quinta-feira, 23 de julho de 2015

Laudato Si’: ecologia da libertação


“A nossa casa comum se pode comparar
 ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência,
ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços” (1)

            O Editorial da Folha de S. Paulo do dia 20 de junho afirma: “apesar de bem recebida por ambientalistas, a Encíclica (Laudato Si’ - Louvado sejas) do papa Francisco sobre a mudança climática defende solução utópica para a questão”. Para o Jornal, solução utópica é solução impossível, distante e que não trata da realidade. Em outras palavras, é solução ingênua. Esse é o pensamento daqueles que (como a Folha de S. Paulo) acham que o capitalismo - com as adaptações conjunturais necessárias - é o “fim da história”.
            Ao contrário, aqueles que (como o papa Francisco) acreditam que o capitalismo - que é “um sistema econômico iníquo” (Documento de Aparecida - DA, 385) - pode ser superado, têm um sonho, uma utopia, um ideal, que - mesmo no meio de muitas ambiguidades e contradições - é um projeto possível de ser realizado na história. É o projeto do “bem-viver”, que - à luz da fé - é o Reino de Deus acontecendo na vida do ser humano e do mundo.
            O Editorial diz ainda: “a ênfase moral da Encíclica lhe confere por vezes um tom anticapitalista”. Eu afirmo: não só por vezes, mas sempre. A Encíclica é anticapitalista e defende um modelo de sociedade estruturalmente novo.
             A Folha de S. Paulo - querendo justificar a tese que a solução apresentada por Francisco é utópica (ou seja, impossível e ingênua) - coloca como título do Editorial: “Ecologia da libertação”. Com esse título, porém, o Jornal (mesmo que não tenha sido intencionalmente) acaba reconhecendo - dando-lhe um destaque especial - que a Encíclica é, pelo seu conteúdo, “ecologia da libertação”.
O método ver (analisar), julgar (interpretar) e agir (libertar), usado pela Encíclica, confirma isso. É o método da Filosofia e da Teologia da Libertação, e também de muitos documentos da Igreja latino-americana e caribenha. Ele é constituído de três momentos interligados e interdependentes. O ver suscita o julgar, o julgar suscita o agir e, por sua vez, o agir suscita novamente o ver e assim por diante num processo de continuo aprofundamento e crescimento vivencial.
Nos cristãos e cristãs, o método ver, julgar e agir suscita também a necessidade de, periodicamente (sobretudo aos domingos), celebrar a vida no mistério pascal de Cristo  e, ao mesmo tempo, o mistério pascal de Cristo na vida.
            No primeiro momento (o ver, o analisar), a Encíclica começa vendo e analisando “o que está acontecendo com nossa casa”: a poluição e as mudanças climáticas (resíduos e cultura do descarte, o clima como bem comum), a questão da água, a perda da biodiversidade, a deterioração da qualidade de vida humana e a degradação social, a desigualdade planetária, a fraqueza das reações, a diversidade de opiniões (cf. cap. I).
“As reflexões teológicas ou filosóficas sobre a situação da humanidade e do mundo podem soar como uma mensagem repetida e vazia, se não forem apresentadas novamente a partir de um confronto com o contexto atual no que este tem de inédito para a história da humanidade. Por isso, antes de reconhecer como a fé traz novas motivações e exigências face ao mundo de que fazemos parte, proponho que nos detenhamos brevemente a considerar o que está acontecendo com nossa casa comum” (17).
            No segundo momento (o julgar, o interpretar), a Encíclica apresenta “o Evangelho da criação”: a luz que a Fé oferece (e que ilumina a razão humana em sua capacidade de julgar a realidade), a sabedoria das narrações bíblicas, o mistério do universo, a mensagem de cada criatura na harmonia de toda criação, a comunhão universal (cf. cap. II).
“Se tivermos presente a complexidade da crise ecológica e suas múltiplas causas, devemos reconhecer que as soluções não podem vir de uma única maneira de interpretar e transformar a realidade. É necessário recorrer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida interior e à espiritualidade. Se queremos, de verdade, construir uma ecologia que nos permita reparar tudo o que temos destruído, então nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada, nem sequer a sabedoria religiosa com sua linguagem própria”.
Diz ainda Francisco: “a Igreja Católica está aberta ao diálogo com o pensamento filosófico, o que lhe permite produzir várias sínteses entre fé e razão”. E ainda: “no que diz respeito às questões sociais, pode-se constatar isto mesmo no desenvolvimento da doutrina social da Igreja, chamada a enriquecer-se cada vez mais a partir dos novos desafios”.
            Afirma, pois: “embora a Encíclica se abra a um diálogo com todos para, juntos, buscarmos caminhos de libertação, quero mostrar desde o início como as convicções da fé oferecem aos cristãos - e, em parte, também a outros crentes - motivações para cuidar da natureza e dos irmãos e irmãs mais frágeis” (63). È justamente por buscar, em diálogo com todos e à luz da fé, “caminhos de libertação” que a Encíclica é ecologia da libertação. Ora, sendo ecologia da libertação, ela é também filosofia e teologia da libertação, e - em especial - ética filosófica e teológica da libertação.
            O segundo momento nos permite discernir e entender “a raiz humana da crise ecológica”: a tecnologia (criatividade e poder), a globalização do paradigma tecnocrático, a crise do antropocentrismo moderno e suas consequências, o relativismo prático, a necessidade de defender o trabalho, a inovação biológica a partir da pesquisa” (cf. cap. III).
O segundo momento nos permite também defender e construir “uma ecologia integral”: a ecologia ambiental, econômica e social, a ecologia cultural, a ecologia da vida cotidiana, o princípio do bem comum, a justiça intergeracional (cf. cap. IV).
            No terceiro momento (o agir, o libertar), a Encíclica aponta “algumas linhas de orientação e ação”: o diálogo sobre o meio ambiente na política internacional, o diálogo para novas políticas nacionais e locais, o diálogo e a transparência nos processos decisórios, a política e a economia em diálogo para a plenitude humana, as religiões no diálogo com as ciências (cf. cap. V).
            “Procurei examinar a atual situação da humanidade, tanto nas brechas do planeta que habitamos, como nas causas mais profundamente humanas da degradação ambiental. Embora esta contemplação da realidade em si mesma já nos indique a necessidade de uma mudança de rumo e sugira algumas ações, procurarei agora delinear grandes percursos de diálogo que nos ajudem a sair da espiral de autodestruição onde estamos afundando” (163).
            Diz ainda o papa Francisco: “desde meados do século passado e superando muitas dificuldades, foi se consolidando a tendência de considerar o planeta como pátria e a humanidade como povo que habita uma casa comum”. O Mundo interdependente “obriga-nos a pensar num único mundo, num projeto comum” (164).
            Sempre no terceiro momento, a Encíclica desperta também para a vivência da “educação e espiritualidade ecológicas”: um outro estilo de vida, a aliança entre a humanidade e o ambiente, a conversão ecológica, a alegria e a paz, o amor civil e político, os sinais sacramentais e o descanso celebrativo, a Trindade e a relação entre as criaturas, a Rainha de toda a criação, para além do Sol (cf. cap. VI).

Termino com parte da “Oração pela nossa terra” de Francisco: “ó Deus dos pobres, ajudai-nos a resgatar os abandonados e esquecidos desta terra (...). Curai a nossa vida, para que protejamos o mundo e não o depredemos (...). Ensinai-nos a descobrir o valor de cada coisa, a contemplar com encanto, a reconhecer que estamos profundamente unidos com todas as criaturas no nosso caminho para a vossa luz infinita. Obrigado porque estais conosco todos os dias. Sustentai-nos, por favor, na nossa luta pela justiça, pelo amor e pela paz”. 





Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
                                                                              Goiânia, 01 de julho de 2015

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