Pretendo, neste escrito, dar continuidade às
reflexões do artigo “Espiritualidade pascal” (Diário da Manhã, 21/04/11, p. 15;
Adital, 26/04/11), relacionando-as com o tema da Campanha da Fraternidade/11.
A espiritualidade cristã (radicalmente humana) - por ser uma
espiritualidade pascal (cristológica, pneumatológica e trinitária) - brota da
vivência, sempre mais profunda e sempre mais envolvente, do ano litúrgico, que
tem como centro a Páscoa.
"De
acordo com a tradição mais antiga da Igreja, a vida espiritual é ancorada na
participação na liturgia. Na liturgia o tempo cronológico é transformado em
tempo de Deus - kairológico. Tempo da ação de Deus, que sempre agiu em favor do
seu povo. Ao fazermos memória da Páscoa do Senhor, participamos de seu mistério
de morte e ressurreição. Em outras palavras, fazer a memória do Cristo é
participar; é entrar em comunhão com o seu corpo (tornar um só corpo com Ele e
com os irmãos); é participar do seu destino; é participar da ressurreição na
vida que brota da sua entrega. Quando nos reunimos para celebrar o mistério de
Cristo, Ele mesmo, por seu Espírito, nos vai moldando à sua estatura, porque
assume nossa vida em seu mistério (Cf. At 20, 7-12). O caminho de configuração com Cristo se dá pouco a pouco, no
itinerário pedagógico-espiritual que o ano litúrgico proporciona. Durante o ano
litúrgico, que tem como eixo e fundamento a Páscoa, vamos progressivamente
inserindo-nos no mistério pascal de Jesus Cristo" ((Ir. Veronice Fernandes, pddm - www.cnbbsul1.org.br - 25/03/08).
A liturgia é a celebração do mistério pascal na vida e a celebração da
vida no mistério pascal. "A celebração litúrgica repercute na vida e a
vida é celebrada. Celebração e vida estão intimamente ligadas. Como seguidores
de Jesus Cristo progressivamente nos tornamos uma coisa só com ele. É um
processo (…) que atinge todo o universo e que se dá concretamente no cotidiano
da nossa história. Cristo, embora tenha passado pela morte, venceu-a. Nós
também venceremos. Acreditemos na vida" (Ib.).
Na celebração do mistério pascal na vida e da vida no mistério pascal,
“trata-se da recriação de nosso eu, adquirindo a forma de Jesus Cristo
ressuscitado, segundo o Espírito de Deus. É processo lento e sofrido, e ao
mesmo tempo alegre e esperançoso, que deverá durar até a nossa morte.
Perfazendo seu próprio caminho pascal, cada pessoa está ao mesmo tempo
participando e colaborando na Páscoa de todo o tecido social, de toda a realidade
cósmica (Cf. Rm 8, 18-25)) até à plena comunhão, quando Deus será tudo em todos
(Cf. 1Cor 15, 28)" (Ione Buyst. Viver o mistério pascal de Jesus Cristo ao
longo do ano litúrgico: um caminho espiritual. Semana de Liturgia, São Paulo.
outubro de 2002).
A espiritualidade cristã como espiritualidade
pascal é a "espiritualidade da comunhão" (Documento de Aparecida -
DA, 181, 307, 316); é a “espiritualidade da comunhão com todos os que creêm em
Cristo” (comunhão ecumênica) (DA, 189); é a “espiritualidade da comunhão
missionária" (com todos os seres humanos) (DA, 203); e, em outras
palavras. é a espiritualidade do seguimento de Jesus de Nazaré.
“O seguimento de Jesus é fruto de uma fascinação
que responde ao desejo de realização humana, ao desejo de vida plena. O
discípulo é alguém apaixonado por Cristo, a quem reconhece como mestre, que o
conduz e acompanha" (DA, 277). “No seguimento de Jesus Cristo, aprendemos
e praticamos as bem-aventuranças do Reino, o estilo de vida do próprio Jesus:
seu amor e obediência filial ao Pai, sua compaixão entranhável frente à dor
humana, sua proximidade aos pobres e aos pequenos, sua fidelidade à missão
encomendada, seu amor serviçal até à doação de sua vida. Hoje, contemplamos a
Jesus Cristo tal como os Evangelhos nos transmitem para conhecermos o que Ele
fez e para discernirmos o que nós devemos fazer nas atuais circunstâncias” (DA,
139).
Como discípulos/as de Jesus Cristo e como Igreja
Povo de Deus, “sentimo-nos desafiados a discernir os 'sinais dos tempos', à luz
do Espírito Santo, para nos colocar a serviço do Reino, anunciado por Jesus,
que veio para que todos tenham vida e 'para que a tenham em plenitude' (Jo 10,
10)” (DA, 33; Cf. 366). Discernir, pois, os sinais dos tempos significa ouvir
os apelos de Deus nos acontecimentos e sintonizar com eles. A Igreja, em sua
ação evangelizadora, ou seja, no anúncio da Boa Notícia do Reino de Deus, deve
ser servidora e samaritana.
Precisamos
os cristãos/ãs experimentar, cada vez mais, a "dinâmica histórica do
Espírito Santo". O Espírito Santo "é o fogo do amor que arde entre o
Pai e o Filho. E esse fogo é Deus-amor divino que une as pessoas da Trindade.
Esse mesmo amor está agindo, conforme a vontade das pessoas, também no cosmos
inteiro". Os cristãos/ãs tornamo-nos instrumentos para o agir do Espírito
Santo na medida do nosso compromisso em fazer acontecer a Páscoa (passagem da
morte para a vida: vida nova em Cristo, vida segundo o Espírito) ou, em outras
palavras, o Reino de Deus no mundo de hoje. Isso significa “transformar estruturas
injustas em estruturas justas; transformar egoísmo em amor; converter mecanismos
de opressão em solidariedade; comutar atitudes de poder em
fraternidade”. Por outro lado, “opor-se a tal transformação das estruturas
significa tornar-se obstáculo ao agir do Espírito Santo, e isso ocorre também
quando se tenta justificar tal oposição com argumentos religiosos. Tais
atitudes o próprio Jesus já encontrou no seu tempo, e as suas advertências
permanecem válidas para todas as épocas" (Renoldo J. Blank, A dinâmica
histórica do Espírito Santo. Em: Vida Pastoral, janeiro-fevereiro de 2007, p.
7-8).
A Campanha da Fraternidade/11 tem como tema:
“Fraternidade e a Vida no Planeta” e como lema “A criação geme em dores de
parto” (Rm 8,22).
Os cristãos/ãs somos chamados a ser “profetas da
vida”. “Como profetas da vida, queremos insistir que, nas intervenções sobre os
recursos naturais, não predominem os interesses de grupos econômicos que
arrasam irracionalmente as fontes da vida, em prejuízo de nações inteiras e da
própria humanidade” (DA, 471).
Os religiosos/as - por ser a vida
religiosa uma vida de especial consagração a Deus e “um projeto de vida cristã
radical” - temos, na Campanha da Fraternidade/11, um papel de fundamental
importância. O nosso referencial é sempre a vida de Jesus de Nazaré e o nosso
compromisso com “a vida no planeta” acontece nas situações concretas da
realidade humana e cósmica, a partir dos empobrecidos, oprimidos e excluídos da
sociedade.
Por vocação, os religiosos/as somos
chamados a dar a vida por amor - numa
entrega que, dentro de nossas possibilidades, deve ser total e exclusiva - a
serviço da “vida no planeta” ou, em outras palavras, a serviço do Reino de
Deus. “Não existe amor maior do que dar a vida pelos amigos” (Jo 15,13). “Tendo
amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1).
Os religiosos/as somos chamados a
ser não só “profetas da vida” (como todos os cristãos/ãs), mas “radicalmente
profetas da vida”. Hoje, na América Latina e no Caribe, a vida religiosa “é
chamada a ser uma vida missionária, apaixonada pelo anúncio de Jesus-verdade do
Pai, por isso mesmo radicalmente profética, capaz de mostrar, à luz de Cristo,
as sombras do mundo atual e os caminhos de uma vida nova” (DA, 220).
Falando da ética do cuidado, a CF11
nos lembra: “É absolutamente necessário desejar que o resgate da
responsabilidade ética motive e faça convergir ações de cunho social até de
alcance planetário, visando o cuidado deste imenso ser vivo chamado planeta
Terra. (…) A opção pela vida é o grande referencial. Assim tem sido e esta
opção precisa ser reafirmada, recolocando no centro da pauta da humanidade o
cuidado com o mundo vital” (Texto-Base, 94).
Falando, pois, da dimensão crística do
universo inteiro, a CF11 nos lembra ainda: “O universo inteiro possui uma
dimensão crística. A encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo
possuem um significado cósmico, totalmente universal. A libertação da natureza,
manipulada abusivamente pelo ser humano, está incluída na libertação do pecado
humano para a vivência da liberdade concretizada no amor-serviço. Inclui as
relações responsáveis e solidárias com as outras criaturas. Hoje, fica cada vez
mais claro que a salvação do ser humano é inseparável da salvação da criação
toda (Rm 8, 19-23). O destino de ambos está intimamente ligado” (Texto-Base,
183). Que a Páscoa e a CF11 sejam, para todos nós, fonte inesgotável de vida
nova.
Diário da
Manhã, Goiânia, 27/04/11, p. 5
Fr. Marcos
Sassatelli, Frade Dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia
Moral (Assunção - SP)
Prof. de Filosofia da UFG (aposentado)
Prof. na Pós-Graduação
em Direitos Humanos
(Comissão
Dominicana Justiça e Paz do Brasil / PUC-GO)
Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arquidiocese de Goiânia
Administrador Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Terra
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