sexta-feira, 27 de março de 2015

Sobre o momento político atual (I)


              Assistindo e, ao mesmo tempo, participando do debate público que nestes dias, de maneira acirrada e apaixonada, está se travando sobre o momento político atual e principalmente sobre os protestos em curso no Brasil inteiro, pretendo fazer - como pequena contribuição ao debate - algumas reflexões sobre o sistema capitalista neoliberal (o neoliberalismo puro e o neoliberalismo atenuado por políticas públicas compensatórias, chamado neodesenvolvimentismo), o projeto político do Governo Federal do PT e seus aliados (a nova e a velha burguesia), a reforma política por meio de uma Constituinte exclusiva e soberana (a mudança estrutural do sistema político), e o projeto político popular (a democracia popular).
            Neste primeiro artigo, começo refletindo sobre o sistema capitalista neoliberal, no qual vivemos. Ele é o “estado de mal-estar social” (http://laurocampos.org.br/2015/01/neoliberalismo-estado-de-mal-estar-social/). Ele é a raiz ou a causa última de todos os males sociais que levam o povo às ruas para protestar. Em linguagem teológico-moral, ele é hoje a concretização histórica do pecado social ou pecado estrutural. Nas manifestações públicas não podemos esquecer essa realidade.
O sistema capitalista neoliberal é um “sistema econômico iniquo” (Documento de Aparecida - DA, 385). A corrupção, a violência, a injustiça, a desumanidade e a imoralidade são constitutivas da própria estrutura do sistema e consideradas naturais.
As práticas pontuais de corrupção, de violência, de injustiça, de desumanidade e de imoralidade, que - quando descobertas - são denunciadas na mídia, provocam hipocritamente grandes escândalos. Na verdade - sem negar a responsabilidade pessoal e de grupos - elas são simples reflexos de uma iniquidade estrutural muito mais profunda, que é a iniquidade do sistema.
O papa Francisco afirma categoricamente que “o sistema social e econômico é injusto em sua raiz” e “um mal embrenhado nas estruturas”. E declara: “devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade social’. Essa economia mata. (...) Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, em que o poderoso engole o mais fraco. (...) O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do ‘descartável’, que, aliás, chega a ser promovida. (...) Os excluídos e excluídas não são ‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras’” (A Alegria do Evangelho - EG, 53 e 59).
            O nosso irmão Francisco lembra-nos também que “a necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar (...). Os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências, deveriam considerar-se apenas como respostas provisórias. Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais”.
E diz ainda: “a dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política econômica, mas às vezes parecem somente apêndices adicionados de fora para completar um discurso político sem perspectivas nem programas de verdadeiro desenvolvimento integral. Quantas palavras se tornaram molestas para este sistema! Molesta que se fale de ética, molesta que se fale de solidariedade mundial, molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta que se fale de defender os postos de trabalho, molesta que se fale da dignidade dos fracos, molesta que se fale de um Deus que exige um compromisso em prol da justiça. Outras vezes acontece que estas palavras se tornam objeto duma manipulação oportunista que as desonra. A cômoda indiferença diante destas questões esvazia a nossa vida e as nossas palavras de todo o significado” (EG, 202-203).
Os protestos dos Movimentos Sociais Populares e do povo em geral - sem deixar de denunciar e combater as práticas pontuais de corrupção (como a da Petrobras e outras), que são reflexos de um sistema estruturalmente corrupto - devem ter como foco principal o próprio sistema e apontar caminhos novos que levem a uma mudança de estruturas.
Os programas sociais de políticas públicas compensatórias do Governo Federal, do tipo Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Pro Uni, Luz para Todos, Mais Médicos e outros, são necessários, mas não bastam. Além de tudo, são programas que têm uma ambiguidade muito grande. De um lado, servem para atenuar os efeitos antissociais da desigualdade econômica vigente, injusta e imoral, e, de outro lado, servem para amortecer as lutas sociais, cooptar os Movimentos Sociais Populares (atrasando sua organização), legitimar e fortalecer o sistema econômico dominante, tranquilizar o mercado e evitar que o povo se revolte.
"A misericórdia (leia-se: as obras sociais ou os programas sociais de políticas públicas compensatórias) sempre será necessária, mas não deve contribuir para criar círculos viciosos que sejam funcionais para um sistema econômico iníquo. Requer-se que as obras de misericórdia sejam acompanhadas pela busca da verdadeira justiça social (...)" (DA, 385).
A respeito dos programas sociais do Governo Federal do PT e seus aliados, o economista Paulo Feldmann, professor da Faculdade de Economia da USP, escreve: “o Lula foi muito hábil, muito inteligente quando criou os programas sociais, principalmente o Bolsa Família. Ele pegou uma parcela que tinha no orçamento federal e criou o Bolsa Família. Não houve um imposto novo sobre os ricos. Foi um processo de distribuição de renda bem atípico, sem onerar os mais ricos. Não foi distribuição de renda, o Governo usou seus próprios recursos” (Diário da Manhã, 13 de março de 2015, p. 9).
Os programas sociais governamentais - embora necessários - não tiram dinheiro dos ricos e não mudam as estruturas da desigualdade social. Eles precisam ser acompanhados de políticas públicas, que abram caminhos novos e levem a uma mudança do sistema dominante. São justamente essas políticas públicas que devem ser o foco principal dos protestos daqueles e daquelas (pessoas, movimentos populares, movimentos sindicais e outras instituições) que lutam por um outro Brasil possível.
A reflexão do próximo artigo será sobre o projeto político do Governo Federal do PT e seus aliados (a nova e a velha burguesia).




Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 18 de março de 2015  

Ao senador Eunício Oliveira, o “coronel” do Brasil (Carta aberta)


“Que adianta ao ser humano
ganhar o mundo inteiro, se perde a própria vida?” (Mc 8, 36)

            Senador Eunício, ao constatar o poder político que o senhor tem hoje no Brasil, fiquei abismado e, ao mesmo tempo, fervi de indignação. O senhor pode, com razão, ser chamado: o “coronel” do Brasil. É o título honorífico que o senhor merece.
Na história do Acampamento Dom Tomás Balduino, na Fazenda Santa Mônica, em Corumbá de Goiás, o senhor conseguiu colocar de joelhos, aos seus pés, a presidenta Dilma Rousseff com seus ministros, o governador Marconi Perillo com seus secretários e o Judiciário Federal e Estadual (um dos mais atrasados do ponto de vista cultural e um dos mais atrelados aos detentores do poder econômico do ponto de vista social, do mundo), sobretudo a Comarca de Corumbá de Goiás, na pessoa do juiz Levine Raja Gabalha Artiaga, e o Tribunal de Justiça de Goiás, na pessoa do desembargador Marcos da Costa Ferreira. Parabéns, senador, pela sua esperteza diabólica! Foi certamente o demônio que ajudou o senhor a se tornar o “coronel” do Brasil. Como diz o Evangelho, neste mundo “os filhos das trevas são mais espertos que os filhos da luz” (Lc 16, 8).
            Senador Eunício, o Governo Federal (presidido pelo “Partido dos Traidores” - o novo PT) - diante das muitas denúncias de irregularidades levantadas - tinha a obrigação moral de vistoriar suas propriedades (a começar pela Fazenda Santa Mônica, parcialmente ocupada pelos Sem-Terra), de investigar a maneira como essas propriedades foram adquiridas, de verificar a legalidade das mesmas e de averiguar se os impostos foram pagos e se o foram conforme o valor das propriedades.
Infelizmente, senhor “coronel”, o Governo Federal não fez nada disso. É um Governo que vive de conchavos repugnantes, como (só para citar um exemplo recente) o jantar - pago com o dinheiro dos Trabalhadores/as - que há poucos dias a presidenta Dilma ofereceu ao PMDB. É um Governo que é tão mesquinho, tão covarde e tão acostumado ao “toma lá dá cá” (sem nenhuma Ética), que - no lugar de desapropriar por interesse social a Fazenda Santa Mónica para fins da Reforma Agrária Popular (existiam todas as condições legais e constitucionais para fazê-lo) - preferiu se ajoelhar aos seus pés, apoiando e sendo conivente com suas falcatruas. Que vergonha! Que delusão!
Senador Eunício - conforme dados amplamente divulgados na mídia - na sua Declaração ao TSE constam, em nome do senhor, 87 imóveis rurais em Corumbá de Goiás, 4 em Alexânia e 5 no Estado do Ceará. O valor total dos bens que o senhor declarou ao TSE é de R$ 99.022.714,17. Só a Fazenda Santa Mônica - para citar uma de suas propriedades - foi avaliada em R$ 4.232.060,00 e o senhor declarou ao TSE o valor de R$ 386.720,53.
Portanto - mesmo com a omissão criminosa do Governo Federal - se no Brasil houvesse um mínimo de justiça, só pelos dados apresentados (sem tomar em consideração outras denúncias levantadas, mas não investigadas), o seu mandato de senador deveria ser cassado e o senhor deveria ser preso, processado e condenado por sonegação. E a sonegação, como o senhor sabe, é um crime contra o povo.
A história do Acampamento Dom Tomás Balduino, pela organização solidária e pela prática heroica dos seus ocupantes (cerca de 3.500 famílias), foi - e continua sendo - uma história tão bonita que nos comoveu e edificou a todos e a todas.
Nessa história, senhor Eunício, os verdadeiros vencedores foram os Trabalhadores/as Sem Terra (com a solidariedade e o apoio de muitas pessoas, movimentos e instituições), que para evitar uma tragédia e a perda de vidas humanas, com muita dignidade, responsabilidade e sabedoria, acharam que no momento deviam recuar pacificamente, mas sem desistir do objetivo maior de transformar o imenso latifúndio da Fazenda Santa Mônica num grande assentamento.
O senhor, senador - que acha que a vida dos pobres não vale nada e pode ser sacrificada ao deus mercado.- foi o maior derrotado. Na sua autossuficiência, o senhor - por se considerar dono do mundo - teve a ousadia de enfrentar não só os Sem-Terra, mas o próprio Deus, que sempre está do lado dos pobres e injustiçados. Como religioso e ministro de Deus, digo-lhe com toda certeza que este seu comportamento, desumano e antiético, vai lhe custar muito caro. Aguarde! A justiça de Deus pode tardar, mas nunca falha!
            A nossa vida neste mundo, senador Eunício, é muito breve. O tempo é precioso e é graça de Deus. O senhor tem 62 anos e - acredite ou não - um dia (não muito distante) vai ter que se encontrar com Deus face a face, que lhe dirá: “não sei de onde você é. Afaste-se de mim, você que pratica injustiça!” (Lc 13, 27).
            Senhor Eunício, nestes dias de dor, mas de muita esperança de todos e todas que somos próximos e solidários aos nossos irmãos e irmãs sem terra, retomo, com toda a força da minha indignação, as “maldições” do profeta Isaias e do próprio Jesus contra os ricos, que são também contra o senhor e contra os que, como o senhor, defendem uma “economia da exclusão e da desigualdade social”, uma “economia que mata”, uma economia baseada na “cultura do descartável”, que considera os excluídos como “resíduos”, “sobras” (Papa Francisco. A Alegria do Evangelho, 53).
            “Ai daqueles que juntam casa com casa e emendam campo a campo, até que não sobre mais espaço e sejam os únicos a habitarem no meio do país. Deus dos exércitos jurou no meu ouvido. Suas muitas casas serão arrasadas, seus palácios luxuosos ficarão desabitados” (Is 5, 8-9).
            “Ai de vocês, os ricos, porque já têm a sua consolação! Ai de vocês, que agora têm fartura, porque vão passar fome! Ai de vocês, que agora riem, porque vão ficar aflitos e irão chorar!” (Lc 6, 24).
“Eu garanto a vocês: um rico dificilmente entrará no Reino do Céu. E digo ainda: é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus” (Mt 19, 23-24).
Senador Eunício, leia e reflita sobre a parábola do homem rico e do pobre Lázaro (cf. Lc 16, 19-31), que - atualizada e aplicada à nossa realidade rural - poderia ser chamada a parábola do grande latifundiário Eunício e do trabalhador sem terra Antônio (nome fictício), que só quer um pedaço de terra para produzir alimentos saudáveis e viver com dignidade, juntamente com sua família.

Enfim, senhor Eunício, considerando que a bondade e misericórdia de Deus são infinitas, faço votos que - enquanto ainda há tempo - aconteça com o senhor o que aconteceu com Zaqueu. Na presença de Jesus e tocado pela graça de Deus, que o levou a uma radical mudança de vida, Zaqueu disse: “a metade dos meus bens, Senhor, eu dou aos pobres; e, se roubei alguém, vou devolver quatro vezes mais” (Lc 19, 8). Ah! Se os ladrões de “colarinho branco” de hoje dessem aos pobres a metade dos seus bens e devolvessem quatro vezes mais aquilo que roubaram, teríamos uma sociedade muito diferente, muito mais justa e muito mais fraterna. O senhor não acha, “coronel” Eunício?! Siga o exemplo de Zaqueu. É o que desejo ao senhor, senador.




Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 10 de março de 2015  

Campanha da Fraternidade 2015


“Eu vim para servir” (cf. Mc 10, 45)

            Fazendo a memória dos 50 anos do Concílio Vaticano II, a Campanha da Fraternidade deste ano convida-nos a refletir - dentro do espírito da Quaresma, que é de conversão e mudança de vida - sobre a missão da Igreja na sociedade e no mundo de hoje.
            A Quaresma - tempo forte de graça de Deus - leva-nos a intensificar a prática da caridade (sentido bíblico da esmola), da oração e do jejum. A prática da caridade (do amor) consiste na partilha - que deve ser sempre mais radical - de tudo o que somos e de tudo o que temos, e faz-nos entrar em comunhão com Deus, com os irmãos e irmãs e com a natureza.
A prática da oração (pessoal e comunitária ou litúrgica) - que nos coloca em comunicação direta com Deus - manifesta e, ao mesmo tempo, fortalece a nossa comunhão com Ele, com os irmãos e irmãs e com a natureza.
A prática do jejum (no sentido bíblico) não é só deixar de comer algo ou fazer algum sacrifício para adquirir mais autocontrole e crescer na perfeição humana ou santidade, mas é, sobretudo, comprometer-se com a justiça, para que a nossa comunhão com Deus, com os irmãos e irmãs e com a natureza seja verdadeira e não hipócrita.
            “O jejum que eu quero - diz o Senhor - é este: acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar qualquer jugo; repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não se fechar à sua própria gente. Se você fizer isso, a sua luz brilhará como aurora, suas feridas vão sarar rapidamente, a justiça que você pratica irá à sua frente e a glória de Deus virá acompanhando você” (Is 58, 6-8).
            Podemos, portanto, dizer que a nossa comunhão (relação de amor sempre mais profunda) com Deus, com os irmãos e irmãs e com a natureza - que nos realiza e nos faz felizes como seres humanos (pessoas), filhos e filhas de Deus - acontece de modo interrelacionado e interativo, na prática (ou na vivência) da caridade, da oração e do jejum.
Apresento agora alguns elementos de teologia da Igreja (eclesiologia), que são luzes e norteiam a nossa missão na sociedade e no mundo de hoje.
1º Elemento: o reconhecimento - não só na teoria, mas na prática - da igualdade fundamental de todos os seres humanos, criados à imagem e semelhança de Deus.
"Deve-se reconhecer cada vez mais a igualdade fundamental entre todos e todas" (A Igreja no mundo de hoje - GS, 29). "Reina entre todos e todas verdadeira igualdade quanto à dignidade e ação comum" (A Igreja - LG, 32). "A razão principal da dignidade humana consiste na vocação do ser humano para a comunhão com Deus" (GS, 19). Por isso, "o mistério do ser humano só se torna claro verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado. (…) Cristo manifesta plenamente o ser humano ao próprio ser humano e lhe descobre a sua altíssima vocação" (GS, 22). "Todo aquele que segue Cristo, o Homem perfeito, torna-se ele também mais ser humano" (GS, 41). "A fé esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do ser humano. E por isso orienta a mente para soluções plenamente humanas" (GS, 11).
2º Elemento: a consciência que a Igreja, como Povo de Deus a serviço do Reino na sociedade e no mundo, é toda ministerial.   
Antes de tudo, precisamos reconhecer que "todos os seres humanos são chamados a pertencer ao novo Povo de Deus. Por isso este Povo, permanecendo uno e único, deve estender-se a todo o mundo e por todos os tempos, para que se cumpra o desígnio da vontade de Deus" (LG, 13).
Na perspectiva do Novo Testamento, a estrutura social da Igreja deve ser pensada dentro do binômio “Comunidade - Carismas e Ministérios”. Dentro desse binômio, “sublinham-se os elementos comuns a todos os cristãos e cristãs e, ao mesmo tempo, valorizam-se as diferenças carismáticas, ministeriais e de serviço. Neste sentido, os termos que designam os membros do Povo de Deus acentuam a condição comum a todos os renascidos pela água e pelo Espírito: 'santos', 'eleitos', 'discípulos', 'irmãos'” (CNBB. Missão e Ministérios dos Cristãos Leigos e Leigas, abril de 1999, 105).
3º Elemento: a "comunhão" entre os diferentes serviços e ministérios na Igreja, em sua missão na sociedade e no mundo.
As relações entre os diferentes serviços e ministérios na Igreja, em sua missão na sociedade e no mundo, devem ser relações de "comunhão". Nas relações de "comunhão" não ha espaço para relações de "dependência", de “subordinação”, de "submissão", de "dominação", de "inferioridade" ou "superioridade". Nas relações de "comunhão" todos e todas - na diversidade dos serviços e ministérios - são sujeitos conscientes e responsáveis de suas opções, atitudes e atos.
Na Igreja as palavras "poder", "autoridade", "hierarquia", "obediência", não têm (ou, ao menos, não deveriam ter) o mesmo sentido que têm na sociedade, sobretudo na sociedade capitalista de hoje.
"Vocês sabem: aqueles que se dizem governadores das nações têm poder sobre elas, e os seus dirigentes têm autoridade sobre elas. Mas, entre vocês não deverá ser assim: quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servidor de vocês, e quem de vocês quiser ser o primeiro, deverá tornar-se o servo de todos" (Mc 10, 42-44).
4º Elemento: a valorização do "senso da fé" do Povo cristão.
Pelo "senso da fé" o conjunto dos fiéis, "desde os Bispos até os últimos fiéis leigos, apresenta um consenso universal sobre questões de fé e costumes” (LG, 12).
5º Elemento: a escuta dos "sinais dos tempos".
"Para desempenhar sua missão, a Igreja, a todo momento, tem o dever de perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal modo que possa responder, de maneira adaptada a cada geração, às interrogações eternas sobre os significados da vida presente e futura e de suas relações mútuas. É necessário, por conseguinte, conhecer e entender o mundo no qual vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole frequentemente dramática" (GS, 4).
6º Elemento: a opção pelos empobrecidos, oprimidos e excluídos.  
A opção pelos empobrecidos, oprimidos e excluídos (os “descartados”, as “sobras” da sociedade) é uma opção profundamente evangélica - profética e libertadora - e não meramente ideológica (embora as ideologias sejam uma mediação necessária, por ser o ser humano um ser histórico, situado e datado). A opção pelos empobrecidos, oprimidos e excluídos é o caminho de Jesus de Nazaré, aberto a todos e a todas (inclusive ao jovem rico e a Zaqueu), mas a partir da manjedoura de Belém (e não a partir do palácio do imperador de Roma).
Precisamos, portanto, fazer a opção pelos empobrecidos, oprimidos e excluídos, para - a partir deles e junto com eles - participar ativamente do processo de libertação do ser humano todo e de todos os seres humanos na sociedade e no mundo, segundo o projeto de Deus. O nosso referencial deve ser sempre a prática de Jesus de Nazaré. "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para libertar os oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor" (Lc. 4, 18-19).
É justamente essa prática de Jesus de Nazaré que deve iluminar e nortear o nosso compromisso nas Comunidades - sobretudo nas CEBs - e nas Pastorais Sociais e Ambientais.  
7º Elemento: a tomada de posição contra o sistema capitalista neoliberal.
Devemos lutar, com clareza e firmeza, contra o sistema capitalista neoliberal e denunciar que é um "sistema econômico iníquo" (Documento de Aparecida - DA, 385) ou - como afirma Paulo VI - um "sistema nefasto", porque considera "o lucro como o motivo essencial do progresso econômico, a concorrência como lei suprema da economia, a propriedade privada dos bens de produção como um direito absoluto, sem limites nem obrigações correspondentes" (O Desenvolvimento dos Povos - PP, 26).
8º. Elemento: a aliança com os Movimentos Populares, Organizações Sindicais e outras.
            Precisamos ser aliados, ou organicamente ligados (conectados), a todas as forças sociais que, como os Movimentos Populares, Organizações Sindicais e outras, são portadoras do novo e fazem acontecer na sociedade e no mundo - através de mudanças não só conjunturais, mas sobretudo estruturais - um projeto social (sócio-econômico-político-ecológico-cultural) alternativo, um projeto de um "outro mundo possível", que - como afirmam as Semanas Sociais Brasileiras - é o Projeto Popular ou, à luz da Fé, é o Reino de Deus acontecendo na história do ser humano e do mundo.
A nossa missão de discípulos/as missionários/as de Jesus de Nazaré nasce do Espírito Santo e deve nos levar à convivência (proximidade) com a vida sofrida do povo (empobrecido, oprimido e excluído); à prática da "com-paixão", da solidariedade e ao desejo de caminhar juntos.
“As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos seres humanos de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos/as de Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração” (GS, 1).

Enfim, podemos dizer que "o seguimento de Jesus é fruto de uma fascinação que responde ao desejo de realização humana, ao desejo de vida plena. O discípulo é alguém apaixonado por Cristo, a quem reconhece como mestre, que o conduz e acompanha" (DA, 277).
Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 25 de fevereiro de 2015  

terça-feira, 3 de março de 2015

Acampamento Dom Tomás Balduíno Cadê o Governo dos Trabalhadores?


             Estamos na iminência de um novo Parque Oeste Industrial, de uma nova tragédia anunciada para o dia 4 (quarta-feira) do corrente mês. O nosso Judiciário é total e descaradamente atrelado aos interesses econômicos dos poderosos. O juiz da Comarca de Corumbá de Goiás, Levine Raja Gabalha Artiaga - que deu a liminar de despejo - e o desembargador do Tribunal de Justiça de Goiás, Marcos da Costa Ferreira - que dia 2 (segunda-feira) manteve a liminar - são um exemplo típico desse atrelamento. A Lei está acima da Vida. A Justiça é injusta e viola permanentemente os Direitos Humanos fundamentais, como o Direito à Terra, o Direito à Moradia e o Direito ao Trabalho, que - diz o Papa Francisco - são Direitos Sagrados para todos e para todas.
            Pergunto: cadê o Governo Federal dos Trabalhadores/as? Por que o Governo não desapropria os latifúndios improdutivos para fins de uma verdadeira Reforma Agrária Popular? Por que é tão omisso e covarde? Tudo - inclusive a desavergonhada falta de Ética - é justificado em nome da governabilidade. Que governabilidade é essa? O que os Trabalhadores/as querem é a governabilidade popular, que abre caminhos para uma mudança política estrutural e um novo modelo de sociedade, e não a governabilidade capitalista neoliberal, que serve para fortalecer o sistema dominante.
            O caso do senador Eunício de Oliveira é paradigmático. Existem graves denúncias sobre a maneira como o senhor Eunício adquiriu suas pretensas propriedades (incluindo a Fazenda Santa Mônica, parcialmente ocupada pelos Sem-Terra), sobre a maneira como “se livrou” dos pequenos proprietários, sobre a maneira como adquiriu a documentação das propriedades, sobre a maneira como sonegou os impostos, e outras. 
Diante de tudo isso, o que nós temos é o silêncio absoluto do Governo Federal. Inclusive - conforme me contaram - numa reunião de negociação, um representante do Executivo deu a entender claramente que o Governo não quer briga com o senador. Quanta omissão! Quanta mesquinhez! Quanta podridão!
Presidenta Dilma, deixe de ser covarde! Seja mulher! Honre o seu passado! O Governo Federal tem a obrigação moral (se é que ainda sabe o que é obrigação moral) de averiguar as denúncias contra o senhor Eunício e - se comprovadas - de processar, julgar e condenar o senador. Se o Governo não fizer isso, torna-se conivente com a criminalidade. E quem é conivente com a criminalidade, é também criminoso. Chega de tanta maracutaia e de tanta sem-vergonhice!
O nosso total apoio e a nossa irrestrita solidariedade aos Sem-Terra, ocupantes do Acampamento Dom Tomás Balduíno. Irmãos e irmãs, como dizia o próprio Dom Tomás em outra situação semelhante, “eu só posso abençoar a resistência de vocês”. Deus está do lado de vocês e os responsáveis por um eventual despejo violento lembrem-se que, combatendo contra vocês, estarão combatendo contra Deus. E combater contra Deus vai ficar muito caro. Deus é justo e está sempre do lado dos injustiçados.
Apesar de tudo, nessas alturas dos acontecimentos, ainda espero que o governador de Goiás, Marconi Perillo e a presidenta Dilma Rousseff, reflitam e coloquem a mão na consciência antes de cometer mais uma barbárie contra cerca de três mil e quinhentas famílias de trabalhadores e trabalhadoras. O governador e a Presidenta têm a autoridade de - antes de cumprir a liminar de despejo - estipular um prazo razoável para que se busque uma solução através do diálogo e dentro de critérios de justiça..
            Faço um último apelo aos policiais e aos seus comandantes que - se não prevalecer o bom senso - serão os executores do despejo dos ocupantes do Acampamento Dom Tomás Balduíno: em nome da “objeção de consciência” (que é praticada em muitos países do mundo inteiro) desobedeçam. Sigam o exemplo heroico daquele trabalhador que, dirigindo um trator, se negou a derrubar o barraco de um outro trabalhador e preferiu ser preso.
O próprio Jesus de Nazaré - em sua época - praticou muitas vezes a desobediência civil e religiosa para defender a verdade e a justiça.

            Diante da proibição do Sinédrio de ensinar em nome de Jesus, Pedro e os outros apóstolos responderam: “é preciso obedecer antes a Deus do que aos homens” (At 5, 29). É isso o que nós devemos fazer no caso do Acampamento Dom Tomás Balduíno e em outros casos semelhantes! Desapropriação da Fazenda Santa Mônica, já! Reforma Agrária Popular, já!

Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
                                                                                                                                                                      Goiânia, 03 de março de 2015  

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Sobre a Ocupação “Sonho Real”


Uma reportagem que me deixou indignado

            Costuma-se dizer - e é a pura verdade - que todo ponto de vista é a vista de um ponto. O ponto desde o qual eu vejo (ou, ao menos, esforço-me para ver) a realidade é o ponto desde os Direitos Humanos e, no nosso caso concreto, desde o Direito à Moradia, que - como diz o Papa Francisco - é um direito sagrado. Portanto, o ponto desde o qual eu vejo a realidade não é o ponto desde a especulação imobiliária, que é parte integrante de “um sistema econômico iníquo” (Documento de Aparecida - DA, 385)
            Lendo a reportagem de O Popular, de 16 de fevereiro deste ano (capa e p, 5), “10 anos depois - O bairro que surgiu da invasão do Parque Oeste”, fiquei profundamente indignado. Antes de tudo, não se trata de “invasão”, mas de “ocupação” de um terreno que não tinha, havia muitos anos, nenhuma função social. O que é bem diferente! A leitura que a reportagem faz do despejo violento da Ocupação “Sonho Real” - a cinicamente chamada “Operação Triunfo” - é desde o ponto de vista dos “coronéis urbanos” (leia: os donos das grandes imobiliárias de Goiânia).
            Citando João Batista de Deus, professor do Instituto de Estudos Sócio-Ambientais da Universidade Federal de Goiàs - UFG, o título de um dos textos da reportagem é: “sem desocupação, o problema ficaria maior”. No próprio texto, a reportagem diz: “segundo o pesquisador, se houvesse desapropriação, naquele contexto, inúmeros grupos iriam criar novas ocupações, gerando um barril de pólvora na habitação”.
Professor, esse é o ponto desde o qual os “coronéis urbanos”, que são os que de fato mandam em Goiânia, veem a realidade. Eles fizeram o governador Marconi Perillo voltar atrás, depois de declarar em entrevista coletiva que estava decidida a desapropriação. O povo fez até festa. Com seu poder econômico, os “coronéis urbanos” transformaram o governador num mentiroso público, ou seja, num fantoche. Num documento do Governo Estadual (eu vi com os meus olhos) estava escrito: “essa área é imprópria para habitação popular”.
Segundo o ponto desde o qual os sem-teto veem a realidade, criar novas ocupações não gera nenhum barril de pólvora, mas abre caminhos para o reconhecimento de um dos Direitos Humanos fundamentais de toda pessoa, que é o Direito à Moradia.
            Atualmente, vivemos numa sociedade, na qual “a exclusão virou princípio da organização socioeconômica, a lei do mercado, da competitividade. Quem não consegue competir deve desaparecer, quem não consegue consumir deve sumir. Escondemos favelas por trás de placas publicitárias. Que os feios, os aleijados, os idosos, os doentes de Aids (e - acrescento eu - os sem-teto) não poluam os nossos cartões postais” (Vida Pastoral, janeiro-fevereiro de 2015, p. 60).
            “Hoje - diz o Papa Francisco - devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da desigualdade’. Essa economia mata. (...) O ser humano é considerado, em si mesmo, como um bem de consumo que se pode usar e depois lançar fora. Assim teve início a cultura do ‘descartável’, que, aliás, chega a ser promovida. Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e opressão, mas de uma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder, já não está nela, mas fora. Os excluídos não são ‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras’” ( A Alegria do Evangelho - EG, 53).
            A área da Ocupação “Sonho Real” - independentemente da questão da Justiça - tinha todos os requisitos legais e constitucionais para ser desapropriada.  Inclusive, o que o Poder Público gastou depois do despejo violento foi muito mais do que o valor da desapropriação. Para construir 2.500 casas no Residencial Real Conquista (um dos bairros do Município de Goiânia mais distantes) - prometidas como indenização pelas casas destruídas - o Governo do Estado de Goiás demorou quase dez anos. Após o término de cada etapa, as casas construídas eram entregues em cerimônia oficial com toda demagogia, como se fossem um presente do governador “bonzinho” e não um direito do povo. O governador sempre tentou empurrar debaixo do tapete a vergonhosa história do Parque Oeste Industrial e sempre fingiu não saber que as casas, construídas a passos de tartaruga, eram uma conquista da luta persistente dos sem-teto.
            Para o Estado de Goiás e a Prefeitura de Goiânia (em conluio com o Poder Judiciário), totalmente submissos aos interesses dos “coronéis urbanos”, o importante não era o dinheiro necessário para a desapropriação da área, mas dar um castigo (uma lição exemplar) aos sem-teto, para que nunca mais tivessem a ousadia de ocupar outras áreas, desafiando os “coronéis urbanos” e seus empreendimentos imobiliários.
            A reportagem de O Popular, que aparentemente pretende ser neutra (no comportamento humano não há neutralidade), na realidade toma o partido dos “coronéis urbanos” e o justifica.
            Professor João Batista de Deus, não existe somente o ponto desde o qual os “coronéis urbanos” veem a realidade, mas existe também o ponto desde o qual os sem-teto veem a realidade, que é o dos Direitos Humanos. Para esses, a desapropriação da área da Ocupação “Sonho Real” teria sido uma grande conquista e teria fortalecido a organização dos Movimentos Populares dos Sem-Teto. 
Mesmo, porém, que os sem-teto tenham perdido essa luta, os “coronéis urbanos” e todos os poderosos - que se acham donos do mundo - não se iludam. Lembrem-se que os Movimentos Populares dos Sem-Teto podem estar momentaneamente acuados, mas não vencidos. Um sinal concreto disso é o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que está se organizando cada vez mais no Brasil inteiro, sobretudo nas grandes cidades. Aguardem!
Uma derrota traz muito sofrimento para os trabalhadores, mas a médio e longo prazo, traz também muita vontade de se organizar e de lutar, renovando a esperança da vitória final.
            O Papa Francisco, em outubro de 2014, promoveu o Encontro Mundial dos Movimentos Populares, manifestando em seu Discurso toda solidariedade e apoio a suas lutas. É um grande sinal dos tempos!
            Enfim, a reportagem de O Popular teve também um lado positivo: serviu para dar maior visibilidade a Eronilde, viúva de Pedro Nascimento, jovem de 27 anos, assassinado a queima-roupa durante a “Operação Triunfo”. Eronilde tornou-se uma grande e incansável lutadora pelos Direitos Humanos, sobretudo pelo Direito à Moradia. Ela é uma mulher extraordinária e uma verdadeira líder popular!
            Termino afirmando: tenho certeza que os empreendimentos imobiliários (25 condomínios verticais) da área da Ocupação “Sonho Real” - ensopada de sangue inocente - não são abençoados por Deus. “Ai daqueles que juntam casa com casa e emendam campo a campo, até que não sobre mais espaço e sejam os únicos a habitarem no meio do país. Deus dos exércitos jurou no meu ouvido. Suas muitas casas serão arrasadas, seus palácios luxuosos ficarão desabitados” (Is 5, 8-9).

            Os responsáveis, diretos e indiretos, do massacre do Parque Oeste Industrial - que foi a pior barbárie de toda a história de Goiânia - lembrem-se sempre: Deus é justo e sua justiça não falha!



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 18 de fevereiro de 2015   

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Parque Oeste Industrial: 10 anos de impunidade


Todo ano, no dia de 16 de fevereiro, não podemos deixar de fazer a memória do despejo dos Moradores da Ocupação “Sonho Real”, no Parque Oeste Industrial, em Goiânia - GO, para que tamanha barbárie humana nunca mais aconteça.
À época, apesar de o governador Marconi Perillo ter prometido publicamente que não iria mandar retirar as famílias da Ocupação “Sonho Real” e que estava decidida a desapropriação da área, de 6 a 15 de fevereiro de 2005, de 0 às 6h, a Polícia Militar do Estado de Goiás começou a ação de reintegração de posse, realizando a cinicamente chamada "Operação Inquietação", que foram dez dias de tortura física e psicológica coletiva. Cercou a área com viaturas, impediu a entrada e a saída de pessoas e cortou o fornecimento de energia elétrica. Com as sirenes ligadas, com o barulho de disparos de armas de fogo, com a explosão de bombas de efeito moral, gás de pimenta e lacrimogêneo, a Polícia Militar promoveu o terror entre os Moradores da Ocupação e provocou traumas psicológicos nas crianças. Que maldade! Que crueldade! Nenhuma lei permite uma Operação noturna criminosa como essa.
No dia 16 de fevereiro de 2005, a Polícia Militar do Estado de Goiás realizou uma verdadeira Operação Militar de Guerra, também cinicamente chamada "Operação Triunfo". Em uma hora e quarenta e cinco minutos, cerca de 14.mil pessoas foram despejadas de suas moradias de maneira violenta, truculenta e sem nenhum respeito pela dignidade da pessoa humana. A Operação Militar produziu duas vítimas fatais (Pedro e Vagner), 16 feridos à bala, tornando-se um desses paraplégico (Marcelo Henrique) e 800 pessoas detidas (suspeita-se com razão que o número dos mortos e feridos seja bem maior).
Como já dissemos muitas vezes, mas nunca é demais repeti-lo, nessas Operações Militares criminosas, ilegais, inconstitucionais e imorais, todos os Direitos Humanos fundamentais foram gravemente violados: o Direito à Vida, o Direito à Moradia, o Direito ao Trabalho, o Direito à Saúde, o Direito à Alimentação e à Água, os Direitos da Criança e do Adolescente, os Direitos da Mulher, os Direitos dos Idosos e os Direitos das Pessoas com Necessidades Especiais.
Depois do despejo forçado e violento, e depois de passar uma noite acampadas na Catedral de Goiânia - onde aconteceu também o velório de Vagner e Pedro num clima de muita indignação e sofrimento - cerca de mil famílias (aproximadamente 2.500 pessoas), que não tinham para onde ir, ficaram alojadas nos Ginásios de Esportes dos Bairros Novo Horizonte e Capuava (por mais de três meses) e, em seguida, no Acampamento do Grajaú (por mais de três anos) como verdadeiros refugiados de guerra. Nesse período, diversas pessoas - sobretudo crianças e idosos - morreram em consequência das condições subumanas de vida, vítimas do descaso do Poder Público do Estado de Goiás e da Prefeitura de Goiânia. Foi a pior barbárie de toda a história de Goiânia, cometida pelo Poder Público e hipocritamente legalizada.
Em 16 de fevereiro deste ano de 2015, a “Operação Triunfo” - apesar de muitos esforços no sentido de exigir justiça e a “federalização” do caso - completa 10 anos de impunidade. Que vergonha para a Justiça de Goiás e do Brasil!
Os responsáveis por essa iniquidade, praticada contra os pobres, aguardem a justiça de Deus!  Ela pode tardar, mas nunca falha!
“Vivemos - diz o Papa Francisco - em cidades que constroem torres, centros comerciais, fazem negócios imobiliários... mas abandonam uma parte de si nas margens, nas periferias. Como dói escutar que as Ocupações pobres são marginalizadas ou, pior, quer-se erradicá-las! São cruéis as imagens dos despejos forçados, dos tratores derrubando barracos, imagens tão parecidas às da guerra. E isso se vê hoje” (Discurso de Francisco aos Movimentos Populares, outubro de 2014). Meditemos!
Que a memória dos principais fatos, ocorridos antes, durante e depois do despejo dos Moradores da Ocupação “Sonho Real”, fortaleça o nosso compromisso com a construção de uma nova sociedade: a sociedade do “bem-viver” e do “bem-conviver”, que - à luz da Fé - é o Reino de Deus acontecendo na história do ser humano e do mundo. O “Sonho Real” está vivo! Ele continua!
Leia também na internet o artigo “16 de fevereiro de 2005: uma data que não pode ser esquecida” (fevereiro de 2014).

Em tempo: alertamos a sociedade sobre o perigo que a Ocupação “Acampamento Dom Tomás Balduino”, em Corumbá de Goiás, se transforme num novo Parque Oeste Industrial. Esperamos que a sociedade se mobilize em favor dos ocupantes do Acampamento e que o Poder Público (Estadual e Federal) tome com urgência as providências cabíveis, para que os direitos à Terra, à Moradia e ao Trabalho - que, como diz o Papa Francisco, são direitos sagrados - sejam respeitados. 

Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
                                                                                                                                                   Goiânia, 12 de fevereiro de 2015   

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Carta dos Excluídos aos Excluídos


- Declaração Final do Encontro Mundial dos Movimentos Populares (2º parte) -

Neste artigo continuo a apresentação - sempre com alguns comentários - da “Carta dos Excluídos aos Excluídos”.
8. Falando que a situação das mulheres golpeadas pelo sistema vigente merece particular atenção, os participantes do Encontro afirmam: “reconhecemos nessa realidade a urgente necessidade de um compromisso profundo e sério com essa causa justa e histórica de todas nossas companheiras, motor de lutas, processos e propostas de vida, emancipatórias e inspiradoras”. Exigem também “a finalização da estigmatização, descarte e abandono das crianças e jovens, especialmente os pobres, afrodescendentes e migrantes. Se as crianças não têm infância, se os jovens não têm projeto, a Terra não tem futuro”. Que clareza! Que objetividade!
9. Com firmeza declaram: “longe de ficarmos na autocompaixão e nos lamentos por todas estas realidades destruidoras, os Movimentos Populares, em particular os reunidos neste Encontro, reivindicamos que os excluídos, os oprimidos, os pobres não resignados, organizados, podemos e devemos enfrentar com todas nossas forças a caótica situação a que este sistema nos levou”. Para conseguirem alcançar esse objetivo, “foram compartilhadas inúmeras experiências de trabalho, organização e luta que têm permitido a criação de milhões de fontes de trabalho digno no setor popular da economia, a recuperação de milhões de hectares de terra para a agricultura camponesa e a construção, integração, melhoramento ou defesa de milhões de moradias e comunidades urbanas no mundo”. E declaram: “a participação protagonizada pelos setores populares em democracias sequestradas ou diretamente plutocracias é indispensável para as transformações de que necessitamos”.
10. Considerando “o especial contexto deste Encontro e a inestimável contribuição da Igreja Católica que, encabeçada pelo Papa Francisco, permitiu sua realização”, os participantes do Encontro afirmam: “detivemo-nos para analisar o marco de nossas realidades, o imprescindível aporte da doutrina social da Igreja e o pensamento de seu Pastor para a luta por justiça social. Nosso material principal de trabalho foi a ‘Alegria do Evangelho’ (EG), que levou em conta a necessidade de recuperar pautas éticas de conduta na dimensão individual, grupal e social da vida humana. É razoável destacar a participação e intervenção de numerosos sacerdotes e bispos católicos ao longo de todo o Encontro, encarnação viva de todos aqueles agentes pastorais leigos e consagrados, comprometidos com as lutas populares que, consideramos, devem ser reforçados no seu importante trabalho”. É essa a missão dos verdadeiros seguidores e seguidoras de Jesus!
11. Declaram ainda: “todos e todas, muitos de nós católicos, pudemos assistir a celebração de uma Missa na Catedral de São Pedro, celebrada por um de nossos anfitriões, o Cardeal Peter Turkson, onde foram apresentados como oferendas três símbolos de nossos anseios, carências e lutas: um carro de papelão, frutos da terra camponesa e uma maquete de uma casa típica dos bairros pobres. Pudemos contar com a presença de um importante número de bispos de todos os continentes”. Tudo isso fortalece a nossa esperança!
12. Com gratidão, reconhecem a grande contribuição do Papa Francisco e sua solidariedade fraterna. “Neste ambiente de debate apaixonado e fraternidade intercultural, tivemos a inesquecível oportunidade de assistir a um momento histórico: a participação do Papa Francisco no nosso Encontro, que sintetizou em seu Discurso grande parte de nossa realidade, nossas denuncias e nossas propostas. A claridade e contundência de suas palavras não admitem duas interpretações e reafirmam que a preocupação pelos pobres está no centro do Evangelho. Em coerência com suas palavras, a atitude fraterna, paciente e cálida de Francisco com todos e cada um de nós, em especial com os perseguidos, também expressa sua solidariedade com nossa luta, tantas vezes desvalorizada e prejudicada, inclusive perseguida, reprimida ou criminalizada”. Sigamos o exemplo do nosso irmão Francisco!
13. Consideram também como momento importante “a participação do irmão Evo Morales, presidente da Assembleia Mundial dos Povos Indígenas, que participou em caráter de dirigente popular e nos ofereceu uma exposição centrada na crítica ao sistema capitalista e em tudo o que os excluídos podem fazer em relação à terra, trabalho, moradia, paz e ambiente, quando nos organizamos e temos acesso a posições de poder, de um poder entendido como serviço e não como privilégio. Seu abraço com Francisco nos emocionou e ficará para sempre em nossa memória”.
14. Enfim, os participantes do Encontro afirmam: “entre os encaminhamentos imediatos do Encontro, levamos duas coisas: a ‘Carta dos Excluídos aos Excluídos’ para trabalhar com as bases dos setores e Movimentos Populares - a qual nos comprometemos a distribuir massivamente junto ao Discurso do Papa Francisco - e as memórias, com a proposta de criar um espaço de Interlocução permanente entre os Movimentos Populares e a Igreja”. É mais um motivo para acreditar que um outro mundo é possível e necessário!
15. Terminando, fazem um pedido. “Junto a este breve comunicado, pedimos especialmente a todos os trabalhadores e trabalhadoras da imprensa que nos ajudem a difundir a versão completa do Discurso do Papa Francisco que, repetimos, sintetiza grande parte de nossa experiência, pensamentos e anseios. Repitamos juntos: Terra, Teto e Trabalho são direitos sagrados! Nenhum trabalhador sem direitos! Nenhuma família sem moradia! Nenhum camponês sem terra! Nenhum povo sem território!”. E exclamam: “viva os pobres que se organizam e lutam por uma alternativa humana à globalização excludente! Longa vida ao Papa Francisco e sua Igreja pobre para os pobres!”. É essa a Igreja que nós queremos!

O Encontro Mundial dos Movimentos Populares é, no mundo atual, a estrela de Belém, que - como à época conduziu os Reis Magos - nos conduz hoje ao Menino Jesus na manjedoura. Sigamos a estrela e sejamos estrela! Parafraseando João XIII e Francisco, os cristãos e cristãs sejamos Igreja pobre, para os pobres, com os pobres e dos pobres!



Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP),
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 05 de fevereiro de 2015
A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos