e seus familiares eram filhos e filhas do Divino Pai Eterno do mesmo jeito e até mais ainda pela situação difícil que estavam vivendo. Depois de nossa conversa, ele ficou aliviado. Não tenho dúvida: essa pressão psicológica e religiosa é um verdadeiro crime, que clama a Deus por justiça.

A AFIPE - como qualquer Associação ou Movimento - tem todo direito de existir, mas suas motivações deveriam ser apresentadas de outra forma: uma forma que liberta e torna livres e não uma forma que oprime e torna dependentes.

Por fim, manifesto minha solidariedade aos Irmãos Redentoristas, reconhecendo o trabalho missionário que realizam com amor e dedicação, e esperando que o novo reitor do Santuário Basílica, padre João Paulo, e o novo presidente da AFIPE, padre André Ricardo, recuperem o sentido histórico original - que é tão bonito - da Imagem do Divino Pai Eterno e façam tudo o que está em suas possibilidades para que o Santuário do Divino Pai Eterno - único no mundo - se torne o Santuário dos pobres. Só assim Ele será o Santuário de todos e todas.


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http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/602353-breves-do-facebook-28-08-2020 

Essas imagens confirmam o que eu disse 



Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)

Professor aposentado de Filosofia da UFG

E-mail: mpsassatelli@uol.com.br

Goiânia, 29 de setembro de 2020



A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos