quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Sobre a Ocupação “Sonho Real”


Uma reportagem que me deixou indignado

            Costuma-se dizer - e é a pura verdade - que todo ponto de vista é a vista de um ponto. O ponto desde o qual eu vejo (ou, ao menos, esforço-me para ver) a realidade é o ponto desde os Direitos Humanos e, no nosso caso concreto, desde o Direito à Moradia, que - como diz o Papa Francisco - é um direito sagrado. Portanto, o ponto desde o qual eu vejo a realidade não é o ponto desde a especulação imobiliária, que é parte integrante de “um sistema econômico iníquo” (Documento de Aparecida - DA, 385)
            Lendo a reportagem de O Popular, de 16 de fevereiro deste ano (capa e p, 5), “10 anos depois - O bairro que surgiu da invasão do Parque Oeste”, fiquei profundamente indignado. Antes de tudo, não se trata de “invasão”, mas de “ocupação” de um terreno que não tinha, havia muitos anos, nenhuma função social. O que é bem diferente! A leitura que a reportagem faz do despejo violento da Ocupação “Sonho Real” - a cinicamente chamada “Operação Triunfo” - é desde o ponto de vista dos “coronéis urbanos” (leia: os donos das grandes imobiliárias de Goiânia).
            Citando João Batista de Deus, professor do Instituto de Estudos Sócio-Ambientais da Universidade Federal de Goiàs - UFG, o título de um dos textos da reportagem é: “sem desocupação, o problema ficaria maior”. No próprio texto, a reportagem diz: “segundo o pesquisador, se houvesse desapropriação, naquele contexto, inúmeros grupos iriam criar novas ocupações, gerando um barril de pólvora na habitação”.
Professor, esse é o ponto desde o qual os “coronéis urbanos”, que são os que de fato mandam em Goiânia, veem a realidade. Eles fizeram o governador Marconi Perillo voltar atrás, depois de declarar em entrevista coletiva que estava decidida a desapropriação. O povo fez até festa. Com seu poder econômico, os “coronéis urbanos” transformaram o governador num mentiroso público, ou seja, num fantoche. Num documento do Governo Estadual (eu vi com os meus olhos) estava escrito: “essa área é imprópria para habitação popular”.
Segundo o ponto desde o qual os sem-teto veem a realidade, criar novas ocupações não gera nenhum barril de pólvora, mas abre caminhos para o reconhecimento de um dos Direitos Humanos fundamentais de toda pessoa, que é o Direito à Moradia.
            Atualmente, vivemos numa sociedade, na qual “a exclusão virou princípio da organização socioeconômica, a lei do mercado, da competitividade. Quem não consegue competir deve desaparecer, quem não consegue consumir deve sumir. Escondemos favelas por trás de placas publicitárias. Que os feios, os aleijados, os idosos, os doentes de Aids (e - acrescento eu - os sem-teto) não poluam os nossos cartões postais” (Vida Pastoral, janeiro-fevereiro de 2015, p. 60).
            “Hoje - diz o Papa Francisco - devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade’. Essa economia mata. (...) O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do ‘descartável’, que, aliás, chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e opressão, mas de uma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder, já não está nela, mas fora. Os excluídos não são ‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras’” ( A Alegria do Evangelho - EG, 53).
            A área da Ocupação “Sonho Real” - independentemente da questão da Justiça - tinha todos os requisitos legais e constitucionais para ser desapropriada.  Inclusive, o que o Poder Público gastou depois do despejo violento foi muito mais do que o valor da desapropriação. Para construir 2.500 casas no Residencial Real Conquista (um dos bairros do Município de Goiânia mais distantes) - prometidas como indenização pelas casas destruídas - o Governo do Estado de Goiás demorou quase dez anos. Após o término de cada etapa, as casas construídas eram entregues em cerimônia oficial com toda demagogia, como se fossem um presente do governador “bonzinho” e não um direito do povo. O governador sempre tentou empurrar debaixo do tapete a vergonhosa história do Parque Oeste Industrial e sempre fingiu não saber que as casas, construídas a passos de tartaruga, eram uma conquista da luta persistente dos sem-teto.
            Para o Estado de Goiás e a Prefeitura de Goiânia (em conluio com o Poder Judiciário), totalmente submissos aos interesses dos “coronéis urbanos”, o importante não era o dinheiro necessário para a desapropriação da área, mas dar um castigo (uma lição exemplar) aos sem-teto, para que nunca mais tivessem a ousadia de ocupar outras áreas, desafiando os “coronéis urbanos” e seus empreendimentos imobiliários.
            A reportagem de O Popular, que aparentemente pretende ser neutra (no comportamento humano não há neutralidade), na realidade toma o partido dos “coronéis urbanos” e o justifica.
            Professor João Batista de Deus, não existe somente o ponto desde o qual os “coronéis urbanos” veem a realidade, mas existe também o ponto desde o qual os sem-teto veem a realidade, que é o dos Direitos Humanos. Para esses, a desapropriação da área da Ocupação “Sonho Real” teria sido uma grande conquista e teria fortalecido a organização dos Movimentos Populares dos Sem-Teto. 
Mesmo, porém, que os sem-teto tenham perdido essa luta, os “coronéis urbanos” e todos os poderosos - que se acham donos do mundo - não se iludam. Lembrem-se que os Movimentos Populares dos Sem-Teto podem estar momentaneamente acuados, mas não vencidos. Um sinal concreto disso é o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que está se organizando cada vez mais no Brasil inteiro, sobretudo nas grandes cidades. Aguardem!
Uma derrota traz muito sofrimento para os trabalhadores, mas a médio e longo prazo, traz também muita vontade de se organizar e de lutar, renovando a esperança da vitória final.
            O Papa Francisco, em outubro de 2014, promoveu o Encontro Mundial dos Movimentos Populares, manifestando em seu Discurso toda solidariedade e apoio a suas lutas. É um grande sinal dos tempos!
            Enfim, a reportagem de O Popular teve também um lado positivo: serviu para dar maior visibilidade a Eronilde, viúva de Pedro Nascimento, jovem de 27 anos, assassinado a queima-roupa durante a “Operação Triunfo”. Eronilde tornou-se uma grande e incansável lutadora pelos Direitos Humanos, sobretudo pelo Direito à Moradia. Ela é uma mulher extraordinária e uma verdadeira líder popular!
            Termino afirmando: tenho certeza que os empreendimentos imobiliários (25 condomínios verticais) da área da Ocupação “Sonho Real” - ensopada de sangue inocente - não são abençoados por Deus. “Ai daqueles que juntam casa com casa e emendam campo a campo, até que não sobre mais espaço e sejam os únicos a habitarem no meio do país. Deus dos exércitos jurou no meu ouvido. Suas muitas casas serão arrasadas, seus palácios luxuosos ficarão desabitados” (Is 5, 8-9).

            Os responsáveis, diretos e indiretos, do massacre do Parque Oeste Industrial - que foi a pior barbárie de toda a história de Goiânia - lembrem-se sempre: Deus é justo e sua justiça não falha!



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 18 de fevereiro de 2015   

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Parque Oeste Industrial: 10 anos de impunidade


Todo ano, no dia de 16 de fevereiro, não podemos deixar de fazer a memória do despejo dos Moradores da Ocupação “Sonho Real”, no Parque Oeste Industrial, em Goiânia - GO, para que tamanha barbárie humana nunca mais aconteça.
À época, apesar de o governador Marconi Perillo ter prometido publicamente que não iria mandar retirar as famílias da Ocupação “Sonho Real” e que estava decidida a desapropriação da área, de 6 a 15 de fevereiro de 2005, de 0 às 6h, a Polícia Militar do Estado de Goiás começou a ação de reintegração de posse, realizando a cinicamente chamada "Operação Inquietação", que foram dez dias de tortura física e psicológica coletiva. Cercou a área com viaturas, impediu a entrada e a saída de pessoas e cortou o fornecimento de energia elétrica. Com as sirenes ligadas, com o barulho de disparos de armas de fogo, com a explosão de bombas de efeito moral, gás de pimenta e lacrimogêneo, a Polícia Militar promoveu o terror entre os Moradores da Ocupação e provocou traumas psicológicos nas crianças. Que maldade! Que crueldade! Nenhuma lei permite uma Operação noturna criminosa como essa.
No dia 16 de fevereiro de 2005, a Polícia Militar do Estado de Goiás realizou uma verdadeira Operação Militar de Guerra, também cinicamente chamada "Operação Triunfo". Em uma hora e quarenta e cinco minutos, cerca de 14.mil pessoas foram despejadas de suas moradias de maneira violenta, truculenta e sem nenhum respeito pela dignidade da pessoa humana. A Operação Militar produziu duas vítimas fatais (Pedro e Vagner), 16 feridos à bala, tornando-se um desses paraplégico (Marcelo Henrique) e 800 pessoas detidas (suspeita-se com razão que o número dos mortos e feridos seja bem maior).
Como já dissemos muitas vezes, mas nunca é demais repeti-lo, nessas Operações Militares criminosas, ilegais, inconstitucionais e imorais, todos os Direitos Humanos fundamentais foram gravemente violados: o Direito à Vida, o Direito à Moradia, o Direito ao Trabalho, o Direito à Saúde, o Direito à Alimentação e à Água, os Direitos da Criança e do Adolescente, os Direitos da Mulher, os Direitos dos Idosos e os Direitos das Pessoas com Necessidades Especiais.
Depois do despejo forçado e violento, e depois de passar uma noite acampadas na Catedral de Goiânia - onde aconteceu também o velório de Vagner e Pedro num clima de muita indignação e sofrimento - cerca de mil famílias (aproximadamente 2.500 pessoas), que não tinham para onde ir, ficaram alojadas nos Ginásios de Esportes dos Bairros Novo Horizonte e Capuava (por mais de três meses) e, em seguida, no Acampamento do Grajaú (por mais de três anos) como verdadeiros refugiados de guerra. Nesse período, diversas pessoas - sobretudo crianças e idosos - morreram em consequência das condições subumanas de vida, vítimas do descaso do Poder Público do Estado de Goiás e da Prefeitura de Goiânia. Foi a pior barbárie de toda a história de Goiânia, cometida pelo Poder Público e hipocritamente legalizada.
Em 16 de fevereiro deste ano de 2015, a “Operação Triunfo” - apesar de muitos esforços no sentido de exigir justiça e a “federalização” do caso - completa 10 anos de impunidade. Que vergonha para a Justiça de Goiás e do Brasil!
Os responsáveis por essa iniquidade, praticada contra os pobres, aguardem a justiça de Deus!  Ela pode tardar, mas nunca falha!
“Vivemos - diz o Papa Francisco - em cidades que constroem torres, centros comerciais, fazem negócios imobiliários... mas abandonam uma parte de si nas margens, nas periferias. Como dói escutar que as Ocupações pobres são marginalizadas ou, pior, quer-se erradicá-las! São cruéis as imagens dos despejos forçados, dos tratores derrubando barracos, imagens tão parecidas às da guerra. E isso se vê hoje” (Discurso de Francisco aos Movimentos Populares, outubro de 2014). Meditemos!
Que a memória dos principais fatos, ocorridos antes, durante e depois do despejo dos Moradores da Ocupação “Sonho Real”, fortaleça o nosso compromisso com a construção de uma nova sociedade: a sociedade do “bem-viver” e do “bem-conviver”, que - à luz da Fé - é o Reino de Deus acontecendo na história do ser humano e do mundo. O “Sonho Real” está vivo! Ele continua!
Leia também na internet o artigo “16 de fevereiro de 2005: uma data que não pode ser esquecida” (fevereiro de 2014).

Em tempo: alertamos a sociedade sobre o perigo que a Ocupação “Acampamento Dom Tomás Balduino”, em Corumbá de Goiás, se transforme num novo Parque Oeste Industrial. Esperamos que a sociedade se mobilize em favor dos ocupantes do Acampamento e que o Poder Público (Estadual e Federal) tome com urgência as providências cabíveis, para que os direitos à Terra, à Moradia e ao Trabalho - que, como diz o Papa Francisco, são direitos sagrados - sejam respeitados. 

Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
                                                                                                                                                   Goiânia, 12 de fevereiro de 2015   

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Carta dos Excluídos aos Excluídos


- Declaração Final do Encontro Mundial dos Movimentos Populares (2º parte) -

Neste artigo continuo a apresentação - sempre com alguns comentários - da “Carta dos Excluídos aos Excluídos”.
8. Falando que a situação das mulheres golpeadas pelo sistema vigente merece particular atenção, os participantes do Encontro afirmam: “reconhecemos nessa realidade a urgente necessidade de um compromisso profundo e sério com essa causa justa e histórica de todas nossas companheiras, motor de lutas, processos e propostas de vida, emancipatórias e inspiradoras”. Exigem também “a finalização da estigmatização, descarte e abandono das crianças e jovens, especialmente os pobres, afrodescendentes e migrantes. Se as crianças não têm infância, se os jovens não têm projeto, a Terra não tem futuro”. Que clareza! Que objetividade!
9. Com firmeza declaram: “longe de ficarmos na autocompaixão e nos lamentos por todas estas realidades destruidoras, os Movimentos Populares, em particular os reunidos neste Encontro, reivindicamos que os excluídos, os oprimidos, os pobres não resignados, organizados, podemos e devemos enfrentar com todas nossas forças a caótica situação a que este sistema nos levou”. Para conseguirem alcançar esse objetivo, “foram compartilhadas inúmeras experiências de trabalho, organização e luta que têm permitido a criação de milhões de fontes de trabalho digno no setor popular da economia, a recuperação de milhões de hectares de terra para a agricultura camponesa e a construção, integração, melhoramento ou defesa de milhões de moradias e comunidades urbanas no mundo”. E declaram: “a participação protagonizada pelos setores populares em democracias sequestradas ou diretamente plutocracias é indispensável para as transformações de que necessitamos”.
10. Considerando “o especial contexto deste Encontro e a inestimável contribuição da Igreja Católica que, encabeçada pelo Papa Francisco, permitiu sua realização”, os participantes do Encontro afirmam: “detivemo-nos para analisar o marco de nossas realidades, o imprescindível aporte da doutrina social da Igreja e o pensamento de seu Pastor para a luta por justiça social. Nosso material principal de trabalho foi a ‘Alegria do Evangelho’ (EG), que levou em conta a necessidade de recuperar pautas éticas de conduta na dimensão individual, grupal e social da vida humana. É razoável destacar a participação e intervenção de numerosos sacerdotes e bispos católicos ao longo de todo o Encontro, encarnação viva de todos aqueles agentes pastorais leigos e consagrados, comprometidos com as lutas populares que, consideramos, devem ser reforçados no seu importante trabalho”. É essa a missão dos verdadeiros seguidores e seguidoras de Jesus!
11. Declaram ainda: “todos e todas, muitos de nós católicos, pudemos assistir a celebração de uma Missa na Catedral de São Pedro, celebrada por um de nossos anfitriões, o Cardeal Peter Turkson, onde foram apresentados como oferendas três símbolos de nossos anseios, carências e lutas: um carro de papelão, frutos da terra camponesa e uma maquete de uma casa típica dos bairros pobres. Pudemos contar com a presença de um importante número de bispos de todos os continentes”. Tudo isso fortalece a nossa esperança!
12. Com gratidão, reconhecem a grande contribuição do Papa Francisco e sua solidariedade fraterna. “Neste ambiente de debate apaixonado e fraternidade intercultural, tivemos a inesquecível oportunidade de assistir a um momento histórico: a participação do Papa Francisco no nosso Encontro, que sintetizou em seu Discurso grande parte de nossa realidade, nossas denuncias e nossas propostas. A claridade e contundência de suas palavras não admitem duas interpretações e reafirmam que a preocupação pelos pobres está no centro do Evangelho. Em coerência com suas palavras, a atitude fraterna, paciente e cálida de Francisco com todos e cada um de nós, em especial com os perseguidos, também expressa sua solidariedade com nossa luta, tantas vezes desvalorizada e prejudicada, inclusive perseguida, reprimida ou criminalizada”. Sigamos o exemplo do nosso irmão Francisco!
13. Consideram também como momento importante “a participação do irmão Evo Morales, presidente da Assembleia Mundial dos Povos Indígenas, que participou em caráter de dirigente popular e nos ofereceu uma exposição centrada na crítica ao sistema capitalista e em tudo o que os excluídos podem fazer em relação à terra, trabalho, moradia, paz e ambiente, quando nos organizamos e temos acesso a posições de poder, de um poder entendido como serviço e não como privilégio. Seu abraço com Francisco nos emocionou e ficará para sempre em nossa memória”.
14. Enfim, os participantes do Encontro afirmam: “entre os encaminhamentos imediatos do Encontro, levamos duas coisas: a ‘Carta dos Excluídos aos Excluídos’ para trabalhar com as bases dos setores e Movimentos Populares - a qual nos comprometemos a distribuir massivamente junto ao Discurso do Papa Francisco - e as memórias, com a proposta de criar um espaço de Interlocução permanente entre os Movimentos Populares e a Igreja”. É mais um motivo para acreditar que um outro mundo é possível e necessário!
15. Terminando, fazem um pedido. “Junto a este breve comunicado, pedimos especialmente a todos os trabalhadores e trabalhadoras da imprensa que nos ajudem a difundir a versão completa do Discurso do Papa Francisco que, repetimos, sintetiza grande parte de nossa experiência, pensamentos e anseios. Repitamos juntos: Terra, Teto e Trabalho são direitos sagrados! Nenhum trabalhador sem direitos! Nenhuma família sem moradia! Nenhum camponês sem terra! Nenhum povo sem território!”. E exclamam: “viva os pobres que se organizam e lutam por uma alternativa humana à globalização excludente! Longa vida ao Papa Francisco e sua Igreja pobre para os pobres!”. É essa a Igreja que nós queremos!

O Encontro Mundial dos Movimentos Populares é, no mundo atual, a estrela de Belém, que - como à época conduziu os Reis Magos - nos conduz hoje ao Menino Jesus na manjedoura. Sigamos a estrela e sejamos estrela! Parafraseando João XIII e Francisco, os cristãos e cristãs sejamos Igreja pobre, para os pobres, com os pobres e dos pobres!



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 05 de fevereiro de 2015

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Carta dos Excluídos aos Excluídos


- Declaração Final do Encontro Mundial dos Movimentos Populares (1ª parte) -

            A “Carta dos Excluídos aos Excluídos” servirá de base para o trabalho dos Movimentos Populares em seus respectivos países. Ela está em plena sintonia com o Discurso de Francisco aos Movimentos Populares e é também uma fonte inspiradora para as Pastorais Sociais e Ambientais da Igreja, hoje.
            Pretendo agora, com alguns comentários, destacar os 15 pontos da Carta, que inicia dizendo: “queremos fazer chegar à opinião pública um breve resumo do que aconteceu durante estes três dias históricos”.
1. O Encontro foi convocado pelo Pontifício Conselho Justiça e Paz (PCJP), em colaboração com a Pontifícia Academia das Ciências Sociais (PACS), e diversos Movimentos Populares do mundo, sob a inspiração do Papa Francisco. “Uma delegação de mais de 100 dirigentes sociais de todos os continentes se reuniu em Roma para debater três eixos: terra, moradia, trabalho; os grandes problemas e desafios que enfrenta a família humana (especialmente exclusão, desigualdade, violência e crise ambiental) a partir da perspectiva dos pobres e suas organizações”. É um grande sinal dos tempos! É certamente um sinal visível da presença do Espírito Santo de Deus!
2. Os dias “se desenvolveram procurando praticar a Cultura do Encontro e integrando companheiros, companheiras, irmãos e irmãs, de distintos continentes, gerações, profissões, religiões, ideias e experiências. Além dos setores representativos dos três eixos principais do Encontro, participaram um número considerável de bispos e agentes pastorais, intelectuais e acadêmicos, que contribuíram significativamente ao Encontro, sempre respeitando o protagonismo dos setores e Movimentos Populares. O Encontro não esteve isento de tensões que pudéssemos assumir coletivamente como irmãos”. Que maravilha! Que fraternidade bonita! É, sem dúvida, o Reino de Deus acontecendo!
3. Antes de tudo, “sempre desde a perspectiva dos pobres e dos povos pobres (neste caso, os camponeses, trabalhadores sem direitos e habitantes de bairros populares), foram analisadas as causas estruturais da desigualdade e da exclusão, desde suas raízes sistêmicas globais até suas expressões locais. Compartilharam os números horríveis da desigualdade e a concentração da riqueza nas mãos de um punhado de milionários”. Os painelistas e palestrantes - cuja contribuição foi muito valiosa - “concordaram que se deve buscar na natureza desigual e predatória do sistema capitalista, que coloca o lucro acima do ser humano, a raiz dos males sociais e ambientais. O enorme poder das empresas transnacionais que pretendem devorar e privatizar tudo - mercadorias, serviços, pensamento - são o primeiro violino desta sinfonia de destruição”. Que realismo! Que clareza! Que coragem de dizer a verdade!
4. Os participantes do Encontro afirmaram: “durante o trabalho nas oficinas concluiu-se que o acesso pleno, estável, seguro e integral à terra, à moradia e ao trabalho constituem direitos humanos inalienáveis, inerentes às pessoas e sua dignidade, que devem ser garantidos e respeitados. A moradia e o bairro como um espaço inviolável por Estados e corporações, a terra como um bem comum, que deve ser compartilhado entre todos os que nela trabalham, evitando sua acumulação, e o trabalho digno como eixo estruturador de um projeto de vida, foram algumas das reivindicações compartilhadas”.
5. No Encontro abordou-se também “o problema da violência e da guerra, uma guerra total, ou como disse Francisco, uma terceira guerra mundial parcelada. Sem perder de vista o caráter global destes problemas, tratou-se com particular intensidade a situação do Oriente Médio, principalmente a agressão contra o povo palestino e curdo. A violência que desencadeiam as máfias do narcoterrorismo, o tráfico de armas e o tráfico de pessoas, também foram objeto de profundo debate. Os despejos forçados pela violência, o agronegócio, a mineração poluente e todas as formas de extrativismo, e a repressão sobre camponeses, povos originários e afrodescendentes, estiveram presentes em todos os debates. Também o grave problema dos golpes de Estado como em Honduras e Paraguai e o intervencionismo de grandes potências sobre os países mais pobres”.
6. Outra questão abordada foi a ambiental. Ela “esteve presente num rico intercâmbio entre a perspectiva acadêmica e a popular. Pudemos conhecer os dados mais recentes sobre contaminação e a mudança climática, as previsões sobre futuros desastres naturais, e as provas científicas de que o consumismo insaciável e a prática de um industrialismo irresponsável que promove o poder econômico explicam a catástrofe ecológica em cena. Devemos combater a cultura do descarte e, ainda que suas causas sejam estruturais, também devemos promover uma mudança a partir de baixo, nos hábitos e condutas de nossos povos, priorizando os intercâmbios ao interior da economia popular e a recuperação do que este sistema renega”.
7. Novamente os participantes do Encontro, com palavras inquestionáveis, afirmam: “pudemos concluir que a guerra e a violência, a exacerbação dos conflitos étnicos e a utilização da religião para a legitimação da violência, assim como o desmatamento, a mudança climática e a perda da biodiversidade, têm seu principal motor a busca incessante do lucro e a pretensão criminosa de subordinar os povos mais pobres para saquear suas riquezas naturais e humanas. Consideramos que a ação e as palavras dos Movimentos Populares e a Igreja são imprescindíveis para frear este verdadeiro genocídio e terricídio”.

Meditemos, irmãos e irmãs! Não sejamos indiferentes! São apelos de Deus! (Continua no próximo artigo).



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 22 de janeiro de 2015

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Discurso de Francisco aos Movimentos Populares - Os pobres querem mudar o sistema -

             
              Neste 7º artigo sobre o Encontro Mundial de Movimentos Populares, destaco o 6º e último ponto marcante do Discurso do Papa Francisco aos Movimentos Populares: os pobres querem mudar o sistema.
            Chegando ao final do seu Discurso, o Papa lembra: “falamos da terra, do teto, do trabalho... falamos de trabalhar pela paz e cuidar da natureza...”. Em tom de desabafo, ele pergunta: “mas por que, em vez disso, nos acostumamos a ver como se destrói o trabalho digno, se despejam tantas famílias, se expulsam os camponeses, se faz a guerra e se abusa da natureza?”. E responde: “porque, nesse sistema, tirou-se o homem, a pessoa humana, do centro, e substituiu-se por outra coisa. Porque se presta um culto idólatra ao dinheiro. Porque se globalizou a indiferença!. Se globalizou a indiferença: a mim - pergunta novamente - o que me importa o que acontece com os outros, se eu consigo defender o que é meu?”. E, mais uma vez, responde: “porque o mundo se esqueceu de Deus, que é Pai; tornou-se um órfão, porque deixou Deus de lado”.
            Retomando o que foi falado no Encontro, Francisco afirma: “alguns de vocês disseram: esse sistema não se aguenta mais. Temos que mudá-lo, temos que voltar a colocar a dignidade humana no centro, e que, sobre esse alicerce, se construam as estruturas sociais alternativas de que precisamos”.
             Como um irmão entre outros irmãos e irmãs, ele indica o caminho: “é preciso fazer isso com coragem, mas também com inteligência. Com tenacidade, mas sem fanatismo. Com paixão, mas sem violência. E entre todos, enfrentando os conflitos sem ficar presos neles, buscando sempre resolver as tensões para alcançar um plano superior de unidade, de paz e de justiça”.
            Dirigindo-se aos cristãos e cristãs, o Papa lembra que eles e elas têm na Palavra de Deus um programa de ação. “Os cristãos têm algo muito lindo, um guia de ação, um programa, poderíamos dizer, revolucionário. Recomendo-lhes vivamente que o leiam, que leiam as Bem-aventuranças que estão no capítulo 5 de São Mateus e 6 de São Lucas (cf. Mt 5, 3ss e Lc 6, 20ss) e que leiam a passagem de Mateus 25. Eu disse isso aos jovens no Rio de Janeiro. Com essas duas coisas, vocês têm o programa de ação”.
            Reconhecendo as diferenças existentes entre os participantes do Encontro como um grande valor e uma riqueza, ele diz: “sei que entre vocês há pessoas de distintas religiões, profissões, ideias, culturas, países, continentes. Hoje, estão praticando aqui a cultura do encontro, tão diferente da xenofobia, da discriminação e da intolerância que vemos tantas vezes. Entre os excluídos, dá-se esse encontro de culturas em que o conjunto não anula a particularidade. Por isso, eu gosto da imagem do poliedro, uma figura geométrica com muitas faces. O poliedro reflete a confluência de todas as particularidades que, nele, conservam a originalidade. Nada se elimina, nada se destrói, nada se domina, tudo se integra. Hoje, vocês também estão buscando essa síntese entre o local e o global. Sei que trabalham dia após dia no imediato, no concreto, no seu território, seu bairro, seu lugar de trabalho: convido-os também a continuarem buscando essa perspectiva mais ampla, que nossos sonhos voem alto e abranjam tudo”.
            Francisco demostra estar por dentro da realidade dos Movimentos Populares e, com simplicidade fraterna, apresenta algumas sugestões. “Assim, parece-me importante essa proposta que alguns me compartilharam de que esses movimentos, essas experiências de solidariedade que crescem a partir de baixo, a partir do subsolo do planeta, confluam, estejam mais coordenadas, vão se encontrando, como vocês fizeram nestes dias. Atenção, nunca é bom engessar o movimento em estruturas rígidas. Por isso, eu disse encontrar-se. Também não é bom tentar absorvê-lo, dirigi-lo ou dominá-lo; movimentos livres têm a sua dinâmica própria, devemos, sim, tentar caminhar juntos. Estamos neste salão, que é o salão do Sínodo velho. Agora há um novo. E sínodo significa precisamente "caminhar juntos": que esse seja um símbolo do processo que vocês começaram e estão levando adiante”
Lembra, pois, que “os Movimentos Populares expressam a necessidade urgente de revitalizar as nossas democracias, tantas vezes sequestradas por inúmeros fatores. É impossível imaginar um futuro para a sociedade sem a participação protagônica das grandes maiorias, e esse protagonismo vai além dos procedimentos lógicos da democracia formal. A perspectiva de um mundo da paz e da justiça duradouras nos exige superar o assistencialismo paternalista, nos exige criar novas formas de participação que incluam os Movimentos Populares e anime as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com essa torrente de energia moral que surge da incorporação dos excluídos na construção do destino comum. E isso com ânimo construtivo, sem ressentimento, com amor”.
Como um irmão próximo e solidário, o Papa conclui seu Discurso com palavras carinhosas, que envolvem e comprometem a todos e a todas. “Eu os acompanho de coração nesse caminho. Digamos juntos com o coração: nenhuma família sem moradia, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá. Queridos irmãos e irmãs: continuem com a sua luta, faz bem a todos nós. É como uma bênção de humanidade. Deixo-lhes de recordação, de presente e com a minha bênção, alguns rosários que foram fabricados por artesãos, coletores de materiais recicláveis (papeleiros) e trabalhadores da economia popular da América Latina”. Quanta humanidade e quanta sabedoria - que certamente vem do Espírito Santo - nas palavras do nosso irmão Francisco!
Vamos, pois, apoiar e fortalecer a “economia popular” (economia solidária), que abre caminhos para uma mudança política estrutural e para a construção da sociedade do “bem-viver” e do “bem-conviver”, que - à luz da fé cristã - é o Reino de Deus acontecendo na história humana e cósmica.
Enfim, o Papa promete orações e agradece a todos e a todas. “E nesse acompanhamento eu rezo por vocês, rezo com vocês e quero pedir ao nosso Pai Deus que os acompanhe e os abençoe, que os encha com o seu amor e os acompanhe no caminho, dando-lhes abundantemente essa força que nos mantém de pé: essa força é a esperança, a esperança que não desilude. Obrigado”.

O Discurso do nosso irmão Francisco aos Movimentos Populares é realmente um guia e, ao mesmo tempo, uma luz para as Pastorais Sociais e Ambientais da Igreja, hoje. Ele é, podemos dizer, sua “Carta Magna”. Ouçamos o que o Espírito diz às Igrejas! (cf. Ap 2, 7).




Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 15 de janeiro de 2015

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Discurso de Francisco aos Movimentos Populares - Em defesa da Paz e da Ecologia –

Neste 6º artigo sobre o Encontro Mundial de Movimentos Populares, destaco o 5º ponto marcante do Discurso do Papa Francisco aos Movimentos Populares: em defesa da Paz e da Ecologia.
            Depois de falar da terra, da moradia e do trabalho como direitos sagrados, o Papa diz: “neste encontro, também falaram da Paz e da Ecologia”. Com muita objetividade, ele afirma: “é lógico: não pode haver terra, não pode haver teto, não pode haver trabalho se não temos paz e se destruímos o planeta”.
            Mostra, pois, a necessidade que todos e todas temos hoje de debater esses assuntos. “São temas tão importantes que os povos e suas organizações de base não podem deixar de debater. Não podem deixar só nas mãos dos dirigentes políticos. Todos os povos da terra, todos os homens e mulheres de boa vontade têm que levantar a voz em defesa desses dois dons preciosos: a paz e a natureza. A irmã mãe Terra, como chamava São Francisco de Assis”.
            Com realismo e ao mesmo tempo com preocupação, que mostra sua profunda solidariedade, Francisco declara: “há pouco tempo, eu disse, e repito, que estamos vivendo a terceira guerra mundial, mas em cotas. Há sistemas econômicos que, para sobreviver, devem fazer a guerra. Então, fabricam e vendem armas e, com isso, os balanços da economia que sacrificam o homem aos pés do ídolo do dinheiro, obviamente, ficam saneados. E não se pensa nas crianças famintas nos campos de refugiados, não se pensa nos deslocamentos forçados, não se pensa nas moradias destruídas, não se pensa, desde já, em tantas vidas ceifadas. Quanto sofrimento, quanta destruição, quanta dor!”.
            Fraternalmente e com muita ternura, o Papa diz: “hoje, queridos irmãos e irmãs, levanta-se em todas as partes da terra, em todos os povos, em cada coração e nos Movimentos Populares, o grito da paz: nunca mais a guerra!”.
            Falando da necessidade urgente de cuidar da natureza, o Papa denuncia: “um sistema econômico centrado no deus dinheiro também precisa saquear a natureza, saquear a natureza para sustentar o ritmo frenético de consumo que lhe é inerente. As mudanças climáticas, a perda da biodiversidade, o desmatamento já estão mostrando seus efeitos devastadores nos grandes cataclismos que vemos, e os que mais sofrem são vocês, os humildes, os que vivem perto das costas em moradias precárias, ou que são tão vulneráveis economicamente que, diante de um desastre natural, perdem tudo”.
            Enfim, lembra com confiança o plano de Deus sobre a Terra e o papel do ser humano em relação a ela. “Irmãos e irmãs, a criação não é uma propriedade da qual podemos dispor ao nosso gosto; muito menos é uma propriedade só de alguns, de poucos: a criação é um dom, é um presente, um dom maravilhoso que Deus nos deu para que cuidemos dele e o utilizemos em benefício de todos, sempre com respeito e gratidão”.
            Numa atitude de sincera humildade e sem nenhuma demagogia, Francisco agradece as preocupações e contribuições dos Movimentos Populares e assegura que elas estarão presentes na Encíclica sobre a Ecologia que está preparando. “Tenham a certeza de que as suas preocupações estarão presentes nela. Agradeço-lhes, aproveito para agradecer-lhes pela Carta que os integrantes da Via Campesina, da Federação dos Coletores de Materiais Recicláveis (Papeleiros) e tantos outros irmãos me fizeram chegar sobre o assunto”.
Ouçamos as palavras do nosso irmão, o Papa Francisco! Elas renovam a nossa esperança e fortalecem o nosso compromisso - que é o amor acontecendo na história humana e cósmica - com a causa da Paz e da Ecologia, fruto da Justiça.
“Como são numerosas tuas obras, Senhor! A todas fizeste com sabedoria. A Terra está repleta das tuas criaturas” (Salmo 104, 24).

            “Vou escutar o que diz o Senhor: Deus anuncia a Paz ao seu povo e seus fiéis, e aos que se convertem de coração. A salvação está próxima dos que o respeitam, e a glória habitará em nossa Terra. Amor e Fidelidade se encontram, Justiça e Paz se abraçam. A Fidelidade brotará da Terra, e a Justiça se inclinará do Céu. O Senhor nos dará a chuva, e nossa Terra dará seu fruto. A Justiça caminhará à frente dele, a salvação seguirá os seus passos” (ib. 85, 9-14).


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 08 de janeiro de 2015

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Discurso de Francisco aos Movimentos Populares - Trabalho é um direito sagrado –



          Neste 5º artigo sobre o Encontro Mundial de Movimentos Populares, destaco o 4º ponto marcante do Discurso do Papa Francisco aos Movimentos Populares: trabalho é um direito sagrado.
            Depois de falar da terra e da moradia como direitos sagrados, o Papa diz: “terceiro, trabalho. Não existe pior pobreza material - urge-me enfatizar isto -, não existe pior pobreza material do que a que não permite ganhar o pão e priva da dignidade do trabalho”.
Com muita objetividade e clareza, Francisco descreve a realidade do trabalho na sociedade atual. “O desemprego dos jovens, a informalidade e a falta de direitos trabalhistas não são inevitáveis, são o resultado de uma prévia opção social, de um sistema econômico que coloca o lucro acima do homem. Os ganhos econômicos, acima da humanidade ou acima do homem, são efeitos de uma cultura do descarte que considera o ser humano em si mesmo como um bem de consumo, que pode ser usado e depois jogado fora”.   
E ainda: “hoje, ao fenômeno da exploração e da opressão, soma-se uma nova dimensão, um matiz gráfico e duro da injustiça social; os que não podem ser integrados, os excluídos são resíduos, ‘sobrantes’. Essa é a cultura do descarte, e sobre isso gostaria de ampliar algo que não tenho por escrito, mas que lembrei agora. Isso acontece quando, no centro de um sistema econômico, está o deus dinheiro e não o homem, a pessoa humana. Sim, no centro de todo sistema social ou econômico, tem que estar a pessoa, imagem de Deus, criada para dar o nome às coisas do universo. Quando a pessoa é deslocada e vem o deus dinheiro, acontece essa inversão de valores”.
São palavras que nos questionam a todos e a todas. Não é o dinheiro que está a serviço da pessoa, mas a pessoa que está a serviço do dinheiro. E é nessa idolatria do dinheiro que consiste a iniquidade do sistema econômico, a injustiça estrutural ou o pecado estrutural.
Sem meias palavras e como verdadeiro profeta, o Papa denuncia as graves consequências desse sistema econômico que descarta as pessoas. A respeito do descarte e retomando o que já disse na Exortação Apostólica “A alegria do Evangelho” (EG), Francisco afirma: “temos que estar um pouco atentos ao que acontece em nossa sociedade”.
Enumera, pois, com realismo e ao mesmo tempo com preocupação, os diversos tipos de descarte que acontecem hoje em dia. “Descartam-se as crianças porque a taxa de natalidade em muitos países da terra diminuiu, ou descartam-se as crianças porque não se tem alimentação, ou porque são mortas antes de nascerem, descarte de crianças. Descartam-se os idosos, porque, bom, não servem, não produzem. Nem crianças nem idosos produzem. Então, sistemas mais ou menos sofisticados os vão abandonando lentamente”.
Com muita dor no coração, Francisco afirma: “e agora, como é necessário, nesta crise, recuperar um certo equilíbrio, estamos assistindo a um terceiro descarte muito doloroso, o descarte dos jovens. Milhões de jovens. Eu não quero dizer o dado, porque não o sei exatamente, e o que eu li parece um pouco exagerado, mas milhões de jovens descartados do trabalho, desempregados”.
Depois de lembrar que - segundo as estatísticas - nos países da Europa o desemprego de jovens chega a 40%, 50% e até 60%, o Papa reconhece: “são dados claros, ou seja, do descarte”. E conclui com um desabafo: “descarte de crianças, descarte de idosos, que não produzem, e temos que sacrificar uma geração de jovens, descarte de jovens, para poder manter e reequilibrar um sistema em cujo centro está o deus dinheiro, e não a pessoa humana”.
Enfim - agradecido aos trabalhadores e trabalhadoras excluídos e excluídas por sua persistência e perseverança - deixa-nos uma mensagem de esperança, mostrando que acredita na força dos Movimentos Populares. “Apesar disso, a essa cultura de descarte, a essa cultura dos sobrantes, muitos de vocês, trabalhadores excluídos, sobrantes para esse sistema, foram inventando o seu próprio trabalho com tudo aquilo que parecia não servir mais para nada... Vocês, com a artesanalidade que Deus lhes deu, com a sua busca, com a sua solidariedade, com o seu trabalho comunitário, com a sua economia popular, conseguiram e estão conseguindo... E, deixem-me dizer, isso, além de trabalho, é poesia. Obrigado”.
Francisco termina reafirmando os direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras. “Desde já, todo trabalhador, esteja ou não no sistema formal do trabalho assalariado, tem direito a uma remuneração digna, à segurança social e a uma cobertura de aposentadoria. Aqui há coletores de materiais recicláveis, recicladores, vendedores ambulantes, costureiros, artesãos, pescadores, camponeses, construtores, mineiros, operários de empresas recuperadas, todos os tipos de cooperativados e trabalhadores de ofícios populares que estão excluídos dos direitos trabalhistas, aos quais é negada a possibilidade de se sindicalizar, que não têm uma renda adequada e estável. Hoje, quero unir a minha voz à sua e acompanhá-los na sua luta”.
Diante de uma economia que mata (cf. EG, 53) - e mata silenciosamente - dentro de uma legalidade hipócrita, como se fosse a coisa mais natural do mundo, ouçamos a voz do Papa. Suas palavras proféticas fortalecem-nos na caminhada.
Como faz Francisco, confiemos na força libertadora e transformadora dos Movimentos Populares. Coloquemos os espaços de nossas Comunidades e Paróquias (salas, salões, Igrejas) a serviço de sua organização. Sejamos próximos e solidários para com eles. Enfim, participemos - como cidadãos e cidadãs, como cristãos e cristãs - de suas lutas por um outro mundo possível e necessário.

Para os e as que acreditam na mudança, a esperança nunca morre! Que o ano de 2015 traga a todos e todas nós muitas alegrias e muitas vitórias!




Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 01 de janeiro de 2015
A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos