sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Discurso de Francisco aos Movimentos Populares - Os pobres querem mudar o sistema -

             
              Neste 7º artigo sobre o Encontro Mundial de Movimentos Populares, destaco o 6º e último ponto marcante do Discurso do Papa Francisco aos Movimentos Populares: os pobres querem mudar o sistema.
            Chegando ao final do seu Discurso, o Papa lembra: “falamos da terra, do teto, do trabalho... falamos de trabalhar pela paz e cuidar da natureza...”. Em tom de desabafo, ele pergunta: “mas por que, em vez disso, nos acostumamos a ver como se destrói o trabalho digno, se despejam tantas famílias, se expulsam os camponeses, se faz a guerra e se abusa da natureza?”. E responde: “porque, nesse sistema, tirou-se o homem, a pessoa humana, do centro, e substituiu-se por outra coisa. Porque se presta um culto idólatra ao dinheiro. Porque se globalizou a indiferença!. Se globalizou a indiferença: a mim - pergunta novamente - o que me importa o que acontece com os outros, se eu consigo defender o que é meu?”. E, mais uma vez, responde: “porque o mundo se esqueceu de Deus, que é Pai; tornou-se um órfão, porque deixou Deus de lado”.
            Retomando o que foi falado no Encontro, Francisco afirma: “alguns de vocês disseram: esse sistema não se aguenta mais. Temos que mudá-lo, temos que voltar a colocar a dignidade humana no centro, e que, sobre esse alicerce, se construam as estruturas sociais alternativas de que precisamos”.
             Como um irmão entre outros irmãos e irmãs, ele indica o caminho: “é preciso fazer isso com coragem, mas também com inteligência. Com tenacidade, mas sem fanatismo. Com paixão, mas sem violência. E entre todos, enfrentando os conflitos sem ficar presos neles, buscando sempre resolver as tensões para alcançar um plano superior de unidade, de paz e de justiça”.
            Dirigindo-se aos cristãos e cristãs, o Papa lembra que eles e elas têm na Palavra de Deus um programa de ação. “Os cristãos têm algo muito lindo, um guia de ação, um programa, poderíamos dizer, revolucionário. Recomendo-lhes vivamente que o leiam, que leiam as Bem-aventuranças que estão no capítulo 5 de São Mateus e 6 de São Lucas (cf. Mt 5, 3ss e Lc 6, 20ss) e que leiam a passagem de Mateus 25. Eu disse isso aos jovens no Rio de Janeiro. Com essas duas coisas, vocês têm o programa de ação”.
            Reconhecendo as diferenças existentes entre os participantes do Encontro como um grande valor e uma riqueza, ele diz: “sei que entre vocês há pessoas de distintas religiões, profissões, ideias, culturas, países, continentes. Hoje, estão praticando aqui a cultura do encontro, tão diferente da xenofobia, da discriminação e da intolerância que vemos tantas vezes. Entre os excluídos, dá-se esse encontro de culturas em que o conjunto não anula a particularidade. Por isso, eu gosto da imagem do poliedro, uma figura geométrica com muitas faces. O poliedro reflete a confluência de todas as particularidades que, nele, conservam a originalidade. Nada se elimina, nada se destrói, nada se domina, tudo se integra. Hoje, vocês também estão buscando essa síntese entre o local e o global. Sei que trabalham dia após dia no imediato, no concreto, no seu território, seu bairro, seu lugar de trabalho: convido-os também a continuarem buscando essa perspectiva mais ampla, que nossos sonhos voem alto e abranjam tudo”.
            Francisco demostra estar por dentro da realidade dos Movimentos Populares e, com simplicidade fraterna, apresenta algumas sugestões. “Assim, parece-me importante essa proposta que alguns me compartilharam de que esses movimentos, essas experiências de solidariedade que crescem a partir de baixo, a partir do subsolo do planeta, confluam, estejam mais coordenadas, vão se encontrando, como vocês fizeram nestes dias. Atenção, nunca é bom engessar o movimento em estruturas rígidas. Por isso, eu disse encontrar-se. Também não é bom tentar absorvê-lo, dirigi-lo ou dominá-lo; movimentos livres têm a sua dinâmica própria, devemos, sim, tentar caminhar juntos. Estamos neste salão, que é o salão do Sínodo velho. Agora há um novo. E sínodo significa precisamente "caminhar juntos": que esse seja um símbolo do processo que vocês começaram e estão levando adiante”
Lembra, pois, que “os Movimentos Populares expressam a necessidade urgente de revitalizar as nossas democracias, tantas vezes sequestradas por inúmeros fatores. É impossível imaginar um futuro para a sociedade sem a participação protagônica das grandes maiorias, e esse protagonismo vai além dos procedimentos lógicos da democracia formal. A perspectiva de um mundo da paz e da justiça duradouras nos exige superar o assistencialismo paternalista, nos exige criar novas formas de participação que incluam os Movimentos Populares e anime as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com essa torrente de energia moral que surge da incorporação dos excluídos na construção do destino comum. E isso com ânimo construtivo, sem ressentimento, com amor”.
Como um irmão próximo e solidário, o Papa conclui seu Discurso com palavras carinhosas, que envolvem e comprometem a todos e a todas. “Eu os acompanho de coração nesse caminho. Digamos juntos com o coração: nenhuma família sem moradia, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá. Queridos irmãos e irmãs: continuem com a sua luta, faz bem a todos nós. É como uma bênção de humanidade. Deixo-lhes de recordação, de presente e com a minha bênção, alguns rosários que foram fabricados por artesãos, coletores de materiais recicláveis (papeleiros) e trabalhadores da economia popular da América Latina”. Quanta humanidade e quanta sabedoria - que certamente vem do Espírito Santo - nas palavras do nosso irmão Francisco!
Vamos, pois, apoiar e fortalecer a “economia popular” (economia solidária), que abre caminhos para uma mudança política estrutural e para a construção da sociedade do “bem-viver” e do “bem-conviver”, que - à luz da fé cristã - é o Reino de Deus acontecendo na história humana e cósmica.
Enfim, o Papa promete orações e agradece a todos e a todas. “E nesse acompanhamento eu rezo por vocês, rezo com vocês e quero pedir ao nosso Pai Deus que os acompanhe e os abençoe, que os encha com o seu amor e os acompanhe no caminho, dando-lhes abundantemente essa força que nos mantém de pé: essa força é a esperança, a esperança que não desilude. Obrigado”.

O Discurso do nosso irmão Francisco aos Movimentos Populares é realmente um guia e, ao mesmo tempo, uma luz para as Pastorais Sociais e Ambientais da Igreja, hoje. Ele é, podemos dizer, sua “Carta Magna”. Ouçamos o que o Espírito diz às Igrejas! (cf. Ap 2, 7).




Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 15 de janeiro de 2015

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Discurso de Francisco aos Movimentos Populares - Em defesa da Paz e da Ecologia –

Neste 6º artigo sobre o Encontro Mundial de Movimentos Populares, destaco o 5º ponto marcante do Discurso do Papa Francisco aos Movimentos Populares: em defesa da Paz e da Ecologia.
            Depois de falar da terra, da moradia e do trabalho como direitos sagrados, o Papa diz: “neste encontro, também falaram da Paz e da Ecologia”. Com muita objetividade, ele afirma: “é lógico: não pode haver terra, não pode haver teto, não pode haver trabalho se não temos paz e se destruímos o planeta”.
            Mostra, pois, a necessidade que todos e todas temos hoje de debater esses assuntos. “São temas tão importantes que os povos e suas organizações de base não podem deixar de debater. Não podem deixar só nas mãos dos dirigentes políticos. Todos os povos da terra, todos os homens e mulheres de boa vontade têm que levantar a voz em defesa desses dois dons preciosos: a paz e a natureza. A irmã mãe Terra, como chamava São Francisco de Assis”.
            Com realismo e ao mesmo tempo com preocupação, que mostra sua profunda solidariedade, Francisco declara: “há pouco tempo, eu disse, e repito, que estamos vivendo a terceira guerra mundial, mas em cotas. Há sistemas econômicos que, para sobreviver, devem fazer a guerra. Então, fabricam e vendem armas e, com isso, os balanços da economia que sacrificam o homem aos pés do ídolo do dinheiro, obviamente, ficam saneados. E não se pensa nas crianças famintas nos campos de refugiados, não se pensa nos deslocamentos forçados, não se pensa nas moradias destruídas, não se pensa, desde já, em tantas vidas ceifadas. Quanto sofrimento, quanta destruição, quanta dor!”.
            Fraternalmente e com muita ternura, o Papa diz: “hoje, queridos irmãos e irmãs, levanta-se em todas as partes da terra, em todos os povos, em cada coração e nos Movimentos Populares, o grito da paz: nunca mais a guerra!”.
            Falando da necessidade urgente de cuidar da natureza, o Papa denuncia: “um sistema econômico centrado no deus dinheiro também precisa saquear a natureza, saquear a natureza para sustentar o ritmo frenético de consumo que lhe é inerente. As mudanças climáticas, a perda da biodiversidade, o desmatamento já estão mostrando seus efeitos devastadores nos grandes cataclismos que vemos, e os que mais sofrem são vocês, os humildes, os que vivem perto das costas em moradias precárias, ou que são tão vulneráveis economicamente que, diante de um desastre natural, perdem tudo”.
            Enfim, lembra com confiança o plano de Deus sobre a Terra e o papel do ser humano em relação a ela. “Irmãos e irmãs, a criação não é uma propriedade da qual podemos dispor ao nosso gosto; muito menos é uma propriedade só de alguns, de poucos: a criação é um dom, é um presente, um dom maravilhoso que Deus nos deu para que cuidemos dele e o utilizemos em benefício de todos, sempre com respeito e gratidão”.
            Numa atitude de sincera humildade e sem nenhuma demagogia, Francisco agradece as preocupações e contribuições dos Movimentos Populares e assegura que elas estarão presentes na Encíclica sobre a Ecologia que está preparando. “Tenham a certeza de que as suas preocupações estarão presentes nela. Agradeço-lhes, aproveito para agradecer-lhes pela Carta que os integrantes da Via Campesina, da Federação dos Coletores de Materiais Recicláveis (Papeleiros) e tantos outros irmãos me fizeram chegar sobre o assunto”.
Ouçamos as palavras do nosso irmão, o Papa Francisco! Elas renovam a nossa esperança e fortalecem o nosso compromisso - que é o amor acontecendo na história humana e cósmica - com a causa da Paz e da Ecologia, fruto da Justiça.
“Como são numerosas tuas obras, Senhor! A todas fizeste com sabedoria. A Terra está repleta das tuas criaturas” (Salmo 104, 24).

            “Vou escutar o que diz o Senhor: Deus anuncia a Paz ao seu povo e seus fiéis, e aos que se convertem de coração. A salvação está próxima dos que o respeitam, e a glória habitará em nossa Terra. Amor e Fidelidade se encontram, Justiça e Paz se abraçam. A Fidelidade brotará da Terra, e a Justiça se inclinará do Céu. O Senhor nos dará a chuva, e nossa Terra dará seu fruto. A Justiça caminhará à frente dele, a salvação seguirá os seus passos” (ib. 85, 9-14).


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 08 de janeiro de 2015

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Discurso de Francisco aos Movimentos Populares - Trabalho é um direito sagrado –



          Neste 5º artigo sobre o Encontro Mundial de Movimentos Populares, destaco o 4º ponto marcante do Discurso do Papa Francisco aos Movimentos Populares: trabalho é um direito sagrado.
            Depois de falar da terra e da moradia como direitos sagrados, o Papa diz: “terceiro, trabalho. Não existe pior pobreza material - urge-me enfatizar isto -, não existe pior pobreza material do que a que não permite ganhar o pão e priva da dignidade do trabalho”.
Com muita objetividade e clareza, Francisco descreve a realidade do trabalho na sociedade atual. “O desemprego dos jovens, a informalidade e a falta de direitos trabalhistas não são inevitáveis, são o resultado de uma prévia opção social, de um sistema econômico que coloca o lucro acima do homem. Os ganhos econômicos, acima da humanidade ou acima do homem, são efeitos de uma cultura do descarte que considera o ser humano em si mesmo como um bem de consumo, que pode ser usado e depois jogado fora”.   
E ainda: “hoje, ao fenômeno da exploração e da opressão, soma-se uma nova dimensão, um matiz gráfico e duro da injustiça social; os que não podem ser integrados, os excluídos são resíduos, ‘sobrantes’. Essa é a cultura do descarte, e sobre isso gostaria de ampliar algo que não tenho por escrito, mas que lembrei agora. Isso acontece quando, no centro de um sistema econômico, está o deus dinheiro e não o homem, a pessoa humana. Sim, no centro de todo sistema social ou econômico, tem que estar a pessoa, imagem de Deus, criada para dar o nome às coisas do universo. Quando a pessoa é deslocada e vem o deus dinheiro, acontece essa inversão de valores”.
São palavras que nos questionam a todos e a todas. Não é o dinheiro que está a serviço da pessoa, mas a pessoa que está a serviço do dinheiro. E é nessa idolatria do dinheiro que consiste a iniquidade do sistema econômico, a injustiça estrutural ou o pecado estrutural.
Sem meias palavras e como verdadeiro profeta, o Papa denuncia as graves consequências desse sistema econômico que descarta as pessoas. A respeito do descarte e retomando o que já disse na Exortação Apostólica “A alegria do Evangelho” (EG), Francisco afirma: “temos que estar um pouco atentos ao que acontece em nossa sociedade”.
Enumera, pois, com realismo e ao mesmo tempo com preocupação, os diversos tipos de descarte que acontecem hoje em dia. “Descartam-se as crianças porque a taxa de natalidade em muitos países da terra diminuiu, ou descartam-se as crianças porque não se tem alimentação, ou porque são mortas antes de nascerem, descarte de crianças. Descartam-se os idosos, porque, bom, não servem, não produzem. Nem crianças nem idosos produzem. Então, sistemas mais ou menos sofisticados os vão abandonando lentamente”.
Com muita dor no coração, Francisco afirma: “e agora, como é necessário, nesta crise, recuperar um certo equilíbrio, estamos assistindo a um terceiro descarte muito doloroso, o descarte dos jovens. Milhões de jovens. Eu não quero dizer o dado, porque não o sei exatamente, e o que eu li parece um pouco exagerado, mas milhões de jovens descartados do trabalho, desempregados”.
Depois de lembrar que - segundo as estatísticas - nos países da Europa o desemprego de jovens chega a 40%, 50% e até 60%, o Papa reconhece: “são dados claros, ou seja, do descarte”. E conclui com um desabafo: “descarte de crianças, descarte de idosos, que não produzem, e temos que sacrificar uma geração de jovens, descarte de jovens, para poder manter e reequilibrar um sistema em cujo centro está o deus dinheiro, e não a pessoa humana”.
Enfim - agradecido aos trabalhadores e trabalhadoras excluídos e excluídas por sua persistência e perseverança - deixa-nos uma mensagem de esperança, mostrando que acredita na força dos Movimentos Populares. “Apesar disso, a essa cultura de descarte, a essa cultura dos sobrantes, muitos de vocês, trabalhadores excluídos, sobrantes para esse sistema, foram inventando o seu próprio trabalho com tudo aquilo que parecia não servir mais para nada... Vocês, com a artesanalidade que Deus lhes deu, com a sua busca, com a sua solidariedade, com o seu trabalho comunitário, com a sua economia popular, conseguiram e estão conseguindo... E, deixem-me dizer, isso, além de trabalho, é poesia. Obrigado”.
Francisco termina reafirmando os direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras. “Desde já, todo trabalhador, esteja ou não no sistema formal do trabalho assalariado, tem direito a uma remuneração digna, à segurança social e a uma cobertura de aposentadoria. Aqui há coletores de materiais recicláveis, recicladores, vendedores ambulantes, costureiros, artesãos, pescadores, camponeses, construtores, mineiros, operários de empresas recuperadas, todos os tipos de cooperativados e trabalhadores de ofícios populares que estão excluídos dos direitos trabalhistas, aos quais é negada a possibilidade de se sindicalizar, que não têm uma renda adequada e estável. Hoje, quero unir a minha voz à sua e acompanhá-los na sua luta”.
Diante de uma economia que mata (cf. EG, 53) - e mata silenciosamente - dentro de uma legalidade hipócrita, como se fosse a coisa mais natural do mundo, ouçamos a voz do Papa. Suas palavras proféticas fortalecem-nos na caminhada.
Como faz Francisco, confiemos na força libertadora e transformadora dos Movimentos Populares. Coloquemos os espaços de nossas Comunidades e Paróquias (salas, salões, Igrejas) a serviço de sua organização. Sejamos próximos e solidários para com eles. Enfim, participemos - como cidadãos e cidadãs, como cristãos e cristãs - de suas lutas por um outro mundo possível e necessário.

Para os e as que acreditam na mudança, a esperança nunca morre! Que o ano de 2015 traga a todos e todas nós muitas alegrias e muitas vitórias!




Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 01 de janeiro de 2015

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Discurso de Francisco aos Movimentos Populares - Moradia é um direito sagrado -


         Neste 4º artigo sobre o Encontro Mundial de Movimentos Populares destaco o 3º ponto marcante do Discurso do Papa Francisco: moradia é um direito sagrado.
            Enfaticamente e de maneira muito firme, o Papa - depois de falar que a Terra é um direito sagrado - afirma: “em segundo lugar, teto. Eu disse e repito: uma casa para cada família. Nunca se deve esquecer que Jesus nasceu em um estábulo porque na hospedagem não havia lugar, e que a sua família teve de abandonar o seu lar e fugir para o Egito, perseguida por Herodes”.
            Com sentimentos de compaixão, ou seja, de partilha do sofrimento do povo, ele diz: “hoje há tantas famílias sem moradia, ou porque nunca a tiveram, ou porque a perderam por diferentes motivos. Família e moradia andam de mãos dadas”.
Francisco destaca, pois, a importância da dimensão comunitária da família. “Um teto, para que seja um lar, tem uma dimensão comunitária: e é o bairro... e é precisamente no bairro onde se começa a construir essa grande família da humanidade, a partir do mais imediato, a partir da convivência com os vizinhos”. É o oposto do individualismo, que leva ao isolamento.
O Papa, com tristeza e ao mesmo tempo com ironia, desmascara a hipocrisia da sociedade e constata: “hoje, vivemos em imensas cidades que se mostram modernas, orgulhosas e até vaidosas. Cidades que oferecem inúmeros prazeres e bem-estar para uma minoria feliz... mas nega-se o teto a milhares de vizinhos e irmãos nossos, inclusive crianças, e eles são chamados, elegantemente, de ‘pessoas em situação de rua’”.
E acrescenta: “é curioso como no mundo das injustiças abundam os eufemismos. Não se dizem as palavras com toda a clareza, e busca-se a realidade no eufemismo. Uma pessoa, uma pessoa segregada, uma pessoa apartada, uma pessoa que está sofrendo a miséria, a fome, é uma pessoa em situação de rua: palavra elegante, não? Vocês, busquem sempre, talvez me equivoque em algum, mas, em geral, por trás de um eufemismo há um crime”. É uma crítica contundente à sociedade capitalista, estruturalmente desumana e antiética.
Como verdadeiro profeta do nosso tempo, Francisco denuncia a crueldade - que é fruto da ganância pelo deus dinheiro - das grandes cidades.
“Vivemos em cidades que constroem torres, centros comerciais, fazem negócios imobiliários... mas abandonam uma parte de si nas margens, nas periferias. Como dói escutar que as ocupações pobres são marginalizadas ou, pior, quer-se erradicá-las! São cruéis as imagens dos despejos forçados, dos tratores derrubando barracos, imagens tão parecidas às da guerra. E isso se vê hoje”.
As imagens do bárbaro despejo da ocupação “Sonho Real” do Parque Oeste Industrial, em Goiânia, são um exemplo paradigmático dessa crueldade. Realmente, não dá para entender como um governo - que está sempre a serviço dos poderosos - pode ser tão cruel para com o povo.
Pela sua experiência existencial (que é também a minha de muitos anos), que brota da proximidade e sintonia de vida com os pobres, Francisco - com perspicácia - evidencia os valores profundamente humanos que existem nos bairros populares e nas ocupações. Os bairros populares são os verdadeiros bairros “nobres”, que não se definem pelo poder econômico, como hipocritamente se costuma afirmar, mesmo em ambientes ditos “religiosos”.
“Vocês sabem que, nos bairros populares, onde muitos de vocês vivem, subsistem valores já esquecidos nos centros enriquecidos. As ocupações urbanas estão abençoadas com uma rica cultura popular: ali, o espaço público não é um mero lugar de trânsito, mas uma extensão do próprio lar, um lugar para gerar vínculos com os vizinhos. Como são belas as cidades que superam a desconfiança doentia e integram os diferentes e que fazem dessa integração um novo fator de desenvolvimento. Como são lindas as cidades que, ainda no seu desenho arquitetônico, estão cheias de espaços que conectam, relacionam, favorecem o reconhecimento do outro”.
Enfim, o Papa faz um caloroso apelo: “por isso, nem expulsão, nem marginalização: é preciso seguir na linha da integração urbana. Essa palavra deve substituir completamente a palavra expulsão, desde já, mas também esses projetos que pretendem envernizar os bairros populares, ajeitar as periferias e maquiar as feridas sociais, em vez de curá-las, promovendo uma integração autêntica e respeitosa. Há uma espécie de arquitetura de maquiagem, não? E vai por aí”.
Diz ainda Francisco: “continuemos trabalhando para que todas as famílias tenham uma moradia e para que todos os bairros tenham uma infraestrutura adequada (esgoto, luz, gás, asfalto e, continuo, escolas, hospitais ou salas de primeiros socorros, clube de esportes) e todas as coisas que criam vínculos e que unem, acesso à saúde - já disse - e à educação e à segurança”. Lutemos pelo direito sagrado à moradia!
Que o Natal 2014 traga a todos e a todas nós muita felicidade e nos comprometa sempre mais com a Justiça e a Paz e os Direitos Humanos, que - por serem humanos - são também divinos!  

Leiam na internet - como minha mensagem de Natal - os artigos: “Jesus, ‘morador de rua’ em Belém” e “Jesus, o ‘sem teto’ de Belém”.


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 24 de dezembro de 2014  

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Gratificação “imoral, indecente e antiética”



“Ai dos juízes que fazem leis injustas” (Is 10,1)

            Sábado, dia 13, o Jornal O Popular publicou a reportagem: “Auxílio-moradia. Juízes recebem retroativo a 2008”. Lendo a notícia, o sangue ferveu e a indignação tomou conta do meu ser. Quando já estava me refazendo do susto, terça-feira, dia 16, no mesmo Jornal, saiu outra reportagem: “Auxílio-moradia. Promotores também vão receber. Categoria começa a se mobilizar para garantir pagamento retroativo a 2008 até para os aposentados”. O sangue ferveu novamente e a indignação voltou. Parece uma competição entre juízes e promotores para ver quem fica em primeiro lugar na ganância, no roubo e na imoralidade pública. É de chorar! É realmente uma sem-vergonhice que não tem limites!
 Todas as pessoas - penso eu - que tomaram conhecimento das reportagens e que têm um mínimo de consciência moral, devem ter tido a mesma reação que eu tive. Pergunto: como é possível que juízes e promotores aceitem, com tanta cara-de-pau, tamanha imoralidade? Como é possível confiarmos em juízes e promotores, que não têm nenhuma sensibilidade humana e nenhuma responsabilidade social?
            Felizmente, ainda existem algumas exceções que são motivo de esperança. Em Goiás, apenas um desembargador do TJ “negou-se a receber o benefício, de acordo com a administração do Tribunal, que não quis divulgar o nome dele”. Desembargador, sua atitude é exemplar, divulgue o seu nome e defenda a justiça com orgulho e de cabeça erguida! Não tenha medo! A verdade deve ser proclamada de cima dos telhados e em alta voz!
            Outro caso é o do juiz do Trabalho Celso Fernando Karsburg, de Santa Cruz do Sul (RS), que merece o nosso reconhecimento pelo testemunho que nos deu. Ele negou-se a receber o auxílio-moradia por considerar a gratificação “imoral, indecente e antiética” (palavras que tomo emprestadas como título do meu artigo). A atitude dele ganhou repercussão nacional. Ah, se todos os juízes fossem como os dois citados!
Vejam, pois, o que acontece com os juízes que querem ser honestos. “Magistrados que recusam o benefício correm o risco de serem malvistos pelos colegas de toga”. Que absurdo! Para os juízes que defendem - sem nenhum escrúpulo de consciência - tamanha maracutaia, a atitude dos que recusam o auxílio-moradia é uma falta de “solidariedade de classe” incompreensível.
            De acordo com a reportagem de sábado, dia 13, “o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO) começou a pagar, no mês passado, um total de R$ 43 milhões de auxílio-moradia a magistrados com mais de cinco anos de carreira. Os valores e a quantidade de parcelas pagas a juízes e desembargadores são distintos no montante. Além da quantia retroativa a 2008, eles continuarão recebendo todo mês o valor do benefício reajustado (R$ 4.377,73), o que provocará impacto anual de mais R$ 15 milhões nos cofres públicos”. É um verdadeiro assalto ao dinheiro do povo e um roubo legalizado.
Como se fosse a coisa mais natural do mundo, “o presidente do TJ-GO, desembargador Ney Teles de Paula, autorizou o pagamento do retroativo em 29 de outubro, atendendo a um pedido da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego). O despacho de Ney Teles não especifica, no entanto, a quantidade de beneficiados que receberão as parcelas retroativas. O desembargador baseou-se em liminar do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), e em resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que, em 7 de outubro, definiu o teto do benefício, com pagamento retroativo a 15 de setembro deste ano”.
Em Goiás, a imoralidade do auxílio-moradia adquire proporções ainda maiores. Reparem: “juízes e desembargadores do Poder Judiciário do Estado de Goiás já recebiam o benefício no valor de R$ 2,3 mil - o equivalente a 10% do subsídio - desde janeiro de 2013, com base na Lei estadual 17.962/13. Uma resolução da Corte Especial do Tribunal de Justiça de Goiás regulamentou a norma e previu a retroatividade pelos 60 meses anteriores, o que, na prática, alcança o ano de 2008”. Que descaramento!
De acordo com a reportagem de terça-feira, dia 16, “o Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) começa a se articular para conceder auxílio-moradia retroativo a 2008 a promotores e procuradores de Justiça, nos mesmos moldes do que já passou a ser pago, em novembro, a juízes e desembargadores do Poder Judiciário Estadual. Representantes do órgão ministerial sustentam que também têm direito ao efeito retroativo, baseando-se no princípio da paridade. A categoria quer que o benefício também seja pago aos membros aposentados, assim como já pediram os magistrados, e a casais”. A reivindicação dos promotores tem o apoio do procurador-geral de Justiça de Goiás, Lauro Machado.
O presidente da Associação Goiana do Ministério Público (AGMP), o procurador de Justiça Benedito Torres Neto, sustenta que “se é paga (a retroatividade a 2008) no Judiciário, pelo princípio da paridade, deve ser paga no Ministério Público”.
Em se tratando dos seus interesses, os juízes e promotores são realmente especialistas na utilização de artifícios jurídicos, que justifiquem legalmente a imoralidade. Eles querem “parecer” (não ser) pessoas de bem.
Uma reportagem de O Popular, de 20 de outubro passado, mostra que os cofres públicos terão uma baixa anual de quase R$ 50 milhões para pagamento de auxílio-moradia a 904 magistrados, promotores e procuradores de Justiça que atuam em Goiás, nas esferas estadual e federal.
É uma afronta aos trabalhadores, sobretudo aos que ganham o salário mínimo, que são a maioria. É uma injustiça que clama diante de Deus.
Termino fazendo uma advertência: lembrem os juízes e os promotores que se o dinheiro “roubado” dos cofres públicos (mesmo legalmente) - que é dinheiro do povo, principalmente dos pobres - não for devolvido, Deus fará justiça. Aguardem!
Leia também - na internet - o artigo “Auxílio-moradia dos juízes: imoralidade pública legalizada”, de 17 de outubro deste ano.
Como não podia ficar calado diante de uma injustiça tão gritante, retomarei nos próximos artigos as reflexões sobre os pontos marcantes do Discurso de Francisco no Encontro Mundial de Movimentos Populares, já iniciadas nos anteriores.

Em tempo: o desembargador de Goiás, que não aceitou o auxílio-moradia, é Alan Sebastião de Sena, que hoje - quinta-feira, dia 18 - concedeu uma entrevista ao O Popular, na qual ele mostra sua coerência de vida, afirmando:não é nenhum desejo de ser moralista, apenas ser coerente com uma história de vida”. É essa a verdadeira moral (não moralismo), a verdadeira ética!





Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br
                                                                                       Goiânia, 18 de dezembro de 2014


quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Discurso de Francisco aos Movimentos Populares - Terra é um direito sagrado -



        No Encontro Mundial de Movimentos Populares, Francisco apresenta-se como um irmão entre irmãos e irmãs. Com extraordinária sensibilidade humana, identifica-se com o Encontro. Em seu discurso, chama o Encontro de “nosso”. Como isso é bonito e significativo na sociedade “classista” em que vivemos! “Este Encontro nosso - diz o Papa - responde a um anseio muito concreto, algo que qualquer pai, qualquer mãe quer para os seus filhos; um anseio que deveria estar ao alcance de todos, mas que hoje vemos com tristeza cada vez mais longe da maioria: terra, teto e trabalho”.
Com muita clareza, Francisco afirma: “não se entende que o amor pelos pobres está no centro do Evangelho. Terra, teto e trabalho - isso pelo qual vocês lutam - são direitos sagrados. Reivindicar isso não é nada raro, é a doutrina social da Igreja”.
Terra, teto e trabalho foram escolhidos pelos próprios Movimentos Populares como tema do Encontro e o Papa, em seu discurso, detém-se sobre cada um deles.
            Neste 3º artigo sobre o Encontro Mundial de Movimentos Populares destaco o segundo ponto marcante do Discurso do Papa Francisco: terra é um direito sagrado.
            Ante de tudo, Francisco lembra que, “no início da criação, Deus criou o homem, guardião de sua obra, encarregando-o de cultivá-la e protegê-la”. Com muito carinho, ele afirma: “vejo que aqui há dezenas de camponeses e camponesas, e quero felicitá-los por cuidar da terra, por cultivá-la e por fazer isso em comunidade”.
            O Papa manifesta, pois, sua preocupação, dizendo: “preocupa-me a erradicação de tantos irmãos camponeses que sofrem o desenraizamento, e não por guerras e desastres naturais”. E profeticamente denuncia: “a apropriação de terras, o desmatamento, a apropriação da água, os agrotóxicos inadequados são alguns dos males que arrancam o homem de sua terra natal. Essa dolorosa separação, não é só física, mas também existencial e espiritual, porque há uma relação com a terra que está pondo a comunidade rural e seu modo de vida peculiar em notória decadência e até em risco de extinção”.
Ah, se os governantes entendessem a mensagem do nosso irmão Francisco! Infelizmente, a ganância pelo deus dinheiro obceca os latifundiários, que se consideram donos absolutos da terra, muitas vezes com a conivência criminosa do Poder Público.
            Francisco continua denunciando: “a outra dimensão do processo já global é a fome. Quando a especulação financeira condiciona o preço dos alimentos, tratando-os como qualquer mercadoria, milhões de pessoas sofrem e morrem de fome. Por outro lado, descartam-se toneladas de alimentos. Isso é um verdadeiro escândalo. A fome é criminosa, a alimentação é um direito inalienável”.
            A respeito da Reforma Agrária, o papa afirma: “eu sei que alguns de vocês reivindicam uma Reforma Agrária para solucionar alguns desses problemas, e deixe-me dizer-lhes que, em certos países - e cito aqui o Compêndio da Doutrina Social da Igreja - ‘a Reforma Agrária é, além de uma necessidade política, uma obrigação moral’ (CDSI, 300)”.
            E justamente por ser a Reforma Agrária uma necessidade política e uma obrigação moral, no Brasil e em muitos outros países, os Movimentos Populares do campo - com o apoio e a solidariedade dos Movimentos Populares da cidade - lutam e constroem a Reforma Agrária Popular. Ela “consiste na democratização da terra, prioriza a produção de alimentos saudáveis, através da agroecologia, procura desenvolver sistemas de agroindústrias no campo e sob o controle dos camponeses. Isso possibilita agregar valor aos produtos, gerando mais renda e novos postos de trabalho, sobretudo à juventude. Ainda, busca garantir condições e direitos básicos, como saúde, educação, acesso a tecnologias, cultura e lazer a toda a população do campo” (http://oglobo.globo.com/opiniao/reforma-agraria-popular-urgente-11565408).
             Ora, lutar e construir a Reforma Agrária Popular - democratizando o acesso à terra, à água e aos bens da natureza - significa também alcançar a Soberania Alimentar, que é “o direito de cada nação a manter e desenvolver os seus alimentos, tendo em conta a diversidade cultural e produtiva” (Via Campesina).
Enfim, o Papa Francisco conclui suas palavras sobre o direito sagrado à terra com um caloroso apelo aos Movimentos Populares: “por favor, continuem com a luta pela dignidade da família rural, pela água, pela vida e para que todos possam  se beneficiar dos frutos da terra”.   

Leiam também os artigos “O significado do Encontro Mundial de Movimentos Populares” e “Discurso de Francisco aos Movimentos Populares - Os pobres querem ser protagonistas”.


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br
                                                                                       Goiânia, 10 de dezembro de 2014 

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Discurso de Francisco aos Movimentos Populares - Os pobres querem ser protagonistas -



          Neste 2º artigo sobre o Encontro Mundial de Movimentos Populares destaco o primeiro ponto marcante do Discurso do Papa Francisco: os pobres querem ser protagonistas.
            Com muita clareza e objetividade, Francisco afirma: “os pobres não se contentam com promessas ilusórias, desculpas e pretextos”. São palavras que tocam numa questão-chave. A respeito dos pobres, o que mais existe são promessas ilusórias, desculpas e pretextos. Na sociedade capitalista os pobres não contam. É como se não existissem. São sobras descartáveis.
Diz ainda Francisco: “os pobres também não estão esperando de braços cruzados a ajuda de ONGs, planos assistenciais ou soluções que nunca chegam ou, se chegam, chegam de maneira que vão em uma direção ou de anestesiar ou de domesticar. Isso é meio perigoso”. Quantas vezes as obras sociais tratam os pobres como meros objetos de assistência ou ação caritativa! Quantas vezes elas servem para anestesiar ou domesticar os pobres! As palavras do nosso irmão Francisco nos questionam a todos e a todas.
Reduzir - como fazem muitas Igrejas (comunidades, paróquias dioceses) - a Pastoral Social ou as Pastorais Sociais a obras assistenciais é fugir do verdadeiro problema, que são as causas estruturais da pobreza. Fazer Pastoral Social ou Pastorais Sociais significa, sobretudo, ser solidários e solidárias com os Movimentos Populares e participar de suas lutas, que abrem caminhos para um novo modelo de sociedade, mais justo, mais igualitário e mais de acordo com o projeto de Jesus de Nazaré. Pensemos!
Dirigindo-se diretamente aos participantes do Encontro Mundial de Movimentos Populares, o Papa diz ainda: “vocês sentem que os pobres já não esperam e querem ser protagonistas, se organizam, estudam, trabalham, reivindicam e, sobretudo, praticam essa solidariedade tão especial que existe entre os que sofrem, entre os pobres, e que a nossa civilização parece ter esquecido ou, ao menos, tem muita vontade de esquecer”. Os pobres querem ser sujeitos e protagonistas de sua própria história e da história de toda a humanidade.
O papa nos explica, pois, em que consiste a verdadeira solidariedade. Ela “é muito mais que alguns atos de generosidade esporádicos. É pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade de vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. Também é lutar contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, de terra, de moradia, a negação dos direitos sociais e trabalhistas”. Será que nós - mesmo cristãos e cristãs - estamos lutando contra as causas estruturais da pobreza?
O papa, com extraordinário realismo, continua dizendo: “solidariedade é enfrentar os destrutivos efeitos do Império do dinheiro: os deslocamentos forçados, as migrações dolorosas, o tráfico de pessoas, a droga, a guerra, a violência e todas essas realidades que muitos de vocês sofrem e que todos somos chamados a transformar”.
Francisco conclui: “a solidariedade, entendida em seu sentido mais profundo, é um modo de fazer história e é isso que os Movimentos Populares fazem”. Notemos como o papa confia nos Movimentos Populares (que não são Movimentos Eclesiais) e como os valoriza!
Ora, se os Movimentos Populares praticam a solidariedade no seu sentido mais profundo, como um modo de fazer história - que é o oposto do modo de fazer história capitalista - por que será que muitas de nossas Igrejas (comunidades, paróquias, dioceses) são tão indiferentes e, muitas vezes, até resistentes em relação aos Movimentos Populares e à participação em suas lutas? A solidariedade não é o amor que acontece? E o mandamento do amor não é a mensagem central do Evangelho?
Sempre dirigindo-se aos participantes do Encontro, o papa de coração aberto reconhece: “vocês não trabalham com ideias, trabalham com realidades, como as que mencionei e muitas outras que me contaram. Vocês têm os pés no barro e as mãos na carne. Têm cheiro de bairro, de povo, de luta!”.
Francisco faz, pois, um veemente apelo: “queremos que se ouça a sua voz, que em geral se escuta pouco. Talvez porque incomoda, talvez porque o seu grito incomoda, talvez porque se tem medo da mudança que vocês reivindicam, mas sem ir às periferias, as boas propostas e projetos, que frequentemente ouvimos nas conferências internacionais, ficam no reino da ideia, é mero projeto”.
Enfim, Francisco, como um verdadeiro profeta atento aos desafios do mundo de hoje, de maneira contundente afirma: “não é possível abordar o escândalo da pobreza promovendo estratégias de contenção que unicamente tranquilizem e convertam os pobres em seres domesticados e inofensivos”. Num profundo desabafo, denuncia: “como é triste ver quando, por trás de supostas obras altruístas, se reduz o outro à passividade, se nega ele ou, pior, se escondem negócios e ambições pessoais: Jesus lhes chamaria de hipócritas”.
E anuncia: “ao contrário, como é lindo quando vemos em movimento os Povos, sobretudo os seus membros mais pobres e os jovens. Então, sim, se sente o vento da promessa que aviva a esperança de um mundo melhor. Que esse vento se transforme em vendaval de esperança. Esse é o meu desejo”. Que seja também esse o nosso desejo!
Nunca um Papa falou com tanta empatia dos Movimentos Populares e de suas lutas sociais e ambientais. Trata-se de uma verdadeira revolução na Igreja, uma revolução evangélica! Sigamos o seu exemplo!
Leiam também o artigo “O significado do Encontro Mundial de Movimentos Populares”, em:




Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br
                                                                                                                                                                   Goiânia, 03 de dezembro de 2014
A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos