domingo, 10 de julho de 2011

As mortes do sistema público de saúde: quem vai responder por elas?

“Saúde perde R$ 12 bi por maquiagem de Estados” (Folha de S. Paulo, 04/07/11, Manchete, 1ª página). “Maquiagem infla gastos com saúde em R$ 12 bilhões” (Ib., Manchete, p. A4). “Estados usam despesas de outras áreas para cumprir exigência constitucional. Prestações de contas entregues a ministério incluem investimentos em presídios, educação e até aposentadorias. Ministério diz que Estados declaram mais gastos com saúde do que realizam de fato” (Ib.).
A emenda constitucional 29, de 13/09/2000, determina que os Estados invistam na saúde pública 12% de suas receitas, no mínimo. A maioria dos Estados não cumpre a legislação. “Os 27 Estados declaram gastos de R$ 115 bilhões com saúde de 2004 a 2008. Depois de examinar suas prestações de contas, o ministério concluiu que R$ 11,6 bilhões se referiam a despesas com outras áreas, que não poderiam ser usadas para cumprir a lei. Esse dinheiro corresponde a 10% dos gastos informados pelos Estados nesses cinco anos e seria suficiente para manter por um ano 13 ambulâncias do SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) em cada um dos 5,5 mil municípios do país” (Ib.).
            Que absurdo! Que irresponsabilidade! Vejam, como exemplo, as consequências desse absurdo e dessa irresponsabilidade na saúde pública, em Goiânia. “62 morreram em um mês à espera de UTI” (O Popular, 05/07/11, Manchete, 1ª página). “Duas pessoas morrem por dia à espera de vaga em UTI” (Ib., Manchete, p. 3). “Sessenta e um pacientes morreram no mês de junho em Goiânia, internados em Centros de Atendimento Integral à Saúde (Cais) ou no Hospital de Urgências de Goiânia (Hugo), enquanto aguardavam vaga de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), o que corresponde a uma média de duas mortes diárias” (Ib.).
O drama da falta de vagas para internação em leitos especializados de UTI continua. Só no mês de junho, a média diária de pacientes na fila de espera foi de 14. O tempo de espera chega a quatro dias ou mais. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), Goiânia conta com 315 leitos de UTI contratados, que internam mensalmente 12 mil pessoas (Cf. Ib.).
            Há menos de um mês, escrevi um artigo com o título: “Uma saúde pública criminosa” (Cf. Diário da Manhã, Opinião Pública, 11/06/11, p. 3;  www.adital.com.br - 14/06/11). Lendo, nestes dias, as manchetes da imprensa nacional e local a respeito da saúde pública, fiquei profundamente indignado e senti a necessidade de voltar a escrever sobre o assunto. A situação da saúde pública é realmente uma calamidade e um descalabro total. É uma situação de ficar abismados com tanto desrespeito para com o povo. Pergunto: quem vai responder  judicialmente pelos 62 pacientes que, num mês, morreram no Hugo e nos Cais de Goiânia, enquanto aguardavam uma vaga de UTI?  Reparem: em média, são duas pessoas mortas por dia só em Goiânia. Trata-se de verdadeiros assassinatos do sistema público de saúde. Será que essa trágica realidade não diz nada às nossas autoridades? Parece que nós nos acostumamos a conviver com ela como algo natural.
            Deixar de prestar assistência em casos de urgência ou perigo de vida é crime de omissão de socorro. O Código Penal reza: “Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo de vida; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa” (Art. 135). “A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte” (Parágrafo único).
O secretário de Saúde do município de Goiânia, Elias Rassi Neto - para tentar reduzir o número de óbitos, a fila e o tempo de espera de uma vaga de UTI - tomou algumas medidas, assinando três portarias. A primeira (válida só para pacientes adultos e entubados) é “a mais abrangente delas” e “aumenta em 50% o valor médio da diária de UTI, que é de R$ 478,72, e vai para R$ 718,08”.
A segunda portaria “quase triplica o valor pago pela diária de UTI para queimados” e “aumenta de dois para três o número de leitos oferecidos pelo Pronto-Socorro para Queimaduras, único hospital que conta com tratamento intensivo nessa área”. Hoje, a diária de UTI para queimados “é de R$ 322,22. O valor total chegará a R$ 957,44”.
A terceira portaria “dispõe sobre a contratação de servidores de hemodiálise para pacientes internados, aguardando vagas de UTI, nos 13 Cais de Goiânia. Atualmente não existe esse tipo de serviço” (O Popular, 05/07/11, p. 3).
Essas medidas do secretário de Saúde são positivas e podem melhorar a situação dramática da saúde publica, mas não resolvem o problema pela raiz.
Permita-me, secretário, fazer alguns questionamentos. Em primeiro lugar, não se trata de “reduzir o número de óbitos”, mas se trata de acabar com os óbitos por omissão de socorro. Um só óbito por omissão de socorro é crime e os responsáveis devem ser processados, julgados e punidos.
Na renovação do convênio com os hospitais particulares, o Poder Público deveria colocar por escrito (embora não seja, absolutamente falando, necessário) que, em caso de perigo de vida, o paciente deve ser atendido imediatamente numa vaga de UTI, mesmo que seja a pagamento. Segundo acordo preestabelecido e dentro de critérios de justiça, o Poder Público arcará posteriormente com as despesas.
Deixemos de hipocrisia! As vagas de UTI nos hospitais existem; só não existem para pobres. Tenho certeza que se os familiares das 62 pessoas que morreram - dizem - por falta de vagas de UTI, tivessem tido dinheiro para pagar na hora, as vagas de UTI teriam aparecido de imediato e as 62 pessoas - que na verdade morreram não por falta de vagas de UTI, mas por falta de dinheiro para pagar - teriam tido o melhor tratamento possível. Aqui está, infelizmente, a iniquidade do sistema público de saúde, que faz parte de um sistema econômico perverso.
Quando questionado sobre se os hospitais da rede particular selecionam pacientes, rejeitando os idosos, cujos tratamentos são normalmente mais caros, o secretário preferiu não polemizar e afirmou: “Não falo como acusação. Do lado de cá, temos o paciente do SUS; do lado de lá, o mercado, com receitas e despesas. Estamos tentando equacionar o problema” (Ib.).
O secretário parece se esquecer de “um detalhe” muito importante. O “paciente do SUS” é uma pessoa humana, é uma vida humana, que tem um valor infinito, e não pode estar subordinado e nem ser colocado no mesmo nível do “mercado, com receitas e despesas”. Infelizmente, na nossa sociedade capitalista neoliberal, o mercado se tornou o grande ídolo, ao qual - se necessário - tudo pode e deve ser sacrificado, inclusive a vida dos pobres, que são os excluídos, o material descartável da nossa sociedade hipócrita, da nossa sociedade “de bem”. E tudo isso acontece dentro da mais absoluta normalidade e indiferença. È assustador!

Os que defendemos os direitos humanos e os que - em nome de nossa fé cristã - defendemos “a Fraternidade e a Vida no Planeta” (CF 2011) e temos consciência que “a criação geme em dores de parto” (Rm 8,22), não podemos nos calar e deixar de denunciar os assassinatos do sistema público de saúde. Se nós nos calamos, as pedras gritarão (Cf. Lc 19, 40).
Diário da Manhã, Opinião Pública, Goiânia, 09/07/11, p. 3 


Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra


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