“Saúde perde R$ 12 bi por maquiagem de
Estados” (Folha de S. Paulo, 04/07/11, Manchete, 1ª página). “Maquiagem infla
gastos com saúde em R$ 12 bilhões” (Ib., Manchete, p. A4). “Estados usam
despesas de outras áreas para cumprir exigência constitucional. Prestações de
contas entregues a ministério incluem investimentos em presídios, educação e
até aposentadorias. Ministério diz que Estados declaram mais gastos com saúde
do que realizam de fato” (Ib.).
A emenda
constitucional 29, de 13/09/2000, determina que os Estados invistam na saúde
pública 12% de suas receitas, no mínimo. A maioria dos Estados não cumpre a
legislação. “Os 27 Estados declaram gastos de R$ 115 bilhões com saúde de 2004
a 2008. Depois de examinar suas prestações de contas, o ministério concluiu que
R$ 11,6 bilhões se referiam a despesas com outras áreas, que não poderiam ser
usadas para cumprir a lei. Esse dinheiro corresponde a 10% dos gastos
informados pelos Estados nesses cinco anos e seria suficiente para manter por
um ano 13 ambulâncias do SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) em
cada um dos 5,5 mil municípios do país” (Ib.).
Que
absurdo! Que irresponsabilidade! Vejam, como exemplo, as consequências desse absurdo
e dessa irresponsabilidade na saúde pública, em Goiânia. “62 morreram em um mês
à espera de UTI” (O Popular, 05/07/11, Manchete, 1ª página). “Duas pessoas
morrem por dia à espera de vaga em UTI” (Ib., Manchete, p. 3). “Sessenta e um
pacientes morreram no mês de junho em Goiânia, internados em Centros de
Atendimento Integral à Saúde (Cais) ou no Hospital de Urgências de Goiânia
(Hugo), enquanto aguardavam vaga de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), o que
corresponde a uma média de duas mortes diárias” (Ib.).
O drama da falta de
vagas para internação em leitos especializados de UTI continua. Só no mês de
junho, a média diária de pacientes na fila de espera foi de 14. O tempo de
espera chega a quatro dias ou mais. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde (SMS),
Goiânia conta com 315 leitos de UTI contratados, que internam mensalmente 12
mil pessoas (Cf. Ib.).
Há
menos de um mês, escrevi um artigo com o título: “Uma saúde pública criminosa”
(Cf. Diário da Manhã, Opinião Pública, 11/06/11, p. 3; www.adital.com.br
- 14/06/11). Lendo, nestes dias, as manchetes da imprensa nacional e local a
respeito da saúde pública, fiquei profundamente indignado e senti a necessidade
de voltar a escrever sobre o assunto. A situação da saúde pública é realmente
uma calamidade e um descalabro total. É uma situação de ficar abismados com
tanto desrespeito para com o povo. Pergunto: quem vai responder judicialmente pelos 62 pacientes que, num
mês, morreram no Hugo e nos Cais de Goiânia, enquanto aguardavam uma vaga de
UTI? Reparem: em média, são duas pessoas
mortas por dia só em Goiânia. Trata-se de verdadeiros assassinatos do sistema
público de saúde. Será que essa trágica realidade não diz nada às nossas
autoridades? Parece que nós nos acostumamos a conviver com ela como algo
natural.
Deixar
de prestar assistência em casos de urgência ou perigo de vida é crime de
omissão de socorro. O Código Penal reza: “Deixar de prestar assistência, quando
possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à
pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo de vida;
ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena - detenção,
de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa” (Art. 135). “A pena é aumentada de
metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada,
se resulta a morte” (Parágrafo único).
O secretário de Saúde
do município de Goiânia, Elias Rassi Neto - para tentar reduzir o número de
óbitos, a fila e o tempo de espera de uma vaga de UTI - tomou algumas medidas,
assinando três portarias. A primeira (válida só para pacientes adultos e
entubados) é “a mais abrangente delas” e “aumenta em 50% o valor médio da
diária de UTI, que é de R$ 478,72, e vai para R$ 718,08”.
A segunda portaria
“quase triplica o valor pago pela diária de UTI para queimados” e “aumenta de
dois para três o número de leitos oferecidos pelo Pronto-Socorro para
Queimaduras, único hospital que conta com tratamento intensivo nessa área”.
Hoje, a diária de UTI para queimados “é de R$ 322,22. O valor total chegará a
R$ 957,44”.
A terceira portaria
“dispõe sobre a contratação de servidores de hemodiálise para pacientes
internados, aguardando vagas de UTI, nos 13 Cais de Goiânia. Atualmente não
existe esse tipo de serviço” (O Popular, 05/07/11, p. 3).
Essas medidas do
secretário de Saúde são positivas e podem melhorar a situação dramática da
saúde publica, mas não resolvem o problema pela raiz.
Permita-me,
secretário, fazer alguns questionamentos. Em primeiro lugar, não se trata de
“reduzir o número de óbitos”, mas se trata de acabar com os óbitos por omissão
de socorro. Um só óbito por omissão de socorro é crime e os responsáveis devem
ser processados, julgados e punidos.
Na renovação do
convênio com os hospitais particulares, o Poder Público deveria colocar por
escrito (embora não seja, absolutamente falando, necessário) que, em caso de
perigo de vida, o paciente deve ser atendido imediatamente numa vaga de UTI,
mesmo que seja a pagamento. Segundo acordo preestabelecido e dentro de
critérios de justiça, o Poder Público arcará posteriormente com as despesas.
Deixemos de
hipocrisia! As vagas de UTI nos hospitais existem; só não existem para pobres.
Tenho certeza que se os familiares das 62 pessoas que morreram - dizem - por
falta de vagas de UTI, tivessem tido dinheiro para pagar na hora, as vagas de
UTI teriam aparecido de imediato e as 62 pessoas - que na verdade morreram não
por falta de vagas de UTI, mas por falta de dinheiro para pagar - teriam tido o
melhor tratamento possível. Aqui está, infelizmente, a iniquidade do sistema
público de saúde, que faz parte de um sistema econômico perverso.
Quando questionado
sobre se os hospitais da rede particular selecionam pacientes, rejeitando os
idosos, cujos tratamentos são normalmente mais caros, o secretário preferiu não
polemizar e afirmou: “Não falo como acusação. Do lado de cá, temos o paciente
do SUS; do lado de lá, o mercado, com receitas e despesas. Estamos tentando
equacionar o problema” (Ib.).
O secretário parece
se esquecer de “um detalhe” muito importante. O “paciente do SUS” é uma pessoa
humana, é uma vida humana, que tem um valor infinito, e não pode estar
subordinado e nem ser colocado no mesmo nível do “mercado, com receitas e
despesas”. Infelizmente, na nossa sociedade capitalista neoliberal, o mercado
se tornou o grande ídolo, ao qual - se necessário - tudo pode e deve ser
sacrificado, inclusive a vida dos pobres, que são os excluídos, o material
descartável da nossa sociedade hipócrita, da nossa sociedade “de bem”. E tudo
isso acontece dentro da mais absoluta normalidade e indiferença. È assustador!
Os que defendemos os
direitos humanos e os que - em nome de nossa fé cristã - defendemos “a
Fraternidade e a Vida no Planeta” (CF 2011) e temos consciência que “a criação
geme em dores de parto” (Rm 8,22), não podemos nos calar e deixar de denunciar
os assassinatos do sistema público de saúde. Se nós nos calamos, as pedras
gritarão (Cf. Lc 19, 40).
Diário da Manhã,
Opinião Pública, Goiânia, 09/07/11, p. 3
Fr. Marcos
Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em
Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Prof. de
Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na
Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão
Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário
Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador
Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br
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