20
anos de impunidade
Todo ano, no dia de 16 de
fevereiro, não podemos deixar de fazer a memória do despejo diabólico dos Moradores
- cerca 14 mil pessoas (4 mil famílias) - da Ocupação “Sonho Real”, no Parque
Oeste Industrial, em Goiânia - GO, para que tamanha iniquidade humana nunca
mais aconteça.
À época, o Governador
Marconi Perillo tinha prometido publicamente - numa entrevista coletiva, na
qual eu estava presente - que não iria mandar retirar as famílias da Ocupação
“Sonho Real” e que estava decidida a desapropriação da área. Inclusive,
tratava-se de uma área com todas as condições legais para que acontecesse a
desapropriação.
Apesar de ter publicamente
empenhado sua palavra (os Moradores fizeram até festa), Marconi Perillo,
pressionado pelos donos das grandes Imobiliárias de Goiânia - os que realmente
mandam na capital - foi covarde, não manteve a palavra dada e voltou atrás.
Por ser bastante valorizada, a área da Ocupação “Sonho Real” tinha se tornado
objeto de “especulação imobiliária” dos adoradores do deus dinheiro.
De 6 a 15 de fevereiro
de 2005, de 0 às 6h (reparem o horário!), a Polícia Militar do
Estado de Goiás começou a ação violenta da chamada “reintegração de posse”.
Cínica e maldosamente, recebeu o nome de "Operação Inquietação".
Foram dez dias de tortura física e psicológica coletiva. Cercou a área
com viaturas, impediu a entrada e a saída de pessoas e cortou o fornecimento de
energia elétrica. Com as sirenes ligadas, com o barulho de disparos de armas de
fogo, com a explosão de bombas de efeito moral (ou melhor: de “efeito imoral”!),
gás de pimenta e lacrimogêneo, a Polícia Militar promoveu o terror entre os
Moradores da Ocupação e provocou traumas psicológicos nas crianças. Que
perversidade! Que crueldade! Nenhuma lei permite uma Operação noturna criminosa
como essa.
Depois da “Operação Inquietação”,
no dia 16 de fevereiro de 2005, a Polícia Militar do Estado de Goiás
realizou uma verdadeira Operação Militar de Guerra, que também - cinica
e maldosamente - foi chamada "Operação Triunfo". Em uma
hora e quarenta e cinco minutos, cerca de 14 mil pessoas (4 mil famílias) foram
despejadas de suas moradias de maneira violenta, truculenta e sem nenhum
respeito pela dignidade da pessoa humana. A Operação Militar produziu duas
vítimas fatais (Pedro e Vagner), 16 feridos à bala, tornando-se um
desses paraplégico (Marcelo Henrique) e 800 pessoas detidas (suspeita-se
com razão que o número de mortos e feridos seja bem maior).
Já disse e reafirmo: nessas
Operações Militares criminosas e imorais - mesmo que hipocritamente legalizadas
- todos os Direitos Humanos fundamentais foram gravemente violados: o
Direito à Vida, o Direito à Moradia, o Direito ao Trabalho, o Direito à Saúde,
o Direito à Alimentação e à Água, os Direitos das Crianças e dos Adolescentes,
os Direitos das Mulheres, os Direitos dos Idosos e os Direitos das Pessoas com
Necessidades Especiais.
Depois do despejo
forçado e violento, e depois de passar uma noite acampadas na Catedral de
Goiânia - onde aconteceu também o velório de Pedro e Vagner num clima de
muita indignação e sofrimento - cerca de mil famílias (aproximadamente 2.500
pessoas), que não tinham para onde ir, ficaram alojadas nos Ginásios de
Esportes dos Bairros Novo Horizonte e Capuava (por mais de três meses) e,
em seguida, no Acampamento do Grajaú (por mais de três anos) como verdadeiros
refugiados de guerra.
Nesse período, diversas pessoas - sobretudo
crianças e idosos - morreram em consequência das condições subumanas de vida,
vítimas do descaso do Poder Público do Estado de Goiás e da Prefeitura de
Goiânia. Foi o maior despejo (14 mil pessoas), o mais iniquo, o mais
perverso e o mais cruel de toda a história de Goiânia, de Goiás e do Brasil cometido
pelo Poder Público.
Em 16 de fevereiro
deste ano de 2025, a “Operação Triunfo” - apesar de muitos esforços no sentido
de exigir a “federalização do caso” e a justiça - completa 20 anos de
impunidade. Que
vergonha para a Justiça de Goiània, de Goiás e do Brasil! Quem pode
acreditar nessa Justiça!
Os responsáveis por tamanha
iniquidade, praticada contra os Pobres, aguardem a justiça de Deus! Ela pode tardar, mas nunca falha!
“Vivemos - diz o Papa
Francisco - em cidades que constroem torres, centros comerciais, fazem negócios
imobiliários..., mas abandonam uma parte de si nas margens, nas periferias.
Como dói escutar que as Ocupações pobres são marginalizadas ou, pior, quer-se
erradicá-las! São cruéis as imagens dos despejos forçados, dos tratores
derrubando barracos, imagens tão parecidas às da guerra. E isso se vê hoje”
(Discurso de Francisco aos Movimentos Populares, outubro de 2014). Os Direitos
à Terra, ao Teto (Moradia) e ao Trabalho (os três T) - diz
ainda o Papa Francisco - são Direitos sagrados de todos e de todas.
Infelizmente, em nossa
sociedae capitalista neoliberal, os Moradores das Ocupações são tratados
como se fossem lixo degradável. O lixo reciclável é muito melhor
tratado. Meditemos!
Como já disse outras vezes,
mas nunca é demais repetí-lo, todo despejo é injusto e - se tiver
liminar de juiz - é mais injusto ainda, porque torna-se uma injustiça
legalizada e institutiainda.
Os adoradores do deus
dinheiro lembrem que - do ponto de vista humano e ético - todo terreno
urbano “largado” para futura especulação imobiliária e todo terreno ou
latifúndio rural improdutivo e sem função social são de quem precisa
deles para morar e/ou trabalhar.
Só existem três casos
nos quais os Moradores das Ocupações podem ser removidos (digo, removidos,
não despejados) com toda dignidade e respeito. Primeiro, se a
área ocupada representa perigo de vida para os Moradores. O Poder
público é obrigado a remover os Moradores imediatamente, mesmo que precise
pagar o aluguel social para as famílas. Segundo, se a área ocupada for
de utilidade pública, mas - nesse caso - somente depois que outras moradias
dignas estiverem prontas para serem ocupadas pelas famólias a serem removidas.
Terceiro, se a área ocupada for de preservaçao ambiental, mas nas
mesmas condições do segundo caso.
Por fim, que a memória
dos principais fatos, ocorridos antes, durante e depois do despejo dos
Moradores da Ocupação “Sonho Real”, fortaleça o nosso compromisso com a construção
de uma Nova Sociedade: a Sociedade do “bem-viver” e do “bem-conviver”, que
é um “Mundo Novo” e, à luz da Fé, o Reino de Deus acontecendo na
história do Ser humano e da Irmã Mãe Terra Nossa Casa Comum. O “Sonho Real”
está vivo! Ele continua! É o nosso sonho!
(Veja no Facebook o
Documentário: “Sonho Real: uma história de luta por moradia” do Coletivo
da Mídia Independente - Goiânia - GO)
Marcos Sassatelli - Frade dominicanoDoutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)Professor aposentado de Filosofia da UFG
https://freimarcos.blogspot.com/ - Goiânia, 10 de janeiro de 2025