quarta-feira, 30 de abril de 2014

Carta aberta à 52ª Assembleia Geral da CNBB

Sobre as CEBs no Documento de Estudo 104:
                                                                                 “Comunidade de Comunidades: uma nova Paróquia”

Pela presente Carta aberta, dirijo-me fraternalmente aos participantes da 52ª Assembleia Geral da CNBB (bispos, assessores/as e outros/as) e a todos/as os interessados/as.
Em 2013, a 51ª Assembleia Geral da CNBB publicou o Documento de Estudo 104: “Comunidade de Comunidades: uma Nova Paróquia”. O texto, a partir da Palavra de Deus, dos Documentos da Igreja - sobretudo da América Latina e do Brasil - e da experiência eclesial nas bases (Comunidades, Paróquias e Dioceses) apresenta reflexões teológico-pastorais valiosas, mas que precisam ser aprofundadas e melhor esclarecidas. O texto, com a intenção - talvez - de agradar a todos/as, é bastante repetitivo, confuso, ambíguo, contraditório e pouco objetivo. 
As CEBs são mencionadas nos números 160-161 e, de passagem, no número 238, mas sem nenhuma relevância. Tem-se a impressão que o Documento só cita as CEBs, porque existem pessoas que ainda teimam em falar nelas. Se não fossem citadas, na estrutura geral do Documento, não fariam nenhuma falta.
Na 52ª Assembleia, que acontecerá de 30 de abril a 9 de maio do corrente ano, o Documento de Estudo 104 - com a contribuição das sugestões vindas das bases (Comunidades, Paróquias e Dioceses) - será reelaborado e tornar-se-á (a não ser que a Assembleia julgue necessário mais tempo - como seria conveniente - para o estudo do assunto) um Documento oficial da CNBB.
Por amor à Igreja, permito-me fazer um pedido à próxima Assembleia Geral da CNBB: que, na reelaboração do Documento - além de torná-lo mais claro, mais conciso e mais objetivo - seja retomada a visão teológico-pastoral das CEBs dos Documentos de Medellín, assumindo o método “ver, julgar, agir” (analisar, interpretar, libertar), que "nos permite articular, de modo sistemático, a perspectiva cristã de ver a realidade; a assunção de critérios que provêm da fé e da razão para seu discernimento e valorização com sentido crítico; e, em consequência, a projeção do agir como discípulos missionários de Jesus Cristo" (Documento de Aparecida - DA, 19).
Essa visão teológico-pastoral das CEBs - no Documento sobre uma Nova Paróquia - deveria ser central, deveria ser seu eixo estruturante, sua espinha dorsal.
Não podemos esquecer - como nos lembra Clodovis Boff - “a originalidade histórica de Medellín”. “O fruto maior da Assembléia da Conferência Episcopal Latino-Americana (CELAM), em 1968, foi ter dado à luz a Igreja latino-americana como latino-americana. Os Documentos de Medellín representam o ‘ato de fundação’ da Igreja da América Latina (compreendendo também o Caribe) a partir e em função de seus povos e de suas culturas”. “Esses textos constituem a ‘Carta magna’ da Igreja do Continente”.
Diz, ainda, Clodovis Boff: “o que nos interessa aqui não é o ‘Medellín histórico’: o que se passou de fato na Assembléia do CELAM de 1968; mas sim o ‘Medellín querigmático’: o que ele representa em termos históricos. Ora, relendo hoje os Documentos de Medellín fica-se impressionado com o vigor e a audácia de sua expressão, ou, para dizer numa palavra, com seu ‘pathos profético’, típico dos textos originários e fundantes de uma tradição. Aquilo é linguagem de verdadeiros ‘Pais da Igreja’, Pais da Igreja latino-americana como tal, como intuiu com penetração o Pe. José Comblin, benemérito teólogo do Continente”.
De fato - continua Clodovis Boff - “até Medellín, a Igreja no Continente era a reprodução do modelo da Igreja européia, em seu modo de organização, em sua problemática teológica e em suas propostas pastorais. Era uma ‘Igreja-reflexo’ não uma ‘Igreja-fonte’, como se exprimiu o Pe. Henrique de Lima Vaz, intelectual a quem muito deve a Igreja brasileira. Portanto, a Igreja latino-americana, mais que ser Igreja da América Latina, era mais propriamente a Igreja européia na América Latina. Era, de fato, uma Igreja em estado de minoridade, tutelada, privada de sua legítima autonomia institucional” (era a extensão da Igreja européia na América Latina: uma Igreja “colonial”, uma Igreja “romanizada”, uma Igreja “extremamente centralizada no clero”).
Contudo - conclui Clodovis - “falta muito ainda para as ‘Igrejas locais’ terem e gozarem efetivamente dessa justa autonomia” (http://www.servicioskoinonia.org/relat/203p.htm).
Os Documentos de Medellín são, pois, a encarnação do Concílio Vaticano II na América Latina e no Caribe. Segundo os Documentos de Medellín, as CEBs (que, então, eram chamadas “Comunidades Cristãs de Base”, ou, simplesmente, Comunidades de Base) não são - como se quer fazer acreditar hoje - um Movimento entre muitos outros, uma expressão de vivência comunitária entre muitas outras, mas a base da Igreja, o eixo da organizaão eclesial. 
A CEB (Comunidade de Fé, Esperança e Caridade) “é o primeiro e fundamental núcleo eclesial, que deve, em seu próprio nível, responsabilizar-se pela riqueza e expansão da fé, como também do culto, que é sua expressão. Ela é, pois, célula inicial da estrutura eclesial e foco de evangelização e, atualmente, fator primordial da promoção humana e do desenvolvimento”. A CEB é uma “Comunidade local ou ambiental, que corresponde à realidade de um grupo homogêneo e que tenha uma dimensão tal que permita o trato pessoal fraterno entre seus membros” (Documentos de Medellín, XV, 10).
A partir das CEBs, Medellín redefine a Paróquia, que passa a ser “um conjunto pastoral unificador das Comunidades de Base” (Ib. 13). É verdade que, em sentido amplo, a Paróquia pode ser chamada de Comunidade, mas a verdadeira vivência comunitária acontece nas CEBs. É nelas e delas que irrompe o anúncio da Boa Notícia do Reino de Deus no mundo de hoje e a denúncia profética de tudo aquilo que é contrário ao Reino. É nelas e delas que irrompe o compromisso com as Pastorais sociais e ambientais. É outra Eclesiologia!
Nessa Eclesiologia todos e todas são iguais, todos e todas - na diversidade dos ministérios (serviços) - são irmãos e irmãs e ninguém é mais importante do que o outro ou a outra.
Vejam o que disse recentemente o nosso irmão, o papa Francisco: “eu faria esta pergunta: quem é mais importante na Igreja? O Papa ou aquela velha senhora que todos os dias reza o Rosário pela Igreja? Que o diga Deus, eu não posso dizê-lo. Mas a importância é de cada um nesta harmonia, pois a Igreja é a harmonia da diversidade. O Corpo de Cristo é esta harmonia da diversidade, e quem faz a harmonia é o Espírito Santo: Ele é o mais importante de todos. (...) É importante: buscar a unidade e não seguir a lógica de que o peixe grande engole o peixe pequeno” (Discurso aos membros da Associação “Corallo”, que reune as emissoras televisivas católicas italianas, 22/03/14).
Gostaria muito que na reelaboração do Documento acima citado, a CEB aparecesse como “célula inicial da estrutura eclesial”. É o que os Documentos de Medellín pedem à Igreja da América Latina e do Caribe. Se esse ensinamento dos Documentos de Medellín (que, como vimos, são Documentos fundantes da Igreja latino-americana e caribenha como tal) são esquecidos ou deixados propositalmente de lado, qualquer outro Documento perde sua autoridadade moral.
A Eclesiologia do Concílio Vaticano II e dos Documentos de Medellín é a Eclesiologia do Povo de Deus, que é uma Eclesiologia toda ministerial (servidora) e não uma Eclesiologia clerical. 
O papa Francisco, em diversas ocasiões, fez críticas ao clericalismo como um dos males da Igreja. Cito só a última - feita em tom coloquial - que é muito contundente e nos faz refletir seriamente sobre o assunto.
“O clericalismo é um dos males, é um dos males da Igreja. Mas é um mal ‘cúmplice’, porque aos sacerdotes agrada a tentação de clericalizar os leigos, mas tantos leigos, de joelhos, pedem para ser clericalizados, pois é mais cômodo, é mais cômodo!. E isto é um pecado num duplo sentido! Devemos vencer esta tentação. O leigo deve ser leigo, batizado, tem a força que vem do seu Batismo. Servidor, mas com a sua vocação laical, e isto não se vende, não se negocia, não se é cúmplice com o outro...Não! Eu sou assim! Porque está na identidade!, alí. Tantas vezes escutei isto, na minha terra: ‘Eu na minha paróquia, sabe? Tenho um leigo bravíssimo, este homem sabe organizar... Eminência, porque não o tornamos diácono?’. É a proposta do padre, imediata: clericalizar. Este leigo façamo-o... E por que? Por que é mais importante o diácono, o padre, do que o leigo? Não! É este o erro! É um bom leigo? Que continue assim e cresça assim. Porque está na sua identidade de pertença cristã, alí. Para mim, o clericalismo impede o crescimento do leigo. Mas tenham presente aquilo que eu disse: é uma tentação cúmplice a duas mãos. Pois não existiria o clericalismo se não existissem leigos que querem ser clericalizados. Está claro isto?” (Ib.).
As CEBs - na enorme diversidade de suas expressões, que é uma riqueza - são a base da Igreja e a base da Igreja são os pobres. Por isso, nos Intreclesiais das CEBs e outros Encontros, fala-se que as CEBs são “um jeito novo e antigo de ser Igreja”, “um jeito de toda a Igreja ser”, “um jeito normal de ser Igreja”. Por serem uma Igreja inserida, encarnada, pode-se dizer que as CEBs - com seus diferentes dons, carismas e ministérios - são “o jeito evangélico de ser Igreja”, são “o jeito de ser Igreja que Jesus quer”.  
A Boa Notícia do Reino de Deus, que a Igreja - cumprindo sua missão - anuncia ao mundo, é dirigida a todos e a todas, mas a partir dos pobres (a partir da “manjedora”). È o caminho de Jesus de Nazaré!. Por isso, parafraseando João XXIII e Francisco, posso dizer: “Como gostaria de uma Igreja Pobre, para os Pobres, com os Pobres e dos Pobres!”.
Peço as luzes do Espírito Santo para a 52ª Assembleia Geral da CNBB.

CARTA

Estimado Frei M, Sassatelli,
li, apreciei imensamente e consegui que se fizesse uma tradução para o espanhol, da sua carta em relação ao doc. 104 a ser debatido na próxima 52 Assembleia da CNBB (Em attachment estou enviando essa tradução que devemos ao P. Juan Angel, da diocese de Bariloche, Argentina)
Você disse com sabedoria e boa fundamentação tudo aquilo el muito mais que eu tinha pensado que deveria dizer ao nosso comum amigo Sergio Coutinho, que está lá na CNBB lutando para transmitir una visão de CEBs mais de acordo com o testo "fundante" de Medellin 15,10.
Eu me chamo P. José Marins, tenho trabalhado numa equipe itinerante a serviços das Igrejas da América Latina e também de outros continentes, nos últimos 43 anos.
A minha arquidiocese de origem é Botucatu. Meu arcebispo me entregou para o serviço da Igreja, primeiro na CNBB, ya no tempo do Vaticano II, depois ao CELAM até o tempo em que o Card. Alfonso Lopes Trujillo conquistasse o poder eclesiastico no CELAM e na Curia Vaticana. Então fiquei mais ou menos numa equipe "free lancer" ajudando las Igrejas que pediam assessoria (católicas e evangélicas).  
Obrigado Frei Marcos. Espero que um dia a gente se encontre
 Padre Jose Marins e equipe.


Fazer acontecer a Páscoa, hoje

À luz da Fé Cristã, a Páscoa é o acontecimento central da história do ser humano e do mundo. É o mistério do Amor Infinito de Deus - para com o ser humano e o mundo - que faz o Reino de Deus acontecer.  “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não morra, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). 
Tornar presente a Páscoa de Jesus, fazendo sua memória, significa fazer acontecer hoje - na história do ser humano e do mundo - a passagem da morte para a vida (vida nova em Cristo, vida segundo o Espírito de Deus, vida eterna, vida de ressuscitados e ressuscitadas), até a plenitude da vida, que é a plenitude do Reino de Deus, na meta-história.
"A criação toda geme e sofre dores de parto até agora. E não somente ela, mas também nós, que possuímos os primeiros frutos do Espírito, gememos no íntimo, esperando a adoção, a libertação para nosso corpo” (Rm 8, 22-23). 
A vida toda de Jesus de Nazaré é Páscoa, é passagem. “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Para cumprir sua missão de ser Páscoa, Jesus, o Filho de Deus, o Libertador e Salvador do mundo, torna-se próximo e solidário com todos os excluídos e excluídas da vida, com todos os descartados e descartadas da sociedade. 
Ainda no seio de Maria, Jesus é “morador de rua”. “Não havia lugar para eles dentro de casa” (Lc 2,7). Nasce, como “sem-teto”, numa manjedoura. Exerce a profissão de carpinteiro. Em sua vida pública, denuncia - com palavras duras e sem medo - a hipocrisia religiosa dos fariseus e mestres da Lei. Sempre se coloca - como defensor - ao lado dos pobres, dos doentes, dos leprosos, dos sofredores e de todos aqueles e de todas aquelas que não têm voz e não têm vez.
Basta lembrar os sete sinais de Jesus narrados por João, que visam libertar as pessoas de todas as barreiras que impedem a vida e a vida em plenitude: Jesus muda a água em vinho (2,1-12); Jesus cura o filho do funcionário do rei (4,46-54); Jesus faz o paralítico andar (5,1-18); Jesus realiza a partilha dos pães (6,1-15); Jesus caminha sobre as águas (6,16-21; Jesus faz o cego de nascença enxergar (9,1-41); Jesus ressuscita Lázaro (11,1-45). 
A Páscoa de Jesus completa-se com sua morte na cruz, com seu sepultamento e com sua Ressurreição, que é a vitória da vida sobre a morte. “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13, 1). “Não existe amor maior do que dar a vida pelos amigos” (Jo, 15,13).
“Deus é Amor. Nisto se tornou visível o Amor de Deus entre nós: Deus enviou seu Filho único a este mundo, para dar-nos a vida por meio dele” (1Jo 4,8-9). O ser humano, que é imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26), também é Amor. Ele é chamado a "amorizar” o mundo e a sociedade na qual vive, isto é, a impregnar o mundo e a sociedade de amor. 
Fazer acontecer a Páscoa é fazer acontecer o Amor onde a vida do ser humano e do mundo é ameaçada, negada e assassinada, como nas situações existenciais: dos Moradores e Moradoras de Rua; dos Catadores e Catadoras de Lixo; dos Encarcerados e Encarceradas; dos Sem-Terra; dos Sem-Moradia; dos Sem-Trabalho; dos Subempregados e Subempregadas; dos Trabalhadores e Trabalhadoras em condição de trabalho escravo; dos Doentes que não são atendidos pela Saúde Pública; dos Doentes que morrem à míngua por falta desse atendimento; das Crianças e Jovens que não têm uma Educação Pública de qualidade; das Crianças e Jovens que se envolvem com as drogas por falta de Políticas Públicas; das Crianças e Jovens que são assassinados por causa desse envolvimento; das Crianças e Jovens abandonados; dos Idosos e Idosas abandonados; das Mulheres marginalizadas e violentadas; do Povo que não tem uma Segurança Pública humanizada; do Povo que não tem um Transporte Público digno; das Vítimas da Fome e Subnutrição; das Vítimas do Tráfico Humano para a exploração no trabalho; das Vítimas do Tráfico Humano para a exploração sexual; das Vítimas do Tráfico Humano para a extração de órgãos; das Vítimas do Tráfico Humano de Crianças e Jovens; das Vítimas da Exploração da Terra e das Àguas; das Vítimas da Violência institucionalizada e de toda Violência; dos Descartados e Descartadas da sociedade; de todos os Excluídos e Excluídas.
Fazendo acontecer a Páscoa, ou seja, fazendo acontecer o Amor nessas situações existenciais, seremos Bons Samaritanos e Boas Samaritanas, Profetas e Profetisas da vida, hoje.                                                   “Amem-se uns aos outros, assim como eu amei vocês” (Jo 15,12). Durante a última ceia, depois de lavar os pés dos discípulos, Jesus perguntou: “Vocês compreenderam o que acabei de fazer? E disse: “Eu lhes dei o exemplo, para que vocês façam a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,12.15).
Como cristãos e cristãs somos chamados - dentro das nossas possibilidades humanas - a ser Páscoa e a fazer a Páscoa acontecer (ser sinais e testemunhas da Páscoa, ser sinais e testemunhas do Reino de Deus) na história do ser humano e do mundo. Temos, porém, que reconhecer, com humildade, que, muitas vezes, irmãos e irmãs nossos - que não se dizem cristãos e cristãs - são Páscoa e fazem a Páscoa acontecer mais do que nós. Em diversas ocasiões, eu pude experienciar isso.pessoalmente e dou graças a Deus.
Jesus não quer que o grupo dos seus seguidores e seguidoras se torne seita fechada e monopolize sua missão. Toda e qualquer ação que liberta do mal o ser humano e o mundo, é parte integrante da missão de Jesus. “Quem não está contra nós, está a nosso favor” (Mc 9,40). 
À luz da Fé, de toda pessoa humana (cristão e cristã ou não) - cuja vida (como a de Jesus de Nazaré) sempre foi Páscoa e fez a Páscoa acontecer - em sua passagem última e definitiva para a “vida além da morte”, podemos dizer: “completou a sua Páscoa” (Lembrancinha de Missa de 7º dia). Feliz Páscoa 2014! 

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Em apoio à Campanha “50 dias contra a impunidade”

"Enquanto não se der a resposta devida aos crimes cometidos por agentes do Estado
é como se reiterasse a impunidade e a possibilidade de crimes se repetirem"
(Átila Roque, diretor da Anistia Internacional Brasil)
No dia 1º do mês corrente, fazendo a memória dos 50 anos do Golpe civil-militar, a Anistia Internacional Brasil, em ato público, lançou na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro, a Campanha “50 dias contra a impunidade”, com o objetivo de recolher assinaturas em todo o país, numa petição online, reivindicando a revisâo da Lei da Anistia de 1979.
A Campanha visa pressionar o Governo para que envie ao Congresso Nacional um projeto de lei, que declare a Lei da Anistia válida somente para os militantes que lutaram contra o Regime totalitário. Visa, também, garantir justiça para os crimes contra a humanidade - sequestros, torturas, desaparecimentos e assassinatos - cometidos por agentes do Estado durante a ditadura. Esses crimes nunca prescrevem e nunca podem ser anistiados.
A petição cita tratados internacionais, assinados pelo Brasil, que vetam a prescrição dos crimes contra a humanidade (ou de lesa-humanidade), como os citados acima.
A Comissão Nacional da Verdade e as Comissões Estaduais da Verdade, revisitando o passado e destampando uma panela que - no dizer do diretor da Anistia Internacional no país, Átila Roque - ficou tanto tempo sob pressão, buscam esclarecer esses crimes. Para o diretor da Anistia, as revelações dessas Comissôes e os depoimentos de militares como o coronel reformado Paulo Malhães, que admitiu friamente ter torturado e assassinado presos políticos, devem contribuir para a mobilização da sociedade, em favor da Campanha.
Àtila Roque afirma: “o fato de nunca termos julgado os torturadores é uma pedra no sapato da democracia brasileira”. E acrescenta: “a tortura ainda é uma prática corriqueira nas prisões e delegacias do país. A impunidade de quem praticou crimes na ditadura contribui para que esta situação continue a humilhar a cidadania”.
Recentemente, a imprensa divulgou um dado impressionante: somente entre 2011 e 2013, foram relatados, no disque-denúncia da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, 816 casos de tortura (destes, 316 em 2013), com acusações contra 1.162 agentes do Estado. Os números revelam que a situação das torturas no Brasil - geralmente praticadas contra os brasileiros e brasileiras excluídos da cidadania - continua epidêmica.
Diz ainda o diretor da Anistia Internacional Brasil: “a sociedade brasileira tem que dar um recado claro de que os crimes de tortura são inadmissíveis e jamais voltarão a ser tolerados. Temos que olhar para o passado com a lente da justiça”.
Como afirma Átila Roque, a idade avançada de agentes de repressão - muitos acima dos 70 anos - “não pode ser usada para atenuar a gravidade dos crimes que cometeram”. “A Justiça é quem deve decidir a forma de execução das penas, caso essas pessoas sejam condenadas. O fundamental é que elas possam ir a julgamento” (cf. Folha de S. Paulo, 28/03/14, p. A10).
Lutar contra a impunidade dos crimes de lesa-humanidade, cometidos por agentes do Estado durante a ditadura civil-militar, não é uma questão de revanchismo ou de vingança, mas de justiça.
Do ponto de vista cristão, quem pratica uma injustiça (ou violação dos Direitos Humanos), só recebe o perdão de Deus e dos irmãos/ãs - que é uma prova de amor - se estiver arrependido e disposto a reparar, dentro do que for humanamente possível, a injustiça cometida. Como diz o educador Paulo Freire, a única maneira de amar o opressor (sequestrador, torturador, responsável por desaparecimentos, assassino) é lutar contra o seu projeto de vida, ou seja, contra o seu projeto político. Nada justifica os crimes de sequestro, tortura, desaparecimento e assassinato.
Desde a posse de Fernando Henrique Cardoso, em 1995, Dilma é a única presidenta que nunca recebeu, no Planalto, a Anistia Internacional, que é uma entidade criada em 1961 para defender os Direitos Humanos e que, em 1977, recebeu o Prêmio Nobel da Paz.
Esperamos que a presidenta Dilma - uma mulher que, quando jovem idealista, foi barbaramente torturada durante a ditadura civil-militar - não se deixe obcecar e inebriar pelo poder, renegando o seu passado, mas dê todo apoio à Campanha “50 dias contra a impunidade” da Anistia Internacional no país. Esperamos também que, no final da Campanha, receba os dirigentes da Anistia, que irão a Brasília para entregar-lhe a petição. Esperamos, ainda, que - de posse da petição - envie ao Congresso Nacional um projeto de lei, pedindo a revisão da Lei de Anistia de 1979.
Esperamos, enfim, que o Congresso Nacional não seja omisso e covarde, tornando-se conivente com os crimes contra a humanidade da ditadura civil-militar, mas atenda ao clamor do povo e modifique a Lei de Anistia de 1979.
Conscientes de que a vitória contra a impunidade é fruto da união de todos e de todas, os Movimentos Sociais Populares, as Igrejas, outras Organizações da sociedade civil e cada um-cada uma de nós, entremos em cheio nessa Campanha, para que um novo Brasil aconteça: um Brasil justo, igualitário e fraterno-sororal.

Assine já a petição online no link: http://ativismo.anistia.org.br/50dias

Nos calabouços da ditadura civil-militar

O depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV) do coronel reformado do Exército, Paulo Malhães, 76, no dia 25 de março, revela a perversidade, a monstruosidade e o sadismo dos torturadores nos calabouços da ditadura civil-militar (1964-1985).
Um dos calabouços mais diabólicos era a Casa da Morte de Petrópolis, o maior centro clandestino de tortura e desaparecimento de presos políticos do País, mantido, nos anos 70, pelo Centro de Informações do Exército (CIE).
O depoimento de Paulo Malhães - que atuava na “Casa da Morte” - chocou os integrantes da CNV e tornou-se paradigmático para entendermos os horrores da ditadura civil-militar. É de arrepiar!
O coronel (levado em cadeira de rodas e usando camisa cinza, terno bege e óculos escuros) admitiu, com a maior frieza - como se fosse a coisa mais natural e normal do mundo - que torturou, matou e ocultou cadáveres de presos políticos, que ele chama de “terroristas”.
As respostas de Paulo Malhães às perguntas do ex-ministro José Carlos Dias são reveladoras. “Quantas pessoas o senhor matou?” “Tantas quanto foram necessárias”. “Arrepende-se de alguma morte?” “Não”. “Quantos torturou?” Difícil de dizer, mas foram muitos”.
O coronel, sem demonstrar nenhum incômodo e sentindo-se plenamente à vontade, defendeu a tortura como método de investigação e explicou como mutilava os cadáveres, para evitar que fossem identificados. Paulo Malhães afirmou: “A tortura é um meio. Se o senhor quer saber a verdade, tem que me apertar”. Acrescentou, ainda, que aprovava o método da tortura para presos comuns.
Questionado sobre as mutilações de cadáveres, o coronel afirmou que a prática era uma “necessidade” e que os corpos não eram enterrados “para não deixarem rastros”. “Naquela época - disse Paulo Malhães - não existia DNA. Quando você vai se desfazer de um corpo, quais partes podem determinar quem é a pessoa? Arcada dentária e digitais. Quebrava os dentes. (Cortava) as mãos daqui para cima (apontando as próprias falanges)”.
O ex-ministro José Carlos Dias ficou estarrecido diante do depoimento do coronel e comentou: “mesmo com tantos anos de advocacia, me choquei com a descrição da mutilação de arcadas dentárias e digitais” (cf. Folha de S. Paulo, 26/03/14, p. A10).
No dia 23 de março (dois dias antes), em outro depoimento, dessa vez à Comissão Estadual da Verdade (CEV) do Rio de Janeiro, Paulo Malhães disse que a busca pelos restos mortais de militantes de esquerda, desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, é inútil. Ele contou que, na segunda metade da década de 70, foi encarregado de chefiar uma missão (que missão!) na região da Guerrilha, no sul do Pará - chamada “Operação Limpeza” - cujo objetivo era desaparecer para sempre com os corpos dos guerrilheiros. Irônica e orgulhosamente, afirmou: “podem escavar o Brasil todo, mas não vão achar ninguém, porque nós desaparecemos com todo mundo” (cf. O Popular, 25/03/14, p. 13). Que absurdo! Que nojo! Como pode um ser humano ser tão insensível e tão cruel!
Embora reconhecendo (a não ser em casos de psicopatas comprovados) a responsabilidade pessoal, humana e ética, dos torturadores - verdadeiros monstros - precisamos lembrar também que os torturadores e as torturas não nascem casualmente, mas são produtos de um "sistema econômico iníquo” (Documento de Aparecida - DA, 385) e se desenvolvem dentro da lógica desse sistema. Os grandes empresários, urbanos e rurais, que - em conluio com políticos - apoiaram e sustentaram o Golpe civil-militar de 64, construíram fortunas astronômicas. A economia do País e o dinheiro público foram colocados em função dos interesses financeiros das grandes empresas nacionais, ligadas às empresas multinacionais. Tratava-se (e, ainda, trata-se) de um verdadeiro roubo legalizado e institucionalizado.
Para alcançar o objetivo proposto e manter o sistema dominante, tudo era permitido, inclusive a tortura contra aqueles que se opunham à ditadura civil-militar e defendiam um outro projeto político, mais justo e mais igualitário. Esses eram chamados de “terroristas”, mas, na realidade, os verdadeiros “terrotistas” eram os ditadores e os torturadores.
“Hoje - diz o papa Francisco - devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade social’. Essa economia mata” (A Alegria do Evangelho - EG, 53).
Em todo o Brasil, no dia 1º de abril, serão realizadas Manifestações Públicas, em repúdio aos 50 anos do Golpe civil-militar, contra o totalitarismo da ditadura e sua continuidade na violência policial nos dias de hoje. Em Goiânia, a concentração para a Manifestação Pública será às 9 horas, em frente à Assembleia Legislativa do Estado de Goiás (Alameda dos Buritis, 231 - Setor Oeste). Participemos!
Unamo-nos também à Anistia Internacional, que - sempre no dia 1º de abril - lançará no Brasil uma Campanha pela punição dos agentes que torturaram e mataram militantes de esquerda durante a ditadura civil-militar.
Voltarei a falar dessa Campanha em outro escrito.

Leia também o artigo “Tortura: o requinte da crueldade humana”, em:

segunda-feira, 31 de março de 2014

Tortura: o requinte da crueldade humana


1º de abril de 1964 é uma data que não pode ser esquecida. Passaram-se 50 anos do Golpe civil-militar, que deu início no Brasil a um longo período de ditadura, terminado somente em 15 de março de 1985. Fazemos a memória, ou seja, tornamos presente esta data para que os horrores praticados durante a ditadura nunca mais aconteçam na história do Brasil.

No dia 15 do mês corrente, participei - no Auditório Costa Lima da Assembleia Legislativa de Goiás - da Audiência Pública sobre a Luta Camponesa de Trombas e Formoso, no Norte de Goiás, realizada conjuntamente pela Comissão de Direitos Humanos, Cidadania e Legislação Participativa da Assembleia do Estado de Goiás (CDH-Alego), pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) e pela Associação dos Anistiados Políticos de Goiás (Anigo), com o apoio do Comitê Goiano da Verdade, uma organização da sociedade civil.

Fizeram parte da mesa Maria Rita Kehl (integrante da CNV, que coordena o grupo de trabalho "Graves violações de Direitos Humanos no campo ou contra indígenas"), o deputado Mauro Rubem (presidente da CDH-Alego), Marcantônio Dela Côrte (presidente da Anigo) e Dirce Machado da Silva (representante da Associação de Lavradores de Trombas e Formoso).

Foi uma Audiência, que resgatou a biografia do líder camponês José Porfírio de Souza (ou Zé Profiro, como era chamado pelos posseiros) e nos emocionou a todos e todas. Dirigentes de entidades civis, que conviveram com Porfírio, e seus descendentes nos contaram a história da Luta Camponesa de Trombas e Formoso, exigindo do Governo a localização dos restos mortais de José Porfírio.

Essa Luta começou em 1950. De um lado, estavam camponeses sem terra, apoiados por estudantes, operários e militantes de grupos de esquerda. Do outro, grileiros, apoiados por jagunços e forças policiais.

José Porfírio liderou um movimento camponês de resistência e luta pela reforma agrária, que, após dez anos de conflitos, conseguiu a vitória, conquistando terras devolutas, que os grileiros queriam tomar dos posseiros. Em 1962 - após a vitória dos camponeses - Porfírio elegeu-se deputado estadual, o primeiro do país de origem camponesa.

Com o Golpe civil-militar de 64, os camponeses da região foram perseguidos e torturados. No início dos anos 70, a repressão foi brutal. Porfírio mergulhou na clandestinidade e passou a organizar focos de combate à ditadura. Foi literalmente caçado pelos órgãos de repressão do regime autoritário civil-militar. Foi preso em 1972 no Maranhão - onde tentava articular um movimento de resistência - durante a Operação Mesopotâmia, organizada pelo Exército, que queria eliminá-lo. Foi levado para o Pelotão de Investigações Criminais (PIC) do Comando Militar do Planalto, em Brasília, onde permaneceu preso até 7 de julho de 1973. Foi torturado e - no dia que foi libertado - deixado na rodoviária da capital federal por sua advogada. Desde então, José Porfírio está desaparecido.      

Na época, foram realizadas, no Norte de Goiás, inúmeras prisões. Entre elas, a de Durvalino, de 17 anos, filho de José Porfírio, que foi barbaramente torturado e, depois, internado, com transtornos mentais, num hospital psiquiátrico de Goiânia, onde desapareceu.

A Audiência Pública começou com a exibição de trechos do documentário Cadê Profiro? do cineasta Hélio Brito. Durante a Audiência, a ex-militante comunista Dirce Machado da Silva, presidenta da Associação dos Lavradores de Trombas e Formoso, enviada à região em 1954 pelo PCB para dar orientação política ao líder dos posseiros, afirmou: “José Porfírio foi um líder rural autêntico”. O presidente da Anigo, Marcoantônio Dela Côrte, disse: “os militares tinham muito medo do Porfírio”.

Cláudio Maia, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), lembrou que o Estado, diante do conflito agrário, agiu sempre em defesa do latifúndio e da exploração. Trombas foi um encontro de experiências. Mesmo tendo a presença de um partido de esquerda, o mais importante neste encontro eram os militantes, pessoas que acreditavam “no modelo camponês de fazer as coisas”.

“Trombas - afirmou o professor - ficou na memória do Estado de Goiás como um movimento vitorioso. E a figura de Porfírio se tornou muito conhecida no Estado. Ele espelhava não só sua individualidade, como também a sua luta e a luta de cada posseiro. Porfírio mantinha a característica de uma liderança consolidada. Esta áurea da vitoria de Trombas atravessou 1964″.

No final da Audiência, Sebastião de Abreu, jornalista e militante da Luta de Trombas e Formoso, declarou: "não vamos parar de lutar. Queremos que os militares devolvam os restos mortais de José Porfírio".

O que mais me impressionou e me chocou na Audiência Pública foram os relatos de torturas de Dirce Machado da Silva. O requinte de crueldade das torturas do tempo da ditadura civil-militar chega a ser tão sofisticado, diabólico e repugnante, que é assustador. Não dá para acreditar que um ser humano seja capaz de usar sua inteligência para ser tão mau. É realmente uma barbárie!

Fala-se de dez tipos de torturas (com todas as variantes possíveis e imagináveis) praticadas nos “porões da humanidade” da ditadura: cadeira do dragão, pau-de-arara, choques elétricos, espancamentos, cama cirúrgica, afogamentos, soro da verdade, geladeira, arrastamento pela viatura, coroa de Cristo ou capacete. Que mancha indelével! Que vergonha para o Brasil!

Para qualquer pessoa, que tem um mínimo de sensibilidade humana e de senso ético, falar de torturas - seja por motivos políticos ou outros - dá vômito. Além disso, a prática da tortura denota um atraso cultural inconcebível e inadmissível no mundo de hoje. Ditadura, nunca mais! Tortura, nunca mais!

Para os torturadores de ontem e de hoje - que na realidade são verdadeiros monstros humanos - vale a advertência do profeta Isaías: “vocês estão com as mãos sujas de sangue, estão com os dedos manchados de crimes, seus lábios só falam mentira e suas línguas sussurram maldade” (Is 59, 3).

Que a memória das torturas da ditadura civil-militar nos coloque, a todos e todas, num estado de silenciosa e profunda meditação sobre o sentido da vida humana e nos leve a um compromisso radical na defesa e promoção dos Direitos Humanos.


Que a justiça seja feita e que todos os torturadores sejam processados, julgados e punidos!

terça-feira, 25 de março de 2014

STF: o espetáculo circense acabou

Ao longo de 20 meses, assistimos a um espetáculo circense, apresentado em 69 sessões, cujos atores foram os ministros do STF (graças a Deus, não todos). Se o espetáculo tivesse sido, ao menos, de qualidade do ponto de vista artístico, até que teríamos assistido com prazer. Infelizmente, os atores tiveram um péssimo desempenho e o espetáculo foi tão degradante, que provocou nojo. Esses ministros do STF devem ter pensado que a plateia do espetáculo era formada por débeis mentais. O que aconteceu no STF é realmente uma vergonha para o Brasil! 
Em 2012, o STF condenou, por 6 votos a 4, os mensaleiros José Dirceu, José Genoino, Delúbio Soares e outros cinco pelo “crime de formação de quadrilha”. No mesmo ano, condenou tambem, por 6 votos a 5, João Paulo Cunha pelo “crime de lavagem de dinheiro”. 
Analisando os recursos, chamados “embargos infringentes”, no dia 27 de fevereiro deste ano, esse mesmo Tribunal (em sua nova composição, devido a aposentadoria de dois ministros) mudou de entendimento, derrubou o parecer anterior e absolveu, por 6 votos a 5, os mensaleiros do “crime de formação de quadrilha”, reduzindo a pena. 
No dia 13 do corrente mês, esse mesmo Tribunal absolveu também, por 6 votos a 4, João Paulo Cunha do “crime de lavagem de dinheiro”, reduzindo a pena,  e encerrou o julgamento do mensalão. 
Que palhaçada! Realmente não dá para entender! Como pode um crime ser considerado “crime de formação de quadrilha” ou “crime de lavagem de dinheiro” e, depois de algum tempo, não ser mais? É uma irresponsabilidade e um descaramento sem limite! Trata-se de um comportamento repugnante e totalmente antiético. Esses ministros do STF fizeram o povo de idiota. Infelizmente, outros espetáculos circences virão. Fiquemos atentos! 
Pessoalmente, não conheço o deputado Domingos Dutra (SDD-MA), mas, no caso do mensalão (seja do PT, seja do PSDB, seja de quem for) sou obrigado a concordar com ele: “Pobre - diz ele - quando se junta para cometer crime é quadrilha. Quando ricos e poderosos se juntam para atos ilícitos é reunião de lazer” (Folha de S. Paulo, 01/03/14, p. A4), ou - acrescento eu - reunião de trabalho, para enganar os trouxas. A maracutaia é tamanha, que - como diz o ditado - precisamos rir para não chorar!
Segundo dados divulgados na imprensa, os mensaleiros desviaram 173 milhões de reais para subornar políticos. Trata-se de um fato e não de uma opinião subjetiva. A não ser que este fato seja contestado com provas concretas, os responsáveis do desvio - se houvesse justiça - deveriam ser condenados e obrigados a devolver aos cofres públicos o dinheiro roubado, que é dinheiro dos trabalhadores, e não somente condenados e obrigados a pagar multas com dinheiro proveniente de uma solidariedade duvidosa e suspeita.
As últimas sessões do espetáculo circense do mensalão deram a impressão que, por baixo dos panos e às escondidas, tinha sido feito um conluio silencioso entre ministros do STF e Goverrno Federal, levantando suspeitas - dúvidas e interrogações - a respeito da lisura de todo o procedimento investigativo e do próprio julgamento dos mensaleiros. Tudo faz crer que, nas recentes nomeações de ministros para o STF, houve uma combinação prévia entre o Governo Federal e os nomeados. Que hipocrisia!
Para o presidente do STF, Joaquim Barbosa, com a análise dos “embargos infringentes” (que, na realidade, só existem para os ricos e poderosos), “uma maioria de circunstância” foi “formada sob medida para lançar por terra todo o trabalho primoroso levado a cabo por esta Corte no segundo semestre de 2012”.
Mesmo que alguns digam - embora sem provas - que, com suas atitudes, Joaquim Barbosa estaria buscando se autopromover, não deixa de ser significativo o seu desabafo como presidente do STF. Diz ele: “esta (do dia 27 de fevereiro) é uma tarde triste para este Supremo Tribunal Federal, porque, com argumentos pífios, foi reformada, jogada por terra, extirpada do mundo jurídico, uma decisão plenária sólida”.
“Sinto-me obrigado - continua ele - a alertar a nação brasileira que este é apenas o primeiro passo, porque essa maioria de circunstância tem todo o tempo a seu favor para continuar com sua sanha reformadora” (ib., 28/03/14, p. A4).
Termino com palavras bíblicas - de uma atualidade impressionante - que são uma advertência aos juízes e nos fazem refletir: 
“Ai dos juízes que absolvem o injusto a troco de suborno e negam fazer justiça ao justo” (Is 5, 23).
“Ai dos juízes que fazem leis injustas e dos que escrevem apressadamente sentenças de opressão, para negar a justiça ao fraco e fraudar o direito dos pobres do meu povo, para fazer das viúvas a sua presa e despojar os órfãos” (Is 10, 1-2).
“Juízes, não pervertam a justiça, nem façam diferença entre as pessoas. Não aceitem suborno, pois o suborno cega os olhos dos sábios e falseia a causa dos justos” (Dt 16, 19).
“Juízes, cuidado com o que vocês fazem, porque não vão julgar em nome dos homens, mas em nome do Senhor. Ele estará com vocês, quando pronunciarem uma sentença. Portando, respeitem o Senhor e julguem com cuidado, pois o ¬Senhor, o nosso Deus, não admite injustiça, favoritismo ou suborno" (2 Cr 19, 6-7).

O anúncio e a denúncia

Há poucos dias, num Encontro, uma pessoa - que, por sinal, exerce um ministério de muita responsabilidade na Igreja - estava fazendo algumas colocações sobre o novo ano pastoral.
À pergunta, feita por um participante do Encontro, sobre qual seria a posição da Igreja diante dos inúmeros assassinatos de jovens que acontecem todo dia, o palestrante - demostrando falta de interesse pelo assunto - respondeu: “Fazer Notas (na imprensa) não adianta nada, o que precisamos fazer é evangelizar”. Sem maiores comentários, continuou suas colocações. 
Muitos dos que estávamos presentes, ficamos indignados com a afirmação. O palestrante demonstrou ter uma visão equivocada e reducionista do que seja evangelizar.
Evangelizar significa anunciar a Boa Notícia do Reino de Deus - que é a Boa Nóticia de Jesus de Nazaré - e, consequentemente, denunciar tudo aquilo que é contrário a essa Boa Notícia. O anúncio e a denúncia (oral e/ou por escrito) são partes integrantes, ou seja, constitutivas da Evangelização. Na perspectiva do Evangelho, uma não pode existir sem a outra. Anunciar sem denunciar é trair a Palavra de Deus.
O anúncio e a denúncia levam, pois, os seguidores e seguidoras de Jesus a um compromisso radical com a Vida. “Eu vim para que todos e todas tenham Vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). “Jesus, tendo amado os seus discípulos que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1), ou seja, até não poder mais, até dar a Vida. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a Vida pelos amigos” (Jo 15,13). Os cristãos e cristãs são chamados a ser no mundo “profetas e profetisas da Vida” (Documento de Aparecida - DA, 471).
O nosso referencial é sempre a prática de Jesus. Vejamos - por exemplo - como Jesus se comportou com os doutores da Lei e fariseus, e com Herodes.
Jesus denuncia e condena a hipocrisia religiosa dos doutores da Lei e fariseus. “Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus, hipócritas! Vocês fecham o Reino do Céu para os homens. Nem vocês entram, nem deixam entrar aqueles que desejam. Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês exploram as viúvas, roubam suas casas e, para disfarçar, fazem longas orações. Por isso, vocês vão receber uma condenação mais severa” (Mt 23, 13-14).
E a ladainha das maldições de Jesus continua. “Ai de vocês, guias cegos! (...) Cegos insensatos! (...) Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus, hipócritas! Vocês dão o dízimo da hortelã, da erva doce e do cominho, e deixam de lado os ensinamentos mais importantes da Lei, como a justiça, a misericórdia e a fidelidade. (...) Vocês coam um mosquito e engolem um camelo. Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês limpam o copo e o prato por fora, mas por dentro vocês estão cheios de ganância e cobiça. (...) Limpe primeiro o copo e o prato por dentro, e assim o lado de fora também ficará limpo. Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês são como sepulcros caiados: bonitos por fora, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e podridão. Assim também são vocês: por fora parecem justos diante dos outros, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e injustiça” (ib. 16-28).
Com palavras ainda mais fortes, Jesus denuncia: “Serpentes, raça de cobras venenosas (víboras)! Como é que vocês poderão escapar da condenação do inferno?” (ib. 33).
Por que Jesus denunciou a hipocrisia religiosa dos doutores da Lei e dos fariseus com palavras tão duras, desrespeitosas e ofensivas? De acordo com o palestrante acima citado, Jesus - no lugar de fazer isso - não deveria ter “evangelizado” os doutores da Lei e os fariseus?
A denúncia de Jesus não é uma advertência para nós, que muitas vezes - como Igreja - silenciamos e nos omitimos diante das injustiças, por covardia e medo de desrespeitar e ofender os poderosos e os governantes? “A verdade vos libertará!” (Jo 8,32).
Jesus vai até o fim. Diante das reações que a sua atividade provoca, Ele não tem medo das autoridades. Em determinado momento, algumas pessoas se aproximam de Jesus e dizem: “Vá embora daqui, porque Herodes quer te matar”. Jesus responde: “Vão dizer a essa raposa: eu expulso demônios, e faço curas, hoje e amanhã, e no terceiro dia terminarei o meu trabalho. Entretanto, preciso caminhar hoje, amanhã, e depois de amanhã, porque não convém que um profeta morra fora de Jerusalém” (Lc 13, 31-33). 
Por que Jesus chamou Herodes - uma “autoridade constituída” - de “raposa”?. Não é um comportamento desrespeitoso e ofensivo? Sempre de acordo com o palestrante acima citado, no lugar de fazer isso, Jesus não deveria ter “evangelizado” Herodes?  
Enfim, tenho certeza que se Jesus vivesse hoje - na era das comunicações, da informática e, sobretudo, da internet - faria suas denúncias não só oralmente, mas também por escrito, usando a mídia e as redes sociais. Sem hesitação e medo de ser instrumentalizado (como costumam dizer as chamadas “pessoas prudentes”, que na realidade são “pessoas covardes”), Jesus faria também Notas na imprensa, que - contrariando mais uma vez a afirmação do palestrante acima citado - serviriam muito e seriam certamente de grande valia para o cumprimento de sua missão. 
A prática de Jesus sempre nos incomoda, nos questiona e nos compromete. Que coragem Jesus demonstrou! Que firmeza e que coerência Ele sempre teve! Quantos mártires, da América Latina e do mundo, seguiram o seu exemplo! E nós?
Estamos no tempo da Quaresma e vivendo a Campanha da Fraternidade, que tem como tema “Fraternidade e Tráfico Humano” e como lema “É para a Liberdade que Cristo nos Libertou” (Gl 5,1). 
O Tráfico de Seres Humanos é atualmente um dos maiores crimes da humanidade e um grande desafio para todos/as nós. Peçamos que o Espírito Santo - o Amor de Deus - provoque uma verdadeira “revolução” na nossa vida.

A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos