quinta-feira, 2 de junho de 2016

Em defesa do SUS: contra “um golpe dentro do golpe”


No dia 16 de maio do corrente ano, o ministro da Saúde, Ricardo Barros (PP-PR), do governo do “golpista interino” Michel Temer, em entrevista à Folha de S. Paulo, afirmou que o país precisa rever o direito de acesso universal à saúde pública e a outros direitos constitucionais. É um “golpe dentro do golpe”.
Diz o ministro: “Nós não vamos conseguir sustentar o nível de direitos que a Constituição determina”. E ainda: “Não adianta lutar por direitos que não poderão ser entregues pelo Estado. Temos que chegar ao ponto de equilíbrio entre o que o Estado tem condições de suprir e o que o cidadão tem direito de receber”. Que retrocesso!
Em outro ponto da entrevista, o ministro afirma: “Infelizmente, a capacidade financeira do governo para suprir todas essas garantias que tem o cidadão não são suficientes. Não estamos em um nível de desenvolvimento econômico que nos permita garantir esses direitos por conta do Estado”.
Ao invés de defender - como ocorre em outros países - um SUS de qualidade, público e gratuito para todos e todas, que acabe aos poucos com os planos particulares de saúde, o ministro se posiciona a favor de uma privatização cada vez maior da saúde, declarando: “Quanto mais gente puder ter planos (de saúde), melhor, porque vai ter atendimento patrocinado por eles mesmos, o que alivia o custo do governo em sustentar esta questão” (Folha de S. Paulo, 17 de maio de 2016, p. B1). Que vergonha para o Brasil!
O ministro deveria lembrar os altos tributos que os trabalhadores e trabalhadoras pagam. “Brasileiro trabalha 151 dias para pagar tributos, que comem 41,4% do salário”. “A conta inclui todos os tributos (impostos, taxas e contribuições) cobrados pelo Governo Federal, Estados e Municípios. São itens como Imposto de Renda, IPTU, IPVA, PIS, Cofins, ICMS, IPI, ISS, contribuições previdenciárias, sindicais, taxas de limpeza pública, coleta de lixo, iluminação pública e emissão de documentos” (http://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2014/05/21/brasileiro-trabalha-151-dias-para-pagar-imposto-que-come-41,4%-do-salario.htm).
Só para pagar a contribuição previdenciária, o trabalhador ou trabalhadora com carteira assinada que ganha o salário mínimo (R$ 880,00), gasta por ano quase um mês de trabalho (R$ 844,80). Imaginem o dinheiro que entra nos cofres da Previdência!
Portanto, ministro Ricardo Barros, o atendimento na saúde pública já é muito bem “patrocinado” pelos trabalhadores e trabalhadoras. Não é um presente do Estado, mas um direito universal e inalienável de todo trabalhador e trabalhadora.
Quem sonega impostos - um verdadeiro crime contra a vida do povo - não são os trabalhadores e trabalhadoras, mas os ricos.
No Brasil, o 1% mais rico da população controla uma renda equivalente à dos 50% mais pobres. Considerando o patrimônio, vê-se que 10% da população detém 75,4% de toda a riqueza nacional. A concentração de renda é agravada pelo sistema tributário, por baixos salários e pela falta de investimento em serviço público (educação e saúde)” (http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/desenvolvimento/ conteudo_307951.shtml). É uma desordem estabelecida! É uma verdadeira iniquidade institucionalizada!
A desculpa para justificar a privatização da saúde é sempre a mesma: o Estado não tem recursos financeiros para atender ao direito do povo a uma saúde pública de qualidade e a outros direitos constitucionais. Pergunto: por que o Estado sempre tem recursos para o superfaturamento de obras públicas e para a prática da corrupção por parte de políticos e governantes?
Ministro Ricardo Barros, para que o direito de acesso universal à saúde pública de qualidade e os outros direitos constitucionais sejam cumpridos, a solução é muito simples:
1º - Acabar com a corrupção e a roubalheira generalizadas de políticos e governantes, colocando na cadeia todos os corruptos e ladrões de “colarinho branco” (hoje as cadeias estão cheias de “ladrões de galinhas”).
2º - Exigir dos políticos e governantes corruptos e ladrões - verdadeiros assaltantes dos cofres públicos - a devolução do dinheiro roubado, com juro e correção monetária.
3º - Acabar com a sonegação de impostos dos ricos e poderosos, cobrando - também com juro e correção monetária - todos os impostos atrasados.
4º - Taxar as grandes fortunas, as fabulosas heranças e os lucros exorbitantes dos bancos.
Ministro, é esse o caminho para tornar o Brasil um país decente e merecedor de respeito.
Em teoria - todos e todas nós sabemos - o SUS é um dos melhores planos de saúde pública do mundo, mas, na prática, ele deixa muito a desejar. O atendimento é extremamente deficitário e, na maioria das vezes, de péssima qualidade.
Cito, como exemplo, o caso da saúde pública em Goiás. “Menos leitos, mais dor e aflição”. “Goiás perdeu 1.461 vagas de internação de 2010 a 2015”. “Seis cidades goianas perderam 285 leitos conveniados ao SUS”.
O dia se divide entre a cadeira de rodas e a cama. ‘Grito de dor’. A doméstica Ivani Gonçalves tem 59 anos. ‘Não consigo vaga para cirurgia’. Vive presa dentro do barracão onde mora, no Jardim Liberdade, na Região Noroeste de Goiânia. A doméstica é uma das pessoas castigadas pela redução de 1.461 leitos do SUS, em Goiás, entre 2010 e 2015, como aponta levantamento do Conselho Federal de Medicina (CFM), divulgado na última semana. A queda no Estado (11,5%) é a sexta maior do país” (O Popular, 23 de maio de 2016, p. 12-13).
Ouça o desabafo de dona Ivani: “Tomo cinco remédios diferentes por dia para tentar suportar a dor. A prótese está solta dentro do meu corpo. Dói demais” (Ib.). Que situação lamentável! Essa é uma das inúmeras situações que encontramos todo dia!
Apesar de tantas deficiências, o SUS precisa ser sempre defendido, revisto e melhorado, no sentido de ampliar, em número e qualidade, suas ações, em favor de uma saúde pública gratuita e de qualidade.

Para que isso aconteça, precisamos acabar com a corrupção - muitas vezes legalizada - e banir da vida pública toda a cambada de políticos e governantes oportunistas e aproveitadores do povo, que - infelizmente - são hoje a maioria. Um outro Brasil é possível e necessário! Lutemos por ele!




Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 25 de maio de 2016

Uma convocação nacional: virada já!


Devemos dizer não a uma economia da exclusão e da desigualdade social”.
Essa economia mata”. “O sistema social e econômico é injusto em sua raiz”.
É um mal embrenhado nas estruturas”
(Papa Francisco. Alegria do Evangelho - EG, 53 e 59).


No dia 19 de abril passado, em reunião com a direção do PT, Lula reconheceu os erros que cometeu na composição de alianças. Antes tarde do que nunca! Pessoalmente, já sabia desses erros desde o primeiro dia do primeiro mandato do Lula: 1º de janeiro de 2003.
Desde aquela época, o PT, vislumbrado pelo poder ou - como diz Frei Betto - “picado pela mosca azul”, abandonou o seu projeto político popular e fez alianças com forças políticas que defendem - a qualquer custo e com qualquer meio - o projeto do sistema capitalista neoliberal, que é “um sistema econômico iníquo” (Documento de Aparecida - DA, 385).
Mal comparando, o PT acreditou que “as galinhas pudessem fazer aliança com a raposa”. Aqui está o erro que é a raiz de todos os outros erros. No fundo, o PT não acreditou na força da organização do povo e no slogan que ele mesmo sempre gritava aos quatro ventos em todas as manifestações: “povo unido, jamais será vencido!”. Abandonou o princípio - que até então para o PT era sagrado - de somente fazer alianças com forças políticas situadas no campo democrático popular. Fazendo alianças com o poderosos, o PT renegou sua história.
Por sua vez, os poderosos usaram a popularidade de Lula e a força política do PT enquanto era do seu interesse, permitindo (como prêmio de consolação) que os pobres tivessem algumas conquistas sociais e alguns ganhos, mas sempre dentro do sistema e sem implementar nenhuma reforma política que levasse a uma mudança do modelo econômico.
Essas conquistas e esses ganhos dos pobres não impediram os lucros exorbitantes dos ricos. Pelo contrário! “Permitiram - como afirma o sociólogo Boaventura de Sousa Santos - que os ricos e as oligarquias continuassem enriquecendo. Os bancos, por exemplo, nunca ganharam tanto dinheiro no Brasil como nos tempos de Lula. Mas como (devido à conjuntura favorável, o chamado boom das commodities). os preços (das matérias-primas) eram altos, sobrava um excedente significativo para fazer uma redistribuição sem precedentes. Por meio de mecanismos como Bolsa Família e outras políticas sociais, foi possível que 45 milhões de pessoas saíssem da pobreza, o que é um fato político muito importante” (http://www.ihu.unisinos.br/noticias/554872-boaventura-chegou-a-hora-de-uma-nova-esquerda. Cf. também: http://oglobo.globo.com/brasil/artigo-pt-podera-se-reinventar-por-frei-betto-19286616).
Não podemos esquecer, porém, a ambiguidade desses programas sociais: de um lado, servem (pelo menos enquanto os programas existem!) para melhorar a vida dos pobres (o que é muito positivo); de outro lado, servem também para desmobilizar os Movimentos Populares, evitar o perigo de revoltas e manter o povo submisso. Infelizmente, os governos do PT não abriram nenhum caminho que levasse a uma mudança de estruturas. Deu no que deu!
Quando as forças políticas e econômicas poderosas, que são forças “diabólicas”, perceberam que, devido a uma situação de crise mundial e nacional, tinham a chance de retomar o poder e que não precisavam mais do PT, do Lula e da Dilma - numa conspiração muito bem tramada por um grupo de traidores, chefiado por Michel Temer, o traidor-mor - o Senado, por 55 votos a 22, abriu o processo do impeachment, que é (como diz a presidenta Dilma em sua Declaração) uma “farsa jurídica e política”, ou, em outras palavras, uma farsa institucional, um verdadeiro golpe: um golpe baixo, sujo e fraudulento, hipocritamente revestido de legalidade.
Presidenta Dilma - mesmo na “dor da injustiça sofrida” (como afirmou em sua Declaração) - é tempo de autocrítica, é tempo de buscar novos caminhos, é tempo de voltar às fontes, é tempo - como diz Frei Betto - de reinventar o PT (e outras forças políticas populares), é tempo de retomar o trabalho de base. Não adianta chorar o leite derramado! Bola para frente!
Presidenta Dilma, aproveite o tempo do seu afastamento provisório - que é o tempo do “golpista interino” (e não do “presidente interino”) para - em caráter de urgência - fazer uma grande convocação nacional com o lema: virada já! Sugiro três frentes de luta: frente jurídica, frente popular e frente internacional.
Frente jurídica: presidenta Dilma, convoque para uma reunião a Rede Nacional de Advogados Populares (Renap) e outras Organizações Populares de Advogados, que atuam desinteressadamente em todas as regiões do país, defendendo os direitos dos Trabalhadores/as. Com certeza, os advogados/as dessa Rede e dessas Organizações terão o maior prazer de colaborar, de maneira organizada, na sua defesa contra as injustas acusações, que levaram à abertura do processo de impeachment.
Frente popular: presidenta Dilma, convoque para uma reunião as lideranças dos Movimentos Populares e das Centrais de Movimentos Populares, as lideranças dos Sindicatos de Trabalhadores/as e das Centrais Sindicais de Trabalhadores/as, que (por não serem pelegos e pelegas, como - infelizmente - alguns Sindicatos e algumas Centrais Sindicais) lutam por um projeto político popular, para: colocar o Brasil inteiro em estado permanente de mobilização; denunciar que o impeachment sem crime de responsabilidade é um golpe na democracia e nos direitos humanos e (como afirma em sua Declaração) “a maior das brutalidades contra o ser humano”; divulgar amplamente na mídia o nome dos deputados e senadores que votaram e continuam votando contra o povo, a fim de que, nas próximas eleições, sejam banidos para sempre da vida pública.
Frente internacional: presidenta Dilma, convoque para uma reunião lideranças populares de outros países da América Latina e do mundo para sensibilizá-las sobre o que está acontecendo no Brasil e suscitar uma grande rede de solidariedade e apoio.
Esse sistema não se aguenta mais. Temos que mudá-lo, temos que voltar a colocar a dignidade humana no centro, e que, sobre esse alicerce, se construam as estruturas sociais alternativas de que precisamos” (Papa Francisco. 1º Encontro Mundial dos Movimentos Populares - EMMP. Roma, 27-29/10/14).

 “Povo unido, jamais será vencido!”. Virada já!






Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 18 de maio de 2016

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Criminalização dos Movimentos Populares


O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Estado de Goiás, em “Nota Pública de Denúncia”, do dia 20 de abril de 2016, “vem, publicamente, denunciar e repudiar os recentes atos de criminalização da luta pela Reforma Agrária, promovidos por setores do Ministério Público, do Judiciário e do Governo do Estado de Goiás”.
Atualmente, no Brasil e, sobretudo em Goiás (que, nestas coisas, ocupa sempre um dos primeiros lugares) estamos em estado de sítio. Muitos trabalhadores e líderes dos Movimentos Populares são presos ou assassinados. A situação é muito grave e preocupante.
A Nota do MST diz: “O caráter de perseguição e criminalização dos Movimentos Populares se confirma quando observamos a Portaria nº 446, de 12 de abril de 2016, da Secretaria de Segurança Pública de Goiás, a qual impõe para a Polícia Civil e a Policia Militar do Estado o estado de ‘prontidão’, permanecendo suas tropas de sobreaviso por dois meses, restringindo férias, licenças e quaisquer outras formas de ausência dos seus servidores, para suposta ‘proteção da ordem pública e da paz social’, ‘acompanhando de possíveis delitos em conflitos urbanos e rurais’”.
Continua a Nota: “No momento de celebração e memória dos 20 anos do Massacre de Eldorado dos Carajás (PA), e uma semana após o covarde assassinato de dois trabalhadores rurais sem terra em Quedas do Iguaçu (PR), no dia 4 de abril de 2016, foi deflagrada operação policial para prender diversos militantes do MST, conforme determinação judicial da Comarca de Santa Helena de Goiás (GO). O agricultor Luiz Batista Borges, integrante do acampamento Padre Josimo, foi preso ao atender convite para prestar esclarecimentos na delegacia local. No mesmo dia a polícia invadiu a casa do agricultor Valdir Misnerovicz, conhecido militante e defensor da Reforma Agrária no país e internacionalmente, e foi ao acampamento Padre Josimo em procura dos agricultores Diessyka Santana e Natalino de Jesus”.
Que vergonha para Goiás! Pessoalmente, conheço muito bem o Valdir. É um homem de luta, um trabalhador corajoso, um líder intelectualmente bem preparado e, sobretudo, uma pessoa honesta. Políticos poderosos - cujos interesses o Governo do Estado de Goiás defende a qualquer custo e com qualquer meio - tentaram diversas vezes comprá-lo oferecendo muito dinheiro, mas ele nunca se deixou corromper. Ah, se os políticos, os promotores, os juízes e os governantes de Goiás tivessem essa mesma coerência de vida do Valdir!
A Nota afirma também: “Em processo que corre em segredo de justiça, sabe-se que a alegação formal para a repressão é que os militantes sociais constituem uma organização criminosa (reparem o absurdo: uma organização criminosa!) A gravidade de tal acusação deve preocupar não só os que lutam pela Reforma Agrária em Goiás, mas todos e todas lutadores/as populares do Brasil. É um novo nível de perseguição política, que se insere na conjuntura nacional de golpe contra a democracia e contra as forças populares”. Vale ressaltar que, atualmente, tal processo não está mais sob “segredo de justiça”.
O Valdir - com mandato de prisão - está sendo processado como chefe de organização criminosa e procurado no Brasil todo pelas polícias civil, militar e federal. É uma operação nazista! Que atraso!
Nesses casos e em muitos outros, a Justiça de Goiás é uma “Justiça injusta”, hipocritamente coberta de legalidade. Os membros do Ministério Público, do Judiciário e do Governo do Estado de Goiás, responsáveis por essa “Justiça injusta” lembrem-se que a Justiça de Deus (que é sempre justa) um dia vai ser feita. Aguardem!
A Nota lembra ainda: “Nos últimos dois anos, as famílias do MST acampadas em Goiás saltaram de 600 para cerca de 6.000 e é contra essa reorganização da luta pela terra que o Estado está atuando. O maior acampamento do Estado era, até então, justamente o acampamento Padre Josimo Tavares, localizado no município de Santa Helena de Goiás. Este acampamento exige a desapropriação da Fazenda Usina Santa Helena, pertencente ao Grupo Econômico Naoum, o qual já se encontra em recuperação judicial, com diversas dívidas trabalhistas e uma gigantesca dívida com a União. Apesar de toda essa conjugação de fatos, o Poder Judiciário local tem sido omisso na busca por uma resolução pacífica do conflito. Ao contrário, rejeitou processo da Fazenda Pública a partir do qual a União poderia arrecadar parcela do latifúndio para cobrar as dívidas para com a mesma, e, posteriormente, poderia destiná-las para reforma agrária”.
A Nota conclui dizendo: “Assim, alertamos toda a sociedade brasileira desta tentativa de criminalização da luta pela Reforma Agrária e repudiamos o avanço do Estado Policial em Goiás. Diante das ilegalidades e do caráter marcadamente político-ideológico das investigações e do processo judicial exigimos a liberdade para todos os perseguidos políticos. Por fim, conclamamos as forças sociais progressistas a reagirem veementemente contra esse atentado à democracia e aos direitos humanos. De nossa parte, reiteramos nosso compromisso em permanecer firmes na luta contra o latifúndio e quaisquer forças conservadoras, e assim contribuir na construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária”.
Termino fazendo uma reflexão. Santo Tomás de Aquino, baseado no ensinamento de Jesus de Nazaré e dos primeiros pensadores cristãos, afirma que a destinação dos bens para uso de todos os seres humanos é um direito primário e que a propriedade particular é um direito secundário. Quando o segundo direto impede o acesso ao primeiro, não é mais um direito. É um abuso. É uma injustiça.
A partir desse princípio, Santo Tomás - cujo pensamento foi assumido posteriormente pelo Ensino Social da Igreja - diz que ninguém tem direito ao supérfluo quando o outro não tem o necessário.
Traduzindo para os dias de hoje: na vida rural, ninguém tem direito de ser proprietário de latifúndios (improdutivos ou com monocultura que envenena a mãe terra e só visa o lucro) quando o outro não tem sequer um pedaço de terra para plantar, produzir alimentos saudáveis por meio da agricultura agroecológica e viver com dignidade; na vida urbana, ninguém tem direito de ser proprietário de terrenos e loteamentos - visando somente a especulação imobiliária - quando o outro não tem sequer um lote para construir uma moradia digna. É uma questão de justiça e de direitos humanos!
“Lutar, Construir Reforma Agrária Popular!”





Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 11 de maio de 2016

Moradores de rua: uma situação alarmante


Uma pesquisa, realizada pelo Núcleo de Estudos Sobre Criminalidade e Violência da Universidade Federal de Goiás (Necrivi-UFG), com apoio da Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas), aponta que 61 moradores de rua foram mortos nos últimos três anos em Goiânia (entre agosto de 2012 e maio de 2015). O estudo destaca que esse número "é alarmante" quando comparado ao total de 351 pessoas que viviam nas ruas da capital no ano passado.
De acordo com o sociólogo e professor da UFG Djaci David de Oliveira, coordenador da pesquisa, os dados são preocupantes. “Eles mostram que a sociedade goiana está achando uma maneira bem perversa de resolver a questão, pois o número de mortes de moradores de rua é muito alto. E de maio do ano passado para cá, já ocorreram mais assassinatos, ou seja, a situação precisa ser analisada com atenção”.
Entre os 351 moradores de rua que foram entrevistados pelos pesquisadores, “298 eram adultos, 22 idosos, 21 crianças e 10 adolescentes. Deste total, 80,6% são homens, com idade média de 39,5 anos de idade, sendo que o mais novo tinha idade inferior a 1 ano e o mais velho, 98”.
Em sua maioria, “se declararam como não-brancos, solteiros e com escolaridade que não passa do ensino médio. Apesar de obter o número de mortes, os pesquisadores ainda analisam as idades e tentam traçar um perfil mais detalhado das vítimas”.
Djaci explica que “muitos foram enterrados como indigentes e fica difícil esse levantamento. Além disso, o universo de mortes pode ser ainda maior, já que existem mais de 100 corpos sem identificação no IML [Instituto Médico Legal]”.
Segundo o pesquisador, o principal motivo para que essa população passe a viver nas ruas são conflitos familiares. “Muitos enfrentaram situações de brigas, maus-tratos e outros problemas com parentes, e acabaram saindo de casa. Notamos que alguns deles sabem onde estão seus parentes, mas se recusam a voltar para aquele ambiente e acabam ficando nas ruas”.
Há também aqueles que viviam em outras cidades ou estados e se mudaram para Goiânia em busca de uma vida melhor, mas não conseguiram emprego. “Cerca de 30% dos moradores de rua que encontramos eram pessoas nascidas na capital. O restante é todo de pessoas que mudaram para a cidade por algum motivo, principalmente em busca de emprego, mas não obtiveram sucesso”.
De acordo com o pesquisador Djaci, depois de passar um ano nas ruas, dificilmente a pessoa consegue uma reinserção na sociedade. “Eles passam a viver sem regras, muitos fazem consumo de entorpecentes e é difícil que se adequem aos hábitos antigos. Por isso, eles precisam de ajuda especializada, com psicólogos, assistentes sociais, para que possam ter novas oportunidades e as aceitem também”.
Segundo a pesquisa, “104 moradores de rua declararam que estavam fora das suas casas há menos de um ano, 33 até cinco anos, 22 até dez anos, e 26 há mais de dez anos”.
O levantamento do Necrivi aponta ainda que “46,4% dos moradores de rua vivem na região Central de Goiânia. Lodo depois vem a região Sul, com 15,8%, e a região Oeste, com 11,5%. Já a região Leste concentrava 10% das pessoas em situação de rua, seguida das regiões Norte (8,1%), Sudoeste (3,3%) e Noroeste (1,9%). Já 2,9% não souberam informar em quais locais costumam permanecer com maior frequência”.
Ainda segundo a pesquisa, muitos moradores de rua se concentram nas avenidas Independência e Paranaíba e na extensão do Eixo Anhanguera. “Normalmente são áreas com grande circulação de pessoas, então, eles atuam como pedintes e também fazem alguns bicos como flanelinhas, ambulantes e vigias de carros. Essas atividades garantem uma renda mínima pelo menos para a alimentação”.
A concentração é maior no Centro em função também dos serviços de assistência pública, como a Semas, o Complexo 24 horas, a Casa de Acolhida Cidadã e o Restaurante Cidadão.
E foi exatamente desses locais - explica o sociólogo - que a pesquisa teve seu ponto de partida, pois consultamos os cadernos de registro de fluxo diário e conseguimos ter os primeiros dados. Aí elaboramos um questionário com o objetivo de traçar um perfil dessa população”.
Do total de entrevistados, “59,5% afirmaram que dormem nas ruas e 40,5% disseram que passam a noite em abrigos”.
Outro dado relevante da pesquisa é em relação às crianças que vivem nas ruas da capital. Segundo o professor Djaci, nenhuma das 21 crianças vivia sozinha, todas estavam vinculadas aos pais. “Essa é uma realidade diferente de outras capitais, onde muitos menores estão por conta própria. Todos os que encontramos em Goiânia estão em situação de rua juntamente com seus pais”.
Os entrevistados afirmaram que houve uma redução no número de crianças nas ruas. Diante disso, os pesquisadores fazem um levantamento para saber se elas foram apreendidas pela polícia, por algum ato ilícito, ou se estão entre os mortos. “Infelizmente, os dados que coletamos não apresentam a idade das vítimas. Sendo assim, estamos trabalhando nisso agora para saber se as crianças em situação de rua também são vítimas dos homicídios”.
Para o sociólogo, as crianças que já crescem nas ruas têm ainda mais chance de nunca conseguir uma inserção na sociedade. “Se é difícil para qualquer um crescer com acesso à saúde, educação, e ter um bom emprego na vida adulta, imagine para uma criança de rua. Com isso, a maioria acaba vivendo ao relento por toda a vida, sem projeções de que ela seja muito longa”.
Segundo o professor da UFG faltam políticas públicas voltadas à população em situação de rua. “Primeiramente, é preciso que a Semas tenha uma equipe especializada para lidar com essas pessoas, tratar o vício em entorpecentes. Em seguida, é preciso que seja construído um espaço para que elas possam tomar banho, trocar de roupas, passar a noite. Esse trabalho é realizado em alguns abrigos, mas precisa de uma abrangência ainda maior”.
O pesquisador ressalta que - além disso - as autoridades precisam ajudar os moradores de rua a aprenderem uma profissão. “Se essas pessoas fossem devidamente tratadas e recebessem qualificação profissional, não tenho dúvidas de que a realidade seria diferente. Muita gente teria plenas condições de se reerguer. Também podiam oferecer moradia e, aliada a uma oportunidade de emprego, a vida entraria nos eixos novamente”.
A situação alarmante dos Moradores de rua questiona-nos a todos e a todas, faz-nos refletir e leva-nos a tomar atitudes urgentes. São irmãos e irmãs nossos em permanente perigo de vida.

 “É curioso - diz o Papa - como no mundo das injustiças abundam os eufemismos. Não se dizem as palavras com toda a clareza, e busca-se a realidade no eufemismo. Uma pessoa, uma pessoa segregada, uma pessoa apartada, uma pessoa que está sofrendo a miséria, a fome, é uma pessoa em situação de rua: palavra elegante, não? (...) Por trás de um eufemismo há um crime” (Discurso aos participantes do 1º Encontro Mundial dos Movimentos Populares, Roma, outubro de 2014). Meditemos as palavras do nosso irmão Francisco!


Moradores de rua costumam ficar embaixo de viaduto na Marginal Botafogo


Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br
Goiânia, 04 de maio de 2016

Caso Parque Oeste: enfim, uma boa notícia


“Absolvição de PMs é cassada”. É a manchete da reportagem de Cleomar Almeida, no Jornal O Popular do dia 18 de abril, p. 18. O subtítulo é: “Desembargador Carlos Alberto França, do TJ-GO, determina reinício de processo na área cível que, segundo ele, foi prejudicado por falta de testemunha”. Enfim, uma boa notícia, mesmo que seja somente uma pequena luz no meio de uma verdadeira barbárie humana.
Diz a reportagem: “O desembargador Carlos Alberto França, do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO), cassou sentença que absolveu, por ato de improbidade administrativa, seis policiais militares que comandaram a desocupação do Parque Oeste Industrial (Goiânia), ocorrida em 16 de fevereiro de 2005. Na decisão, o magistrado entende que a acusação foi prejudicada, já que o processo não possibilitou a produção de prova testemunhal para esclarecer se houve ou não excesso por parte deles”.
Lembra o nome dos policiais: “o coronel José Divino Cabral (aposentado), os tenentes-coronéis Alessandri da Rocha Almeida e Wilmar Rubens Alves Rodrigues, os majores Eduardo Bruno Alves e Wendel de Jesus Costa, além do policial Rorion Alves Martins. Os policiais alegaram ao Judiciário que os autos não mostram provas de que agiram com dolo, ou seja, com intenção. Duas pessoas morreram, 14 ficaram feridas e cerca de 800 foram detidas, durante a operação”.
Nos autos, o Ministério Público do Estado de Goiás (MP-GO) informa: “O fato de os policiais terem realizado a operação em razão de ordem judicial não significa que estavam autorizados a agir de maneira desproporcional, tampouco a adotar práticas de tortura ou disparos de arma de fogo”.
A reportagem continua dizendo: “O desembargador considera que, durante a instrução do processo, a juíza Zilmene Gomide da Silva Manzolli, da 1ª Vara da Fazenda Pública Estadual da Comarca de Goiânia, não possibilitou a produção de prova testemunhal, solicitada pelo MP e necessária para a análise do caso. O julgamento antecipado violou o direito à ampla defesa e ao contraditório”.
O magistrado “manda a juíza iniciar o processo de novo, para garantir a prova testemunhal. Zilmene não quis se pronunciar. O TJ-GO informa que a defesa das partes ainda não recorreu da decisão de França”.
A determinação do desembargador se dá na área cível. Infelizmente, na área criminal - em 24 de junho de 2014 (confirmando decisão de primeiro grau) - os seis policiais foram absolvidos da acusação de homicídio e tentativa de homicídio. Embora tenha sido comprovada a materialidade dos crimes pelos exames de laudos cadavéricos, não foram identificados (segundo o relator do processo) os autores dos disparos. Na área criminal, os policiais - se fossem condenados - seriam presos. Na área cível, se forem condenados, poderão sofrer sanções, como - por exemplo - a perda do cargo.
Pela sua gravidade e pelo seu requinte de crueldade, o caso do Parque Oeste foi levado, no dia 31 de outubro de 2014, para audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington (EUA).
Desembargador Carlos Alberto, por ter vivenciado e acompanhado de perto toda a história da Ocupação “Sonho Real” do Parque Oeste Industrial, fiquei contente com a sua determinação, embora - pela barbárie praticada - represente muito pouco.
Ficando só na questão da legalidade e da constitucionalidade (sem entrar na questão da justiça), não é preciso ser advogado para entender que “a maneira” (sublinho: “a maneira”) como a liminar de reintegração de posse foi cumprida é totalmente ilegal, inconstitucional e criminosa. Por isso, desembargador França, os criminosos não são somente os seis policiais citados, mas também e sobretudo o secretário da Segurança Pública e o governador do Estado de Goiás da época, com a conivência da Prefeitura de Goiânia e a anuência do Judiciário.
Mesmo que o Governo Estadual - legal e constitucionalmente falando - tivesse que cumprir a liminar de reintegração de posse, devia fazê-lo de maneira humana e respeitosa, demorando o tempo necessário e sabendo para onde levar as pessoas, ao menos em caráter provisório.
Foi totalmente ilegal, inconstitucional e criminosa a operação noturna, chamada cinicamente “Operação Inquietação”, realizada do dia 5 ao dia 15 de fevereiro de 2005, de 0 às 6 horas, para - em plena noite - perturbar a tranquilidade dos moradores da Ocupação “Sonho Real”, assustar as pessoas e traumatizar as crianças.
Foi totalmente ilegal, inconstitucional e criminosa a operação de desocupação, também chamada cinicamente “Operação Triunfo”, realizada no dia 16 de fevereiro de 2005 por 1,8 mil policiais militares que, em pouco mais de uma hora e meia, jogaram na rua, de maneira violenta e truculenta, cerca de 14 mil pessoas, que não sabiam para onde ir. Durante a operação, dois jovens (Pedro Nascimento da Silva e Wagner da Silva) foram mortos à queima roupa, muitas pessoas foram feridas (uma ficou paraplégica) e cerca de 800 foram detidas. Uma verdadeira operação de guerra.
Insisto: as duas Operações “Inquietação” e “Triunfo”, que são “a maneira” como o Estado de Goiás cumpriu a liminar de reintegração de posse, foram - sem dúvida alguma - ilegais, inconstitucionais e criminosas.
Desembargador, Carlos Alberto, além dos seis militares, são as próprias Operações “Inquietação” e “Triunfo” que devem ser julgadas e condenadas. O Estado de Goiás - que é o responsável das operações - não vai fazer isso. Daí a necessidade da “federalização” das investigações. É uma vergonha para a Justiça que - depois de 11 anos - o “Caso Parque Oeste” continue impune.
Se em nossa sociedade houvesse um mínimo de respeito pela leis e pela Constituição Federal (nem digo, pela Justiça), os responsáveis dessas operações estariam na cadeia há muito tempo.
Um outro Poder Judiciário é possível e necessário! Lutemos por ele!

Vejam na internet (YouTube) o documentário “Sonho Real - Uma história de luta por moradia”. Leiam também na internet o meu artigo: “Ocupação ‘Sonho Real’: 11 anos se passaram” (17 de fevereiro deste ano).




Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 27 de abril de 2016

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Câmara Federal: uma vergonha nacional



          Domingo, dia 17 do mês corrente, à tarde e à noite, muitos brasileiros e brasileiras (no Brasil e no exterior) tiveram a oportunidade de assistir a um espetáculo vergonhoso e deprimente, um verdadeiro circo, cujos atores (cumprindo um papel ridículo e - diga-se de passagem - de péssima qualidade do ponto de vista artístico) foram os deputados federais, que em sua maioria, são uma corja de fariseus, hipócritas, falsos, corruptos, oportunistas, covardes, conspiradores e traidores.
Foi nojento e repugnante ver que - depois de conquistar o 342º voto - um grupo desses deputados federais conspiradores e traidores (alguns deles eram ministros do governo até poucos dias antes da votação), numa atitude inescrupulosa e diabólica, correram para a casa do chefe dos conspiradores e traidores, que os recebeu com um sorriso cínico e maldoso (vejam foto compartilhada nas redes sociais). É inacreditável! Para qualquer pessoa que tem um mínimo de decência e dignidade humana, foi uma cena de provocar vômito!
          A bem da verdade, precisamos reconhecer que na Câmara há também um pequeno grupo - e isso é motivo de muita esperança - de deputados federais honestos que, apesar das condições adversas, esforçam-se para fazer da prática política um verdadeiro serviço ao povo e ao bem comum. Como dizia Paulo VI e repete hoje o Papa Francisco: a verdadeira prática política é uma das formas mais sublimes da caridade (do amor).
      Infelizmente, nestes últimos anos, o maior erro das forças políticas populares no governo foi fazer a aliança com um grupo político, que é parte integrante dos detentores do poder econômico (os “demônios” de hoje). Deu no que deu! Espero que a traição dos novos “Judas” sirva de lição para essas forças políticas populares e também para todos os movimentos sociais populares e todos os sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras que lutam por uma nova sociedade, justa e igualitária.
         Lembremos as palavras de Jesus de Nazaré: “Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6, 24): o deus dinheiro, o grande ídolo do nosso tempo.
Ai de vocês, doutores da Lei e fariseus hipócritas! Vocês são como sepulcros caiados: por fora parecem bonitos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e podridão! Assim também vocês: por fora parecem justos diante dos outros, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e injustiça!” (Mt 23, 27-28). Essas palavras são o retrato perfeito do que vimos na Câmara Federal, durante a votação do impeachment, que foi um golpe político baixo, covarde e vingativo.
Uma das coisas mais nojentas da sessão de votação do impeachment foi ver como deputados federais, durante o voto, emitiam frases de efeito, profanando os valores mais sagrados da vida humana e, às vezes, utilizando - de maneira deturpada, oportunista e farisaica - a própria Palavra de Deus para defender seus interesses pessoais e de grupo. Houve até deputado que fez uma homenagem a um dos maiores torturadores da ditadura civil e militar. É execrável!
Lamento profundamente que muitos deputados federais (que se dizem, mas não são) cristãos católicos ou cristãos evangélicos sejam piores do que os outros. Como pode, por exemplo, um presidente da Câmara Federal, notoriamente corrupto, presidir uma sessão tão importante? É realmente o fim da picada! O despudor não tem mais nenhum limite! Nunca vi esses fariseus falarem tanto o nome de Deus em vão.
A bancada goiana de deputados federais (com uma única exceção) confirmou - com sua prática política - que o Estado de Goiás é um dos Estados mais atrasados do Brasil, do ponto de vista cultural e ético. Em Goiás, ainda predomina o coronelismo rural (dos latifundiários), o coronelismo urbano (dos donos das imobiliárias) e o coronelismo político, este último a serviço dos dois primeiros.
Em Goiás, os criminosos - muitas vezes presos ou com mandato de prisão - são os trabalhadores e trabalhadoras que lutam pelo direito sagrado à terra e à moradia.
Quem tiver estômago para isso, leia na mídia o depoimento dos deputados federais goianos - e de outros Estados também - na hora da votação do impeachment. É estarrecedor! Por fim, lembrem-se os deputados federais que Deus é justo. Aguardem! A hora da justiça vai chegar!
Em contraposição ao uso demagógico e oportunista da palavra “povo” por parte dos deputados federais, deixo um testemunho: domingo 17, dia da votação do impeachment, nas Comunidades da Paróquia Nossa Senhora da Terra (Região Noroeste de Goiânia), onde eu atuo pastoralmente, havia no meio do povo um clima de muita preocupação e, no rosto das pessoas, estava estampado um sentimento de decepção e tristeza. Isso é muito significativo! Pessoalmente, só pude assistir à última parte do “circo” da votação do impeachment, mas foi mais do que o suficiente para perceber claramente que se tratava de uma grande farsa.
Na conquista do 342º voto houve um profundo silêncio. Por volta das 23h, as ruas e avenidas do bairro Floresta e Jardim Curitiba III, onde eu passei de carro, estavam totalmente vazias. Parecia um clima de velório. Não houve nenhum sinal de manifestação ou euforia por parte do povo. Esse fato, por si só, fala muito mais do que todas as frases demagógicas de efeito dos deputados federais de Goiás e de todo o Brasil.
          Há uma diferença fundamental no uso da palavra “povo” entre os deputados federais e os que lutam por uma nova sociedade, que é a sociedade do bem viver ou - à luz da Fé - o Reino de Deus na história do ser humano e do mundo. Para os primeiros, o “povo” são as elites e os grupos de classe média que, para defender seus próprios interesses, se aliaram às elites e, nas manifestações públicas, costumam fazer muito barulho. Para os segundos, o “povo” são os pobres - os trabalhadores e trabalhadoras - que são a grande maioria, e seus aliados. Pensemos!
        Como diz o Papa Francisco, fazendo suas as palavras dos movimentos populares, “esse sistema não se aguenta mais. Temos que mudá-lo, temos que voltar a levar a dignidade humana para o centro, e que, sobre esse pilar, se construam as estruturas sociais alternativas de que precisamos” (1º Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Roma, 27-29/10/2014).
        Nas próximas eleições vamos banir da vida pública - de uma vez por todas - esse bando de políticos corruptos e traidores, que são capazes de vender até a própria mãe para defender seus interesses. Vamos votar em trabalhadores e trabalhadoras honestos, que não se vendem e que estão dispostos a colocar a prática política a serviço do bem comum. Chega de tanta maracutaia!

         Estamos no tempo pascal. Páscoa - para os cristãos e cristãs - é “passagem” para uma vida nova. Não temos direito - sobretudo os seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré - de perder a esperança. Cantemos: “Vitória, tu reinarás”! 




Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 20 de abril de 2016

“A Alegria do Amor”: sua profundidade humana



Na Exortação apostólica pós-sinodal sobre o amor na família “A Alegria do Amor” (“Amoris Laetitia” - AL) - datada de 19 de março (Solenidade de S. José) e divulgada no dia 8 deste mês de abril - o Papa Francisco recolhe os resultados de dois Sínodos sobre a família (outubro de 2014 e outubro de 2015), além de outras valiosas contribuições.
     O que caracteriza a Exortação é sua profundidade humana e sua abordagem libertadora. De um lado, Francisco apresenta com clareza e simplicidade de irmão o projeto de matrimônio e família de Jesus de Nazaré como um ideal de vida que liberta, humaniza e leva à felicidade: uma meta a ser perseguida. De outro lado, o Papa, com muita sensibilidade e ternura, sabe compreender e respeitar os casais e as famílias nas diferentes situações concretas em que se encontram, com seus limites, seus problemas e suas dificuldades. Sabe enxergar e valorizar os aspectos positivos que existem em todas as situações matrimoniais e familiares como sinais da graça e da presença de Deus.
      A meu ver, a Teologia Moral e Pastoral que perpassa toda a Exortação é a da Libertação, que é uma Teologia radicalmente humana e, por isso, cristã (evangélica). De fato, ser cristão ou cristã é ser radicalmente humano ou humana. Nunca alguém é humano ou humana demais. Mas como o ser humano faz parte do mundo e é mundo, faz parte da natureza e é natureza, podemos dizer que o cristianismo é um humanismo radical natural e, ao mesmo tempo, um naturalismo radical humano.
       Tendo consciência da historicidade do ser humano, o critério que sempre guiou as minhas reflexões sobre Ética filosófica (Ética à luz da razão) e Ética teológica (Ética à luz da razão iluminada pela Fé) foi esse: é ético (ou moral) o comportamento mais humano possível numa determinada situação concreta.
      Constato agora com alegria que é justamente esse o critério que guiou o Papa Francisco na elaboração da Exortação apostólica pós-sinodal: “A Alegria do Amor”
           Para o Papa Francisco a Ética (ou a Moral) matrimonial e familiar é uma Ética que - à luz da Palavra de Deus - parte da situação concreta em que se encontram os casais e as famílias. É o próprio Francisco que diz isso fazendo um resumo da Exortação.
No desenvolvimento do texto, começarei por uma abertura inspirada na Sagrada Escritura, que lhe dê o tom adequado. A partir disso, considerarei a situação atual das famílias, para manter os pés assentes na terra. Depois lembrarei alguns elementos essenciais da doutrina da Igreja sobre o matrimônio e a família, seguindo-se os dois capítulos centrais, dedicados ao amor. Em seguida destacarei alguns caminhos pastorais que nos levem a construir famílias sólidas e fecundas segundo o plano de Deus, e dedicarei um capítulo à educação dos filhos. Depois deter-me-ei sobre um convite à misericórdia e ao discernimento pastoral perante situações que não correspondem plenamente ao que o Senhor nos propõe; e, finalmente, traçarei breves linhas de espiritualidade familiar” (AL, 6).
E ainda: “Quero reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais. Naturalmente, na Igreja, é necessária uma unidade de doutrina e práxis, mas isto não impede que existam maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que decorrem dela. Assim há de acontecer até que o Espírito nos conduza à verdade completa (cf. Jo 16,13), isto é, quando nos introduzir perfeitamente no mistério de Cristo e pudermos ver tudo com o seu olhar. Além disso, em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais. De fato, ‘as culturas são muito diferentes entre si e cada princípio geral (...), se quiser ser observado e aplicado, precisa ser inculturado’” (AL, 3)
Refletindo sobre a vida matrimonial e familiar, precisamos sempre ter presente o critério da gradualidade. “Durante muito tempo - afirma Francisco - pensamos que, com a simples insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias, consolidávamos o vínculo dos esposos e enchíamos de sentido as suas vidas compartilhadas. Temos dificuldade em apresentar o matrimónio mais como um caminho dinâmico de crescimento e realização do que como um fardo a carregar a vida inteira. Também nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las” (AL, 37).
O Papa continua dizendo: “No mundo atual aprecia-se também o testemunho dos cônjuges que não se limitam a perdurar no tempo, mas continuam a sustentar um projeto comum e conservam o afeto. Isto abre a porta a uma pastoral positiva, acolhedora, que torna possível um aprofundamento gradual das exigências do Evangelho. No entanto, muitas vezes agimos na defensiva e gastamos as energias pastorais multiplicando os ataques ao mundo decadente, com pouca capacidade de propor e indicar caminhos de felicidade. Muitos não sentem a mensagem da Igreja sobre o matrimónio e a família como um reflexo claro da pregação e das atitudes de Jesus, o qual, ao mesmo tempo que propunha um ideal exigente, não perdia jamais a proximidade compassiva às pessoas frágeis como a samaritana ou a mulher adúltera” (AL, 38).
Na Exortação apostólica pós-sinodal, Francisco aplica à realidade do matrimônio e da família o ensinamento do Concílio Vaticano II: "O mistério do ser humano só se torna claro verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado. (…) Cristo manifesta plenamente o ser humano ao próprio ser humano e lhe descobre a sua altíssima vocação" (A Igreja no mundo de hoje - GS, 22). “O pecado diminui o ser humano, impedindo-o de atingir a sua plena realização” (GS, 13). "Todo aquele que segue Cristo, o Homem perfeito, torna-se ele também mais ser humano" (GS, 41). "A fé esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do ser humano. E por isso orienta a mente para soluções plenamente humanas" (GS, 11). Meditemos!
Oportunamente voltarei sobre o assunto, aprofundando os pontos principais da Exortação apostólica pós-sinodal: “A Alegria do Amor”.





Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 13 de abril de 2016
A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos