terça-feira, 27 de junho de 2023

Os despejos do ponto de vista da ética

 


No final de março deste ano terminou o prazo da suspensão dos despejos por causa da pandemia da Covid-19. Companheiros e companheiras, irmãos e irmãs, cuidado! Os despejos estão voltando!

Com a esperança de poder colaborar para que isso não aconteça, faço agora uma leitura - análise e interpretação - dos despejos do ponto de vista da ética: filosófica (racional) e teológica (racional à luz da fé). Nessa leitura, destaco três pontos: 

1. Tratando-se de pessoas humanas, a própria palavra “despejo” é desrespeitosa e ofensiva. Pessoas humanas não se despejam. Hoje, até o lixo que pode ser reciclado, não é despejado, mas descarregado com o devido cuidado. Só é despejado - sem nenhum cuidado - o lixo que não tem mais condições de ser reaproveitado. Portanto, despejar pessoas humanas, significa tratá-las como lixo que não pode mais ser reaproveitado. O Papa Francisco tem razão quando diz que hoje os trabalhadores e trabalhadoras não são (somente) “excluídos”, mas “descartados”. Quanta iniquidade!  

2. Como já disse em outras ocasiões, todo despejo é injusto, desumano, antiético e imoral: uma imoralidade humana diabólica! Ora, como normalmente os despejos são praticados por “ordem judicial”, essa imoralidade é hipocritamente legalizada e institucionalizada.

3.Por experiência pessoal, posso dizer que os Movimentos Sociais Populares - como o MST e muitos outros - não promovem “invasões”, mas “ocupações”. Ora, “ocupar” terrenos sem função social é legítimo e ético, seja do ponto de vista filosófico (racional), seja do ponto de vista teológico (racional à luz da fé). Exemplifico:

  • No campo: é legítimo e ético ocupar terrenos e latifúndios improdutivos ou destinados à produção de monoculturas “envenenadas”, para fins de exportação e obtenção de lucros cada vez maiores, sem atender as reais necessidades do povo;
  • Na cidade: é legítimo e ético ocupar terrenos abandonados (ou - como se costuma dizer - “largados”) para fins de especulação imobiliária: no presente ou no futuro (quando os terrenos serão mais valorizados). 

    Esses terrenos - no campo e na cidade - do ponto de vista da ética, são de quem precisa deles para morar, trabalhar e viver dignamente. A destinação dos bens para uso de todos os seres humanos é de direito primário; a posse ou propriedade, de direito secundário, subordinado ao direito primário (S. Tomás de Aquino e Pensamento Social Cristão).

    Sempre do ponto de vista da ética, só existem três casos nos quais as pessoas de uma ocupação podem e devem ser removidas (não despejadas), com dignidade e respeito, para outras moradias:

    1. Quando a ocupação se encontra numa área de risco de vida. Nesse caso, o Poder Público tem a obrigação de remover, o mais rápido possível, as pessoas para outras moradias dignas, já prontas para serem habitadas, ou arcando com a locação social até as moradias definitivas ficarem prontas.

    2. Quando a ocupação se encontra numa área de preservação ambiental. Neste caso, porém, as pessoas só podem ser removidas quando outras moradias dignas estiverem prontas para serem habitadas.

    3. Quando a ocupação se encontra numa área de utilidade pública. Neste caso vale o que eu disse no parágrafo anterior a respeito de área de preservação ambiental.

    Em todos os outros casos, o Poder Público deve respeitar as ocupações como um direito humano e cuidar delas como cuida dos povoados no campo e dos bairros na cidade.

    Por tratamos de “despejos”, termino, fazendo a memória da ocupação “Sonho Real”, no Parque Oeste Industrial, em Goiânia (GO). Pela pressão dos “coronéis urbanos” (os donos das grandes imobiliárias), no dia 16 de fevereiro de 2005 - de madrugada e numa verdadeira operação de guerra com muita violência policial - cerca de 14 mil pessoas, entre as quais muitas crianças, idosos e idosas, foram despejadas pelo Governo do Estado de Goiás de suas moradias e jogadas na rua.

    O resultado dessa operação cruel foi: duas mortes reconhecidas (suspeita-se com razão de outras mortes), muitas pessoas feridas e crianças traumatizadas. Realmente, não dá para entender como o ser humano - em nome do “deus capital” - o “deus dinheiro” - seja capaz de uma perversidade diabólica como essa.  

    É a pior mancha da história de Goiânia e, com certeza, uma das piores da história do Brasil.

    Peço a Deus que um fato como esse nunca mais se repita!

    Moradia digna já!

    Despejos nunca mais!


    Campanha Nacional Despejo Zero (@despejozero) / Twitter


    Marcos Sassatelli, Frade dominicano
    Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
    Professor aposentado de Filosofia da UFG

    Goiânia, 26 de junho de 2023


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