domingo, 12 de junho de 2011

Uma saúde pública criminosa

Na madrugada do dia 31 de maio/11 o aposentado José Fernandes, de 65 anos, morreu “aguardando vaga de UTI em um Cais, onde ficou internado durante cinco dias. O drama de José Fernandes e de sua família foi mostrado pela TV Anhanguera” (O Popular, 03/06/11, p. 5). Perguntamos: Quem vai responder pela morte de José Fernandes? O que o Ministério Público está fazendo para que os responsáveis por esse crime sejam processados, julgados e punidos? A sociedade aguarda uma resposta.
Mesmo depois de anunciada - há quase um mês - a parceria entre as Secretarias Estadual (SES) e Municipal de Saúde (SMS), “os pacientes que precisam de atendimento em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) continuam enfrentando horas e até dias de espera por uma vaga” (Ib.).
            Entre muitos casos, cito o de Reinaldo Alves Pereira, de 85 anos, já divulgado na imprensa. Reinaldo está com Acidente Vascular Cerebral (AVC) isquêmico e com pneumonia. Foi internado às 11 horas do dia 30 de maio/11 no Cais Novo Mundo. A família precisou recorrer ao Ministério Público e ingressar com mandado de segurança para conseguir uma vaga na UTI por volta das 19 horas do mesmo dia.
            A pedagoga Elma Teresinha Pereira Carvalho, filha única de Reinaldo, contou: “Tenho convicção de que só conseguimos a vaga graças à intervenção de um vizinho, que é vereador”. Meu pai - continua ela - quase morreu esperando pela UTI”. Que descaso! Que falta de respeito!
            Infelizmente, não são somente os doentes graves que estão insatisfeitos com a saúde pública. A reclamação é geral, por causa das estruturas físicas precárias dos centros de atendimento, da constante falta de médicos, da demora para conseguir consulta e para ser atendido, e do mau atendimento recebido nos consultórios. Só para citar um exemplo, no dia dois de junho/11, como é comum acontecer, havia no Cais de Campinas - segundo os próprios pacientes - apenas um médico atendendo.
Numa pesquisa, realizada anonimamente em diversas unidades de saúde do município de Goiânia no início de fevereiro/11, observou-se como era prestada a assistência aos pacientes e constatou-se que, de 20 consultas cronometradas, a mais longa durou 5min e 40seg, e a mais curta - a de Vanusa Cunha, de 35 anos, que virou capa do jornal - durou 33seg. O recomendado pelo Conselho de Medicina é o atendimento de 20min (Cf. O Popular 06/02/11, capa e p. 4-5 - reportagem). Que irresponsabilidade! Que situação criminosa! Apesar das medidas anunciadas para melhorar a qualidade do atendimento, a saúde pública continua uma verdadeira calamidade.
            Vanusa Souza Cunha, procurada depois de três meses da consulta relâmpago de 33seg, era o retrato da desesperança. Indignada pelo tratamento recebido antes e, sem acreditar que a situação possa mudar, afirma: “Prefiro sentir dor em casa que esperar pelo Sistema Único de Saúde (SUS)”. E continua dizendo: “Nunca mais voltei ao Centro de Assistência Integral à Saúde (Cais) do Jardim Curitiba, na Região Noroeste de Goiânia. Dá até descrença de ir lá” (Ib. 05/08/11, p. 3).
Há poucos dias, porém, Vanusa sentiu na pele, mais uma vez, o que é depender da saúde pública. “A mãe dela, idosa, precisa se submeter a um exame de endoscopia, cuja autorização parte da SMS. Para conseguir o ‘chequinho’ que permitirá à mãe fazer o exame, Vanusa passou 11 horas numa fila, das 5 às 16 horas, ‘sem almoço, sem lanche e em pé’” (Ib.). A história de Vanusa é o retrato fiel de uma legião enorme de trabalhadores/as, que são obrigados a depender do SUS.
            Há também reclamações frequentes de falta de medicamentos nas farmácias das unidades de saúde. Basta citar um fato concreto, que é revelador de toda uma situação de descaso do Poder Público em relação à saúde. Há poucos dias um trabalhador com neuropatia em estado muito avançado (que, segundo ele, é consequência do espancamento do qual foi vítima durante a chamada “Operação Triunfo”, no bárbaro despejo dos moradores da ocupação “Sonho Real” do Parque Oeste Industrial, em 2005) e sem condições de trabalhar, me procurou desesperado pedindo ajuda. Mostrou-me um Protocolo - que deixa qualquer ser humano indignado - com os dizeres: “Certifico, para os devidos fins, que nesta presente data 18/05/11, recebemos a receita do paciente José (nome fictício) na farmácia da Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia. Data provável da entrega dos medicamentos 18/06/11”. Que descaramento! Que falta de humanidade!
Reparem: José, que devido à doença não tem as mínimas condições de trabalhar, precisa urgentemente de dois remédios de uso contínuo, relativamente caros. A farmácia da Secretaria Municipal de Saúde recebe a receita das mãos do paciente e marca, para depois de 30 dias, a data provável da entrega dos medicamentos. Que cinismo! Que humilhação! O próprio teor do Protocolo soa como uma condenação à morte de José e, indiretamente, é uma confissão de culpa do Poder Público Municipal.
O povo não tem nada a ver com a desculpa da falta de verbas, com o atraso no repasse das mesmas por parte da União e do Estado. As relações entre as diversas instâncias de poder e as obrigações de cada instância são um problema político dos governantes. O povo, havendo necessidade e sobretudo urgência, tem o direito de ser atendido imediatamente e não depois de um mês  “com data provável”.

            No lugar de buscar - como parece esteja acontecendo - a privatização da saúde pública (uma área vital e historicamente escanteada) de maneira sutil e velada (para não ser impopular), como no caso das chamadas Organizações Sociais (OSs) (entidades que atuam em áreas de interesse público), o Poder Público - Federal, Estadual e Municipal - deveria se preocupar em cumprir a Constituição Federal, que reza: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Art. 196). È só uma questão de prioridade política. A vida em primeiro lugar!
Diário da Manhã, Opinião Pública, Goiânia, 11/06/11, p. 3 


Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra

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