sexta-feira, 27 de maio de 2011

Um transporte coletivo caótico e desumano

Os usuários do transporte coletivo estão indignados com o aumento da passagem de ônibus, sem as melhorias prometidas na operação do sistema em 2008. No dia 21/05/11, em toda a região metropolitana de Goiânia, a passagem passou de R$ 2,25 para R$ 2,50 e a do Eixo Anhanguera passou de R$ 1,15 para R$ 1,25. “O reajuste foi definido em reunião da Câmara Deliberativa do Transporte Coletivo (CDTC), na noite da última quarta feira (18), com base numa planilha de custo apresentada pela Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos (CMTC)” (Diário da Manhã, 21/05/11, p. 2). No dia 20 de maio, um dia antes do aumento da tarifa e por causa do próprio aumento, os usuários do transporte coletivo tiveram muita dificuldade para adquirir bilhetes de sit pass.
O reajuste do valor das passagens de ônibus (o contrato prevê que seja anual) é calculado com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), aumento do salário dos motoristas e elevação do óleo diesel. Segundo o Sindicato das empresas de Transporte Urbano Coletivo (Setransp), as empresas não calculam tarifas, mas simplesmente repassam os custos do sistema à CMTC, numa planilha técnica, para que ela faça o cálculo.
O aumento só não ocorreu no ano passado (o último foi em 2009) porque “nem as empresas nem o Poder Público cumpriram todos os investimentos prometidos para o setor em março de 2008, quando foram renovados os contratos de concessão para a exploração do serviço. Novos abrigos, nova frota, reforma e ampliação de terminais e garagens, e o Centro de Controle Operacional (CCO) deveriam ser realizados em cinco anos, e até agora foram feitos parcialmente” (O Popular, 19/05/11, p. 3). Em janeiro/11, numa reunião extraordinária da CDTC, os prazos para o cumprimento das metas foram estendidos em mais um ano.
Segundo um engenheiro, ex-integrante da CDTC, que pediu sigilo da identidade, “existe a prática, por parte dos operadores (do sistema do transporte coletivo), de esperar que ônibus fiquem lotados para cumprir rotas e reduzir custos para as empresas”. Segundo ele, “a fiscalização da CMTC é ‘fantasiosa’ quanto ao cumprimento de planilhas e que a CDTC sempre delibera sobre renovação de concessões e aumento de tarifas, mas jamais sobre as operações”. Afirma textualmente: “Os fiscais não atuam, não há multas por atrasos. Há redução da frota com o argumento de reduzir custos e baixar as tarifas. Mas isso só reduz custos para eles mesmos. Porque, para o usuário, isso significa atrasos constantes e superlotação”. O engenheiro diz ainda que as planilhas não são cumpridas. “Terminais onde havia nove ônibus que atendiam três bairros passaram a operar com seis veículos. Para ajustar as planilhas, os operadores atrasam saídas, quando justamente há mais usuários à espera, o que gera superlotação. A prática e conhecida como ‘planilhão’”. E conclui com as palavras: “Deveriam colocar mais ônibus para reduzir intervalos de espera” (Ib.).
Quantas artimanhas que, por baixo dos panos, as empresas inventam em sua ganância e em sua sede de lucro, às custas do sofrimento do povo! È realmente uma grande injustiça social!
Vejam que situação trágica! “Noite de caos. Terminal destruído, ônibus apedrejados, bombas de efeito moral, correria, usuários passando mal e outros sendo presos fizeram parte do cenário de guerra na noite de 20/05, no Terminal Padre Pelágio em Goiânia” (Diário da Manhã, 21/05/11, 1ª e 2ª páginas, Manchetes).
A causa imediata do caos parece ter sido um acidente entre dois caminhões e a queda de energia na subestação do setor Campinas, que – segundo a imprensa noticiou – deixaram o trânsito congestionado e impediram a chegada dos ônibus no terminal. Na realidade, porém, esse fato só foi o estopim final. A verdadeira causa é que a paciência do povo, que precisa todo dia do transporte coletivo para ir ao trabalho, para voltar para casa e para outras necessidades, chegou no seu limite, ou seja, esgotou.
Não dá mais para aguentar tanto descaso, tanta falta de responsabilidade do Poder Público a respeito do transporte coletivo, que é um dos serviços básicos imprescindíveis. Entra governo, sai governo, e a situação caótica e desumana continua a mesma. Ônibus superlotados, sujos, muitos deles em condições precárias, e com constantes atrasos. Parecem mais ônibus de carga do que ônibus de transporte de pessoas humanas. É a total falta de consideração e de respeito pela dignidade do povo trabalhador. É uma desumanidade e uma imoralidade pública estrutural e, podemos dizer, legalizada.
As opiniões dos usuários do transporte coletivo sobre o aumento da passagem são muito significativas e reveladoras. Citemos algumas: “Pagaria até mais na passagem se houvesse serviço de qualidade. Do jeito que está, de graça é caro” (Hélio Junior). “Cadê a qualidade do serviço prestado que justifica esse aumento?” (Marcelo de Sá). “Gostaria de ver a planilha de cálculos, cronograma de investimentos e a fundamentação disso tudo” (Alex De Martini). “Isso é resultado do abuso de poder da rede privada, que não melhora o transporte público e ainda aumenta a tarifa” (Jordana Borges). “Lamentável, pois a qualidade é muito ruim!” (Wesley Rosa Pinheiro). “Desrespeito, não obrigam as empresas a reformar os terminais e aumentam o preço de um péssimo serviço!” (Paulo Winicius) (O Popular, 19/05/11, p. 3 – Opinião do leitor). São opiniões que falam por si mesmas.
Faltam realmente, na área do transporte coletivo (como, aliás, na área da saúde, da educação, do trabalho, da segurança e em outras áreas), políticas públicas que coloquem como prioridade absoluta a qualidade de vida do povo e não o enriquecimento das empresas. Precisamos urgentemente de um transporte coletivo digno. Andar de ônibus deveria ser prazeroso e repousante, e não cansativo e estressante. Talvez seja um sonho, mas o sonho pode se tornar realidade. Os recursos materiais existem. É só uma questão de

vontade política. A pessoa humana, sobretudo dos pobres e excluídos, deve estar sempre em primeiro lugar.

              
Diário da Manhã, Opinião Pública, Goiânia, 27/05/11, p. 3 

Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra

domingo, 22 de maio de 2011

O novo Conselho de Ética do Senado: um deboche público

O Conselho de Ética (?) do Senado foi criado em 1993 com o objetivo de zelar pela conduta dos 81 senadores e ganhou, muitas vezes, as páginas do noticiário por causa dos casos de processos que, levados até ele, foram simplesmente arquivados. Só contra o presidente do Senado José Sarney foram arquivadas 11 acusações. Em 2009, a oposição, insatisfeita com as absolvições de Sarney, deixou o órgão como protesto. Depois de dois anos, o Conselho de Ética do Senado - formado por 15 titulares e 15 suplentes – reiniciou, no dia 27 de abril/11, suas atividades (cf. www.r7.com - 16/05/11).
“Novo Conselho de Ética tem Renan e aliados de Sarney” (Folha de S. Paulo, 27/04/11, p. A4, manchete), que são 13 senadores, incluindo o presidente do colegiado João Alberto Souza (PMDB-MA).
Vejam até onde chega o descaramento, ou, em outras palavras, a pouca vergonha deslavada da maioria dos nossos senadores. Reparem a composição do novo Conselho de Ética. Renan Calheiros foi eleito membro titular do órgão, “depois de responder a cinco processos por quebra de decoro parlamentar no Conselho de Ética do Senado”. Juntamente com Renan, “foram escolhidos para compor o colegiado outros 14 senadores - grande parte com processos na Justiça”. Para presidir o Conselho, foi eleito no dia 27/04, com 14 votos dos 15 senadores presentes, o senador João Alberto Souza (PMDB-MA), que é amigo de Renan e do presidente do Senado José Sarney. “Fiel aliado dos Sarney, governou o Estado em1990 quando uma lei estadual doou um prédio histórico à família do presidente do Senado”. Apesar disso, com a maior cara de pau, promete independência (imaginem que independência!). “O conselho é cortar na própria carne”, diz ele. “Já estou preparado, exerci o cargo duas vezes”.
Continua o elenco dos senadores “éticos”. A vice-presidência do Conselho é ocupada por Gim Argello (PTB-DF), “investigado em inquérito que está no STF (Supremo Tribunal Federal) por ter alugado computadores com valor superfaturado quando era deputado distrital em Brasília”. São também membros do novo Conselho de Ética do Senado Valdir Raupp (PMDB-RO) e Romero Jucá (PMDB-RR). Valdir Raupp “foi acusado de desvio de recursos quando era governador de Rondônia, entre 1995 e 1998. Responde a processo na Justiça”. Romero Jucá, “em 2005, renunciou ao cargo de ministro da Previdência após suspeitas de que usou fazendas inexistentes como garantia para empréstimos” (Folha de São Paulo, ib.).
Resumindo: “Dos 15 titulares do Conselho, oito respondem a inquéritos ou a processos no Supremo Tribunal Federal. Destes, o campeão é Renan Calheiros (PMDB-AL), cinco vezes processado por quebra de decoro parlamentar. Lembram-se de quando ele foi forçado a renunciar à presidência do Senado justamente para escapar de ser cassado por quebra de decoro parlamentar. Para agravar a situação de absurdo, alguns desses senadores também já foram objeto de mais de um processo no próprio Conselho de Ética. E novamente Renan Calheiros, líder do PMDB no Senado, é o campeão, com cinco representações” (www.atarde.com.br – 16/05/11).
Mas que Conselho de Ética (?) o Senado tem! Trata-se de uma verdadeira afronta aos eleitores! Será que os nossos senadores acham que o povo é bobo? É realmente o cúmulo do absurdo! Como estamos longe de uma prática política ética!
“Vemos com preocupação o acelerado avanço de diversas formas de regressão autoritária por via democrática que, em certas ocasiões, resultam em regimes de corte neopopulista. Isso indica que não basta uma democracia puramente formal (...), mas é necessária uma democracia participativa e baseada na promoção e respeito dos direitos humanos. Uma democracia sem valores (...) torna-se facilmente ditadura e termina traindo o povo” (Documento de Aparecida - DA, 74).

Por isso, precisamos “apoiar a participação da sociedade civil para a reorientação e consequente reabilitação ética da política” (DA, 406a), como, por exemplo, a criação de instrumentos de controle externo. “Pensemos em quão necessária é a integridade moral nos políticos” (DA, 507) Uma outra prática política é possível e necessária. Lutemos por ela.
                   Diário da Manhã, Opinião Pública, Goiânia, 21/05/11, p. 3 



Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Lula, o palestrante de luxo dos banqueiros e das multinacionais

No discurso da primeira convenção nacional do PT, em 1981, Lula afirmava que o partido então criado, era “uma inovação histórica” e vinha para livrar a classe trabalhadora da condição de “massa de manobra dos políticos da burguesia”. Dizia que o sindicato é a ferramenta adequada para melhorar as relações entre o capital e o trabalho, mas que o partido existe para ir além: “Queremos que os trabalhadores sejam os donos dos meios de produção e dos frutos de seu trabalho”. Afirmava que “o mundo caminha para o socialismo” e que o PT, com sua mística radical, não tinha como objetivo “buscar paliativos para as desigualdades do capitalismo” (Cf. Leo Lince. Lula, a metamorfose que ambula, 14/04/11 – www.correiocidadania.com.br). Lula, quem te viu e quem te vê!
Em fevereiro/11 escrevi um artigo com o título “Lula, um ex-operário deslumbrado pelo poder” (Cf. Diário da Manhã, Opinião Pública, 07/02/11, p. 18).  Hoje acrescento que Lula é também um ex-presidente - ex-sindicalista e ex-operário - obcecado pela fama. Como o ex-presidente Lula pode ser tão oportunista e renegar sua própria história; como pode ser tão ambicioso e tão ganancioso, até o ponto de - como palestrante de luxo a serviço dos interesses dos banqueiros e das multinacionais - vender sua própria dignidade humana, traindo seus ex-companheiros. É realmente um comportamento repugnante e totalmente antiético.
Vejam só que absurdo! Lula, o novo empresário e o novo rico, tornou-se o palestrante mais caro do Brasil. Segundo noticiou a imprensa, o ex-presidente cobra por uma palestra um cachê que vai de R$ 200 mil a cerca de R$ 790 mil (por enquanto!). Em março/11, a multinacional LG foi a primeira a contratar o Lula para uma palestra no Brasil, com cachê de R$ 200 mil. A multinacional Telefônica convidou o Lula para uma palestra em Londres, com cachê de cerca US$ 300 mil. Lula foi também a Washington, a convite da Microsoft, e a Acapulco, a convite da Associação dos Bancos do México. No dia 4 de maio/11, o Lula fez palestra em São Paulo, a convite do Bank of América Merril Lynch. Reparem: quando Lula vai ao exterior, viaja quase sempre em jatinho particular. Como custa caro o ex-operário, ex-sindicalista e ex-presidente Lula! Parece o mais valioso mascote dos detentores do poder econômico mundial! É inacreditável que ainda existam pessoas dispostas a ouvir as baboseiras do Lula, falando de si mesmo (se autoelogiando), dos feitos de seu governo e do aumento da presença (que tipo de presença?) do Brasil no cenário dos “donos” do mundo.
Sempre segundo noticiou a imprensa, o Lula aceitou também o convite da multinacional LG para fazer palestra na Coréia do Sul, com cachê de US$ 500 mil (cerca de R$ 790 mil). Se confirmado o evento na Coréia do Sul, em três ou quatro meses, a receita do Lula em moeda estrangeira chegará a US$ 1,2 milhão. Trata-se realmente de uma afronta aos trabalhadores (ex-companheiros de Lula) e de um pontapé na cara dos pobres. Trata-se de um dinheiro que é fruto da exploração dos trabalhadores pelas multinacionais e, portanto, de um roubo legalizado. O pior é que Lula sabe disso.
A assessoria de Lula não confirma o valor do cachê das palestras do ex-presidente e Paulo Okamoto - sócio do novo empresário petista Lula na empresa LILS - diz cinicamente que “é segredo de Estado” (Cf. Folha de S. Paulo, 04/05/11, p. A9). Que desrespeito para com o povo! Que vergonha!
Esses fatos são mais que suficientes para provar que Lula - como diz o sociólogo Leo Lince - é “a metamorfose que ambula”. Pessoalmente acho que, desde a campanha para o 1º mandato de presidente da República quando quis ganhar as eleições a qualquer custo e com qualquer meio, Lula traiu os trabalhadores, seus ex-companheiros, aliou-se aos detentores do poder econômico mundial e usou sua popularidade (melhor seria dizer: seu populismo) a serviço dos interesses deles.
Permito-me sonhar! Como seria diferente se Lula, em suas palestras, fosse aliado e porta-voz dos trabalhadores, denunciando a exploração das multinacionais e dos banqueiros (que, diga-se de passagem, no governo Lula tiveram o maior lucro já conseguido até o presente), as estruturas de injustiça e a iniqüidade do atual sistema econômico mundial. Nesse caso, seriam os movimentos populares e os sindicatos autênticos dos trabalhadores a convidar Lula para proferir palestras, e não os banqueiros e as multinacionais. Lula não ganharia cachês milionários, mas ganharia um cachê muito mais valioso que seria a felicidade de servir gratuitamente. Nada vale mais que a felicidade e a alegria da missão cumprida.
Em todo esse contexto, é mais do que oportuna a advertência do apóstolo Tiago,  também para os novos ricos como Lula: “E agora vocês, ricos: comecem a chorar e gritar por causa das desgraças que estão para cair sobre vocês. Suas riquezas estão podres, suas roupas estão roídas pela traça; o ouro e a prata de vocês estão enferrujados; e a ferrugem deles será testemunha contra vocês, e como fogo lhes devorará a carne. Vocês amontoaram tesouros para o fim dos tempos. Vejam o salário dos trabalhadores que fizeram a colheita nos campos de vocês: retido por vocês, esse salário clama, e os protestos dos cortadores chegaram aos ouvidos do Senhor dos exércitos” (Tg 5, 1-4).

Lembremos: não são os milhões de dólares que fazem o ser humano feliz e realizado!
Diário da Manhã, Opinião Pública, Goiânia, 13/05/11, p. 5


Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra

quinta-feira, 5 de maio de 2011

1º de Maio: Dia do Trabalhador/a Caminhada na Região Noroeste de Goiânia

“Hoje - como escreve Waldemar Rossi (metalúrgico aposentado e coordenador da Pastoral Operária da Arquidiocese de São Paulo) - estamos assistindo à mais vergonhosa capitulação das centrais sindicais tradicionais aos interesses do capital nacional e internacional. Sobretudo a CUT e a Força Sindical - verdadeiras inimigas entre si nos anos 90 - tornaram-se cúmplices da entrega dos nossos direitos ao capital e se unem para abafar a consciência e memória histórica dos trabalhadores”.
Celebrar, pois, o 1º de Maio hoje “é retomar a organização autônoma dos trabalhadores, a começar pelos locais de trabalho (fábricas, comércio, hospitais, escolas, unidades públicas e também nas comunidades), para reforçar os sindicatos que continuam comprometidos com os trabalhadores; é fazer novas experiências de organização e de lutas visando a construção de um outro instrumento de lutas, que não repita os desvios ideológicos como vem acontecendo nos últimos 20 anos; é entrar nas lutas em defesa dos nossos direitos, pelas 40 horas semanais, contra as reformas que visam eliminar direitos conquistados e que estão circulando no Congresso Nacional, entre tantas outras importantes” (www.correiocidadania.com.br – 27/04/11).
Em nossa realidade atual existem diversos sinais da “retomada da organização autônoma dos trabalhadores”. Um desses sinais foi a caminhada que aconteceu no dia 1º  de Maio, de manhã, na Região Noroeste de Goiânia. Durante a caminhada foi distribuída, nas feiras livres e para todas as pessoas que se encontravam nas ruas, a Carta aberta “Prioridades da Região Noroeste”, elaborada na Assembleia Popular, que aconteceu no dia 9 de abril, na Escola Municipal Nossa Senhora Aparecida do bairro S. Domingos. A Carta apresenta as seguintes reivindicações, como direitos da população.
Saúde: Implantar o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), aprovado desde 1999. Aumentar o número de Agentes Comunitários da Saúde para cobrir as áreas em déficit - atualmente 60% da região. Construir a unidade PSF (Programa Saúde da Família) no bairro S. Domingos. Aumentar o número de médicos nos CAIS (Centros de Assistência Integral à Saúde). Implantar o Hospital de Urgências na região;
Educação: Melhorar a estrutura física e pedagógica dos espaços educativos. Cobrir o déficit de professores nas escolas. Implantar Colégio integral. Ampliar o atendimento dos CEMEIS (Centros Municipais de Educação Infantil) - Construir novas salas.
Assistência Social: Melhorar a rede de atendimento à criança e ao adolescente: Escolas, Conselho tutelar, Creas (Centros de Referência Especializados de Assistência Social), Cras (Centros de Referência de Assistência Social), PSF (Programas Saúde da Família), etc.. Implementar políticas públicas para adolescentes e jovens com dependência de drogas. Implantar programa de abrigo para adultos que estão em situação de rua.
Transporte: Aumentar o número de ônibus e diminuir os intervalos entre os carros de todas as linhas que servem os bairros da região, especialmente das linhas que vão à Estação Recanto do Bosque. Implantar novas linhas: da região ao Campus da Universidade Federal e uma linha circular entre os bairros da região. Ampliar os horários das linhas Expressos (Vitória e Floresta) - Circular o dia todo.
Segurança Pública: Divulgar a finalidade da Polícia Comunitária e interagir com a população. Fazer campanha de prevenção, fiscalização, e conscientização contra a violência policial na periferia. Construir uma comissão mista entre sociedade civil, governo e judiciário para apurar as denúncias de violência.
Trabalho: Criar centro de qualificação profissional na região. Inserir os jovens no mercado de trabalho (Programa Primeiro Emprego). Fiscalizar o trabalho infantil.
Cultura/Lazer/Esporte: Implantar um centro cultural na região. Ampliar as atividades artísticas e esportivas nos CRAS (Centros de Referência de Assistência Social). Ampliar praças, parques, pistas de caminhada, ciclovia, ginásios ou quadras de esporte e gramar os campos de futebol. Descentralizar os programas culturais e valorizar os artistas populares da região.
Moradia/Infraestrutura: Regulamentar os lotes da região (escritura). Erradicar o déficit de habitação popular na região. Implantar rede de esgoto.
Meio Ambiente: Implantar parque de proteção ambiental e preservar o cerrado na região. Implantar a coleta seletiva do lixo em todas as áreas.
Participação Popular: Discutir os projetos, o orçamento, as políticas públicas e as prioridades com a comunidade local.
São estas as reivindicações que a população da Região Noroeste de Goiânia apresenta ao Poder Público em sua Carta aberta, para que sejam atendidas o mais rápido possível. A população não quer migalhas (concedidas muitas vezes como se fossem favores dos governantes), mas exige seus direitos.
É urgente lutar contra a cooptação dos trabalhadores/as por parte do governo (mesmo que se diga - de fato não é - governo “popular” e “dos trabalhadores”) e o consequente atrelamento de suas organizações sindicais e movimentos populares ao Poder Público e aos interesses do capital. “É urgente - como afirma Waldemar Rossi - somar forças com os setores do movimento sindical e popular que ainda resistem aos ataques do capital e renovar o compromisso de lutar em defesa dos nossos direitos” (Ib.).
Quando necessário e quando possível, diálogo e negociação, sim, mas com liberdade, independência e autonomia, de igual para igual e defendendo sempre os direitos dos trabalhadores/as (sem covardias e sem traições).

Como diz o ditado: “O Povo que ousa lutar, constrói o Poder Popular”!
Diário da Manhã, Opinião Pública, Goiânia, 04/05/11, p. 2

Fr. Marcos Sassatelli, Frade Dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Espiritualidade pascal e Campanha da Fraternidade/11

Pretendo, neste escrito, dar continuidade às reflexões do artigo “Espiritualidade pascal” (Diário da Manhã, 21/04/11, p. 15; Adital, 26/04/11), relacionando-as com o tema da Campanha da Fraternidade/11. A espiritualidade cristã (radicalmente humana) - por ser uma espiritualidade pascal (cristológica, pneumatológica e trinitária) - brota da vivência, sempre mais profunda e sempre mais envolvente, do ano litúrgico, que tem como centro a Páscoa. 
            "De acordo com a tradição mais antiga da Igreja, a vida espiritual é ancorada na participação na liturgia. Na liturgia o tempo cronológico é transformado em tempo de Deus - kairológico. Tempo da ação de Deus, que sempre agiu em favor do seu povo. Ao fazermos memória da Páscoa do Senhor, participamos de seu mistério de morte e ressurreição. Em outras palavras, fazer a memória do Cristo é participar; é entrar em comunhão com o seu corpo (tornar um só corpo com Ele e com os irmãos); é participar do seu destino; é participar da ressurreição na vida que brota da sua entrega. Quando nos reunimos para celebrar o mistério de Cristo, Ele mesmo, por seu Espírito, nos vai moldando à sua estatura, porque assume nossa vida em seu mistério (Cf. At 20, 7-12). O caminho de configuração com Cristo se dá pouco a pouco, no itinerário pedagógico-espiritual que o ano litúrgico proporciona. Durante o ano litúrgico, que tem como eixo e fundamento a Páscoa, vamos progressivamente inserindo-nos no mistério pascal de Jesus Cristo" ((Ir. Veronice Fernandes, pddm - www.cnbbsul1.org.br - 25/03/08).
            A liturgia é a celebração do mistério pascal na vida e a celebração da vida no mistério pascal. "A celebração litúrgica repercute na vida e a vida é celebrada. Celebração e vida estão intimamente ligadas. Como seguidores de Jesus Cristo progressivamente nos tornamos uma coisa só com ele. É um processo (…) que atinge todo o universo e que se dá concretamente no cotidiano da nossa história. Cristo, embora tenha passado pela morte, venceu-a. Nós também venceremos. Acreditemos na vida" (Ib.).
            Na celebração do mistério pascal na vida e da vida no mistério pascal, “trata-se da recriação de nosso eu, adquirindo a forma de Jesus Cristo ressuscitado, segundo o Espírito de Deus. É processo lento e sofrido, e ao mesmo tempo alegre e esperançoso, que deverá durar até a nossa morte. Perfazendo seu próprio caminho pascal, cada pessoa está ao mesmo tempo participando e colaborando na Páscoa de todo o tecido social, de toda a realidade cósmica (Cf. Rm 8, 18-25)) até à plena comunhão, quando Deus será tudo em todos (Cf. 1Cor 15, 28)" (Ione Buyst. Viver o mistério pascal de Jesus Cristo ao longo do ano litúrgico: um caminho espiritual. Semana de Liturgia, São Paulo. outubro de 2002).
A espiritualidade cristã como espiritualidade pascal é a "espiritualidade da comunhão" (Documento de Aparecida - DA, 181, 307, 316); é a “espiritualidade da comunhão com todos os que creêm em Cristo” (comunhão ecumênica) (DA, 189); é a “espiritualidade da comunhão missionária" (com todos os seres humanos) (DA, 203); e, em outras palavras. é a espiritualidade do seguimento de Jesus de Nazaré.
“O seguimento de Jesus é fruto de uma fascinação que responde ao desejo de realização humana, ao desejo de vida plena. O discípulo é alguém apaixonado por Cristo, a quem reconhece como mestre, que o conduz e acompanha" (DA, 277). “No seguimento de Jesus Cristo, aprendemos e praticamos as bem-aventuranças do Reino, o estilo de vida do próprio Jesus: seu amor e obediência filial ao Pai, sua compaixão entranhável frente à dor humana, sua proximidade aos pobres e aos pequenos, sua fidelidade à missão encomendada, seu amor serviçal até à doação de sua vida. Hoje, contemplamos a Jesus Cristo tal como os Evangelhos nos transmitem para conhecermos o que Ele fez e para discernirmos o que nós devemos fazer nas atuais circunstâncias” (DA, 139).
Como discípulos/as de Jesus Cristo e como Igreja Povo de Deus, “sentimo-nos desafiados a discernir os 'sinais dos tempos', à luz do Espírito Santo, para nos colocar a serviço do Reino, anunciado por Jesus, que veio para que todos tenham vida e 'para que a tenham em plenitude' (Jo 10, 10)” (DA, 33; Cf. 366). Discernir, pois, os sinais dos tempos significa ouvir os apelos de Deus nos acontecimentos e sintonizar com eles. A Igreja, em sua ação evangelizadora, ou seja, no anúncio da Boa Notícia do Reino de Deus, deve ser servidora e samaritana.
            Precisamos os cristãos/ãs experimentar, cada vez mais, a "dinâmica histórica do Espírito Santo". O Espírito Santo "é o fogo do amor que arde entre o Pai e o Filho. E esse fogo é Deus-amor divino que une as pessoas da Trindade. Esse mesmo amor está agindo, conforme a vontade das pessoas, também no cosmos inteiro". Os cristãos/ãs tornamo-nos instrumentos para o agir do Espírito Santo na medida do nosso compromisso em fazer acontecer a Páscoa (passagem da morte para a vida: vida nova em Cristo, vida segundo o Espírito) ou, em outras palavras, o Reino de Deus no mundo de hoje. Isso significa “transformar estruturas injustas em estruturas justas; transformar egoísmo em amor; converter  mecanismos  de opressão em solidariedade; comutar atitudes de poder em fraternidade”. Por outro lado, “opor-se a tal transformação das estruturas significa tornar-se obstáculo ao agir do Espírito Santo, e isso ocorre também quando se tenta justificar tal oposição com argumentos religiosos. Tais atitudes o próprio Jesus já encontrou no seu tempo, e as suas advertências permanecem válidas para todas as épocas" (Renoldo J. Blank, A dinâmica histórica do Espírito Santo. Em: Vida Pastoral, janeiro-fevereiro de 2007, p. 7-8).
A Campanha da Fraternidade/11 tem como tema: “Fraternidade e a Vida no Planeta” e como lema “A criação geme em dores de parto” (Rm 8,22). 
Os cristãos/ãs somos chamados a ser “profetas da vida”. “Como profetas da vida, queremos insistir que, nas intervenções sobre os recursos naturais, não predominem os interesses de grupos econômicos que arrasam irracionalmente as fontes da vida, em prejuízo de nações inteiras e da própria humanidade” (DA, 471).
            Os religiosos/as - por ser a vida religiosa uma vida de especial consagração a Deus e “um projeto de vida cristã radical” - temos, na Campanha da Fraternidade/11, um papel de fundamental importância. O nosso referencial é sempre a vida de Jesus de Nazaré e o nosso compromisso com “a vida no planeta” acontece nas situações concretas da realidade humana e cósmica, a partir dos empobrecidos, oprimidos e excluídos da sociedade.
            Por vocação, os religiosos/as somos chamados a dar a vida por amor -  numa entrega que, dentro de nossas possibilidades, deve ser total e exclusiva - a serviço da “vida no planeta” ou, em outras palavras, a serviço do Reino de Deus. “Não existe amor maior do que dar a vida pelos amigos” (Jo 15,13). “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1).
            Os religiosos/as somos chamados a ser não só “profetas da vida” (como todos os cristãos/ãs), mas “radicalmente profetas da vida”. Hoje, na América Latina e no Caribe, a vida religiosa “é chamada a ser uma vida missionária, apaixonada pelo anúncio de Jesus-verdade do Pai, por isso mesmo radicalmente profética, capaz de mostrar, à luz de Cristo, as sombras do mundo atual e os caminhos de uma vida nova” (DA, 220).
            Falando da ética do cuidado, a CF11 nos lembra: “É absolutamente necessário desejar que o resgate da responsabilidade ética motive e faça convergir ações de cunho social até de alcance planetário, visando o cuidado deste imenso ser vivo chamado planeta Terra. (…) A opção pela vida é o grande referencial. Assim tem sido e esta opção precisa ser reafirmada, recolocando no centro da pauta da humanidade o cuidado com o mundo vital” (Texto-Base, 94).
             Falando, pois, da dimensão crística do universo inteiro, a CF11 nos lembra ainda: “O universo inteiro possui uma dimensão crística. A encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo possuem um significado cósmico, totalmente universal. A libertação da natureza, manipulada abusivamente pelo ser humano, está incluída na libertação do pecado humano para a vivência da liberdade concretizada no amor-serviço. Inclui as relações responsáveis e solidárias com as outras criaturas. Hoje, fica cada vez mais claro que a salvação do ser humano é inseparável da salvação da criação toda (Rm 8, 19-23). O destino de ambos está intimamente ligado” (Texto-Base, 183). Que a Páscoa e a CF11 sejam, para todos nós, fonte inesgotável de vida nova.
           
Diário da Manhã, Goiânia, 27/04/11, p. 5


Fr. Marcos Sassatelli, Frade Dominicano 
    Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra


Espiritualidade pascal

A concepção de espiritualidade está intimamente ligada à concepção de ser humano. Hoje, a antropologia filosófica e a antropologia teológica - que integram os dados das ciências humanas - têm uma concepção unitária (não dualista) de ser humano. Mesmo na diversidade de abordagens e com enfoques diferentes, o ser humano é definido como um ser pluridimensional e um ser plurirrelacional.
            Como ser pluridimensional, o ser humano é corpo, é vida e é espírito. A palavra corpo significa o ser humano todo, enquanto ser corpóreo; a palavra vida significa o ser humano todo, enquanto ser vivente (ser bio-psíquico); a palavra espírito significa o ser humano todo, enquanto ser espiritual (ser pessoal). O sujeito é sempre o ser humano todo e o destaque é dado a uma das dimensões do ser humano. Em outras palavras, o ser humano é totalmente (ou, integralmente) corpo, é totalmente vida e é totalmente espírito (Cf. Mounier, E. O Personalismo. Livraria Morais, Lisboa, 19642, p. 39). Cada uma dessas dimensões - a corporeidade (integrando a sexualidade), a bio-psiquicidade e a espiritualidade (que, por sua vez, se desdobram em outras dimensões) - marca o ser humano todo, ou seja, perpassa o ser humano em sua totalidade, mas não é a totalidade do ser humano.
            Como ser plurirrelacional (ser de relações), o ser humano se relaciona com o mundo (material e vivente), com os outros (semelhantes) e com o Outro absoluto (Deus). As relações são relações sociais (sócio-econômico-político-ecológico-culturais) ou estruturais e relações individuais ou interindividuais. As dimensões e as relações são constitutivas do ser humano, ou, em outras palavras, fazem o ser humano.
            A partir destas considerações de caráter antropológico, podemos dizer que a espiritualidade é o jeito “humano” de ser e de viver do ser humano, enquanto ser espiritual, A espiritualidade envolve o ser humano todo, em todas as suas dimensões e relações. Ela perpassa, impregna e absorve a totalidade do ser humano, a totalidade de sua existência. Como, porém, o ser humano, por ser histórico (situado e datado), é um "vir-a-ser" e um ser de busca permanente, ele pode - ao longo de sua vida no mundo e na sociedade - adquirir uma profundidade e intensidade sempre maior na vivência do "humano", até o fim da vida. Portanto, a espiritualidade é, antes de tudo, espiritualidade humana. Ser espirituais significa ser “humanos”, viver a humanidade em graus crescentes de profundidade e intensidade. Nunca ninguém exagera em ser “humano”, nunca ninguém é “humano” demais.
Para os cristãos, à luz da fé, a espiritualidade humana se torna espiritualidade cristã. Não pode, porém, ser espiritualidade cristã se não for primeiro (não no sentido cronológico, mas lógico) espiritualidade humana. A espiritualidade cristã é uma espiritualidade radicalmente humana. Os cristãos, em nome da fé, não temos o direito de sermos omissos, mas devemos estar sempre na linha de frente em todas as lutas que visam tornar a sociedade e o mundo mais humanos.
“As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos seres humanos de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração” (Concílio Vaticano II. A Igreja no mundo de hoje - GS, 1). Trata-se de uma solidariedade (compaixão) entranhável dos cristãos com toda a humanidade. Os cristãos deveríamos ser, por assim dizer, especialistas em humanidade. Acreditamos os cristãos que "o mistério do ser humano só se torna claro verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado. (…) Cristo manifesta plenamente o ser humano ao próprio ser humano e lhe descobre a sua altíssima vocação" (GS, 22). "Todo aquele que segue Cristo, o Homem perfeito, torna-se ele também mais ser humano" (GS, 41). "A razão principal da dignidade humana consiste na vocação do ser humano para a comunhão com Deus" (GS, 19).
            "A fé esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do ser humano. E por isso orienta a mente para soluções plenamente humanas" (GS, 11). Reparem que o texto não diz “soluções não somente humanas, mas também sobrenaturais” (visão dualista da vida humana), mas diz “soluções plenamente humanas”. Para os cristãos o plenamente humano inclui a dimensão da fé. O cristianismo é um humanismo pleno, um humanismo radical. Pela fé, os cristãos descobrem sempre mais claramente o verdadeiro sentido da vida (na história), até o seu pleno, último e definitivo sentido (na meta-história).
             A espiritualidade cristã é uma espiritualidade pascal: cristológica, pneumatológica e trinitária (comunitária - eclesial). Viver a espiritualidade cristã significa viver como Jesus viveu, morrer como Jesus morreu, ressuscitar como Jesus ressuscitou. Em outras palavras, viver a espiritualidade cristã significa fazer acontecer a Páscoa de Jesus na vida pessoal, na história humana e no mundo todo. A Páscoa (o mistério pascal), que é passagem da morte (e de tudo o que a morte significa) para a vida (vida nova em Cristo, vida segundo o Espírito) é uma realidade dinâmica (processual), que impregna a totalidade da existência humana no mundo. Para os cristãos a vida é uma caminhada pascal. Sempre precisamos os cristãos morrer a tudo o que está errado em nossa vida, sepultando os nossos pecados (o ser humano velho), e sempre precisamos ressuscitar para a vida nova em Cristo (o ser humano novo), até o fim da vida. "Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em plenitude" (Jo 10,10).
            "A experiência batismal é o ponto de início de toda espiritualidade cristã que se funda na Trindade" (Documento de Aparecida - DA, 240). “Banhados em Cristo, somos uma nova criatura, as coisas antigas já se passaram, somos nascidos de novo” (Canto litúrgico). "A vivência da escuta da Palavra, comunhão fraterna e compromisso com a justiça alimenta e expressa a espiritualidade batismal, que configura o cristão com Cristo, que por amor entrega a sua vida para que todos tenham vida" (Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2008-2010 - DGAE, 87).
            O batismo - e a Crisma confirma, completa, aprofunda e radicaliza a consagração batismal - “nos insere no mistério de Cristo morto e ressuscitado. Cada batizado é chamado a seguir Jesus Cristo e a conformar a própria vida a dele, caminhando sempre na novidade de vida (Cf. Rm 6,4). A experiência íntima com o Cristo pascal, cresce, desenvolve-se e se consolida, participando da Eucaristia, na qual, cada batizado se une com Cristo na oferta da própria vida ao Pai mediante o Espírito. A vida cristã é fundamentalmente vida em Cristo pelo dom do Espírito, fruto da Páscoa. Ser espiritual significa viver segundo o Espírito de Deus. A espiritualidade tem a ver com tudo o que somos e fazemos, segundo o Espírito. O Espírito acende em nós o amor, a paixão por Jesus Cristo e nos leva a pautar toda a nossa vida pela intimidade com ele" (Ir. Veronice Fernandes, pddm - www.cnbbsul1.org.br - 25/03/08)
A espiritualidade cristã, como espiritualidade pascal, é o seguimento de Jesus. “Se alimenta de uma verdadeira paixão por Ele, de uma amizade singular (...) de uma compenetração intimíssima, comunhão mesmo” (Dom Pedro Casaldáliga, Nosso Deus tem um sonho e nós também: Carta espiritual às comunidades. X Encontro Intereclesial, Ilhéus (BA), 11-15 de julho de 2000). No mundo de hoje - cujos desafios são para nós os apelos de Deus - vivamos os cristãos, sempre mais intensamente, a espiritualidade pascal, como caminho de realização humana e de felicidade.

Diário da Manhã, Goiânia, 21/04/11, p.15


Fr. Marcos Sassatelli, Frade Dominicano 
    Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra

sexta-feira, 8 de abril de 2011

A Usina Hidrelétrica Belo Monte Comentando a Carta aberta de D Erwin

Depois de ler a “Carta aberta de Dom Erwin Kräutler à Opinião Pública Nacional e  Internacional” de 25 de março/11 sobre a Usina Hidrelétrica Belo Monte (UHE), senti a necessidade de fazer alguns comentários, manifestando assim a minha total solidariedade à pessoa de Dom Erwin, ao teor da Carta e à causa que ela defende. Antes de tudo, quero declarar, alto e bom som, que fiquei profundamente indignado com o autoritarismo do Governo Dilma. È o mesmo autoritarismo do Governo Lula (padrinho político da Dilma) a respeito da Transposição das águas do Rio S. Francisco.
            Dom Erwin Kräutler diz: “Venho mais uma vez manifestar-me publicamente em relação ao projeto do Governo Federal de construir a Usina Hidrelétrica Belo Monte, cujas consequências irreversíveis atingirão especialmente os municípios paraenses de Altamira, Anapu, Brasil Novo, Porto de Moz, Senador José Porfírio, Vitória do Xingu e os povos indígenas da região. Como Bispo do Xingu e presidente do Cimi, solicitei uma audiência com a Presidenta Dilma Rousseff para apresentar-lhe, à viva voz, nossas preocupações, questionamentos e todos os motivos que corroboram nossa posição contra Belo Monte. Lamento profundamente não ter sido recebido”.
            Presidenta Dilma, por que tanto descaso e tanta falta de consideração?
            Diz ainda a Carta de Dom Erwin: “Diferentemente do que foi solicitado, o Governo me propôs um encontro com o Ministro de Estado da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho. No entanto, o Senhor Ministro declarou na última quarta-feira, 16 de março, em Brasília, diante de mais de uma centena de lideranças sociais e eclesiais, participantes de um Simpósio Sobre Mudanças Climáticas que 'há no governo uma convicção firmada e fundada que tem que haver Belo Monte, que é possível, que é viável. Então, eu não vou dizer para Dilma não fazer Belo Monte, porque eu acho que Belo Monte vai ter que ser construída'”.
            Continua o bispo: “Esse posicionamento evidencia mais uma vez que ao Governo só interessa comunicar-nos as decisões tomadas, negando-nos qualquer diálogo aberto e substancial. Assim, uma reunião com o Ministro de Estado Gilberto Carvalho não faz nenhum sentido, razão pela qual resolvi declinar do convite”.
            Que Governo é esse que se diz democrático e não dialoga com ninguém! Que governo é esse que se diz “popular” e “dos trabalhadores” e se nega a conversar com o povo! Parece que voltamos ao tempo da ditadura! Será que a presidenta Dilma esqueceu o sofrimento e as “torturas” pelas quais passou? Hoje ela aliou-se àqueles que, à época da ditadura, foram - direta ou indiretamente - os mandantes de seus algozes? Como entender isso? Como entender o comportamento do ministro Gilberto Carvalho, que se declara militante do Movimento Nacional Fé e Política? O que ele entende por Fé e Política? Diante de tanta arrogância e autossuficiência, a coordenação nacional do Movimento Fé e Política, deveria declarar o ministro Gilberto Carvalho “pessoa não grata”. Chega de hipocrisia!
            Diz a Carta de Dom Erwin: “Nestes últimos anos não medimos esforços para estabelecer um canal de diálogo com o Governo brasileiro acerca deste projeto. Infelizmente, constatamos que esse almejado diálogo foi inviabilizado já desde o início. As duas audiências realizadas com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 19 de março e 22 de julho de 2009, não passaram de formalidades. Na segunda audiência, o ex-presidente nos prometeu que os representantes do setor energético, com brevidade, apresentariam uma resposta aos bem fundamentados questionamentos técnicos feitos à obra pelo Dr. Célio Bermann, professor do curso de pós-graduação em energia do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo. Essa resposta nunca foi dada, como também nunca foram levados em conta os argumentos técnicos contidos na Nota Pública do Painel de Especialistas, composto por 40 cientistas, pesquisadores e professores universitários”.
            Presidenta Dilma, por que tanta mentira? Por que tanto desrespeito? Não se trata de ideias mirabolantes de um grupinho de pessoas exaltadas e irresponsáveis, mas de argumentos técnicos, envolvendo 40 cientistas, pesquisadores e professores universitários. Mais uma vez (como no caso da Transposição das águas do Rio S. Francisco) ficou muito claro de que lado o Governo Federal está e quais são seus verdadeiros interesses.
            Continua a Carta: “Observamos, pelo contrário, na sequência a essas audiências, que técnicos do Ibama reclamaram estar sob pressão política para concluir com maior rapidez os seus pareceres e emitir a Licença Prévia para a construção da Usina. Tais pressões políticas são de conhecimento público e motivaram, inclusive, a demissão de diversos diretores e presidentes do órgão ambiental oficial. Em seguida, foi concedida uma 'Licença Específica', não prevista na legislação ambiental brasileira, para a instalação do canteiro de obras”.
            Esse comportamento ditatorial e essa pressa só têm uma explicação: a submissão servil e covarde do Governo Federal aos interesses das grandes empresas multinacionais e dos detentores do poder econômico. Quantos discursos vazios para ludibriar e enganar o povo! Quanta decepção! Quem diria que o Partido dos Trabalhadores (que hoje, talvez,  poderia ser chamado de “Partido dos Traidores”) chegaria a tanto!
            Vejam o longo desabafo de Dom Erwin na Carta: “No dia 8 de fevereiro de 2011, povos indígenas, ribeirinhos, pequenos agricultores e representantes de diversas organizações da sociedade realizaram uma manifestação pública em frente ao Palácio do Planalto. Na ocasião, foi entregue um abaixo-assinado contrário à obra, contendo mais de 600 mil assinaturas. Embora houvessem solicitado uma audiência com bastante antecedência, não foram recebidos pela Presidenta. Conseguiram apenas entregar ao ministro substituto da Secretaria Geral da Presidência, Rogério Sottili, uma carta em que apontaram uma série de argumentos para justificar o posicionamento contrário à obra. O ministro prometeu mais uma vez o diálogo e considerou a carta 'um relato que prezo, talvez um dos mais importantes da minha relação política no Governo (…).  Vou levar este relato, esta carta, este manifesto de vocês, os reclamos de vocês (...)'. Até o momento, nenhuma resposta!”.
            No seu longo desabafo, Dom Erwin continua dizendo: “As quatro audiências - realizadas em Altamira, Brasil Novo, Vitória do Xingu e Belém - não passaram de mero formalismo para chancelar decisões já tomadas pelo Governo e cumprir um protocolo. A maioria da população ameaçada não conseguiu se fazer presente. Pessoas contrárias à obra que conseguiram chegar aos locais das audiências não tiveram oportunidade real de participação e manifestação, devido ao descabido aparato bélico montado pela Polícia”.
            O bispo afirma também: “Até o presente momento, os índios não foram ouvidos. As 'oitivas' indígenas não aconteceram. Algumas reuniões foram realizadas com o objetivo de informar os índios sobre a Usina. Os indígenas que fizeram constar em ata sua posição contrária à UHE Belo Monte foram tranquilizados por funcionários da Funai que as 'oitivas' seriam realizadas posteriormente. Para surpresa de todos nós, as atas das reuniões informativas foram publicadas pelo Governo de maneira fraudulenta em um documento intitulado 'Oitivas Indígenas'. Esse fato foi denunciado pelos indígenas que participaram das reuniões. Com base nestas denúncias, peticionamos à Procuradoria Geral da República investigação e tomada de providências cabíveis”.
            Dom Erwin declara ainda: “A tese defendida pelo Sr. Maurício Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), de que as aldeias indígenas não serão afetadas pela UHE Belo Monte, por não serem inundadas, é mera tentativa de confundir a opinião pública. Ocorrerá justamente o contrário: os habitantes, tanto nas aldeias como na margem do rio, ficarão praticamente sem água, em decorrência da redução do volume hídrico. Ora, esses povos vivem da pesca e da agricultura familiar e utilizam o rio para se locomover. Como chegarão a Altamira para fazer compras ou levar doentes, quando um paredão de 1.620 metros de comprimento e de 93 metros de altura for erguido diante deles? Julgo fundamental esclarecer que não há nenhum estudo sobre o impacto que sofrerão os municípios à jusante, Senador José Porfírio e Porto de Moz, como também sobre a qualidade da água do reservatório a ser formado. Qual será o futuro de Altamira, com uma população atual de 105 mil habitantes, ao ser transformada numa península margeada por um lago podre e morto? Os atingidos pela barragem de Tucuruí tiveram que abandonar a região por causa de inúmeras pragas de mosquitos e doenças endêmicas. Mas os tecnocratas e políticos que vivem na capital federal, simplesmente menosprezam a possibilidade de que o mesmo venha a acontecer em Altamira”.
            Quanta enganação! Quanta irresponsabilidade! Que vergonha, presidenta Dilma!
            Dom Erwin - uma vida de luta em defesa dos direitos dos povos indígenas e da Amazônia - termina a Carta, fazendo um apaixonante apelo à opinião pública nacional e internacional. Ouçamos o apelo: “Alertamos a sociedade nacional e internacional que Belo Monte está sendo alicerçada na ilegalidade e na negação de diálogo com as populações atingidas, correndo o risco de ser construída sob o império da força armada, a exemplo do que vem ocorrendo com a Transposição das águas do Rio São Francisco, no nordeste do país. O Governo Federal, no caso da construção da UHE Belo Monte, será diretamente responsável pela desgraça que desabará sobre a região do Xingu e sobre toda a Amazônia. Por fim, declaramos que nenhuma 'condicionante' será capaz de justificar a UHE Belo Monte. Jamais aceitaremos esse projeto de morte. Continuaremos a apoiar a luta dos povos do Xingu contra a construção desse 'monumento à insanidade'” (Conselho Indigenista Missionário – www.cimi.org.br)

            Realmente, a busca do lucro a qualquer custo e a ganância - características do sistema capitalista neoliberal - são como um rolo compressor, que destrói e mata tudo o que encontra pela frente. Diante desse crime (a construção da UHE Belo Monte) do Poder Público, que grita por justiça diante de Deus, os Movimentos Populares, os Sindicatos, e todas as Organizações e Entidades, civis e religiosas, que lutam para preservar e defender “a vida no planeta”, não podem se omitir. Precisam “organizar a resistência”, a nível nacional e internacional, e combater esse crime com todos os meios legítimos possíveis. Chega de tanta iniquidade humana!
Diário da Manhã, Opinião Pública, Goiânia, 07/04/11, p. 2
fr. Marcos Sassatelli, Frade Dominicano 
    Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na Pós-Graduação em Direitos Humanos
(Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra
A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos