quarta-feira, 13 de julho de 2022

A Rua unida jamais será vencida!

 

A Equipe de Coordenação do Movimento Nacional da População em Situação de Rua de Goiás (MNPR-GO), animada por Eduardo de Matos, ex-morador de Rua - com o apoio de Movimentos Sociais Populares, Organizações de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos e da Irmã Mãe Terra Nossa Casa Comum, e também do Ministério Público de Goiás - promoveu o “Festival da Cultura e Inclusão da População em Situação de Rua” (6 e 7 deste mês de julho: Rua do Lazer - Centro - Goiânia - GO) e o VI Seminário Povos de Rua: resistência, arte, liberdade e cuidados - a construção da cidadania com os Povos de Rua (dia 8 deste mesmo mês: Auditório do MPGO - Goiânia - GO).

No Seminário foram debatidos e aprofundados diversos temas, como: o Direito de ser cuidado nos espaços de Rua; os Direitos dos usuários de drogas que vivem na Rua; População em Situação de Rua, Movimentos Sociais Populares, Direitos Humanos, Estado e Políticas Públicas; Garantindo Cuidados e Defendendo a Vida nos Espaços da Cidade.

O Seminário - por sinal muito bem organizado - renovou a esperança dos nossos Irmãos e Irmãs que moram em Situação de Rua presentes e de todos nós - seus Apoiadores e Apoiadoras - que também participamos.

A questão dos População em Situação de Rua - como nos lembrou Pe. Júlio Lancelotti (da Pastoral de Rua de São Paulo - SP) em sua comunicação virtual - não é meramente pessoal, mas sobretudo estrutural. Vivemos numa sociedade estruturalmente injusta e desigual. O sistema econômico capitalista neoliberal é iniquo: não só explora, mas descarta os trabalhadores e trabalhadoras, sobretudo os mais pobres, como se fossem lixo.

Segundo Relatório da ONU, lançado no dia 6 deste mês de julho, “o total de pessoas afetadas pela fome em todo o mundo aumentou em 150 milhões desde o início da pandemia da Covid-19, alcançando 828 milhões, em 2021” (O Popular, 07/07/22, p. 9). No Brasil, temos atualmente 33,1 milhões de pessoas passando fome. Que perversidade humana!

Precisamos - unidos/as e organizados/as - lutar para mudar esse sistema, construindo uma nova sociedade, um Mundo Novo de Irmãos e Irmãs, Filhos e Filhas do mesmo Pai-Mãe que é Deus.

“Hoje - diz o papa Francisco - ao fenômeno da exploração e da opressão, soma-se uma nova dimensão, um matiz gráfico e duro da injustiça social; os que não podem ser integrados, os excluídos são resíduos, ‘sobrantes’. Essa é a cultura do descarte (...). Isso acontece quando, no centro de um sistema econômico, está o deus dinheiro e não o ser humano, a pessoa humana. Sim, no centro de todo sistema social ou econômico, tem que estar a pessoa, imagem de Deus, criada para dar o nome às coisas do universo. Quando a pessoa é deslocada e vem o deus dinheiro, acontece essa inversão de valores” (1º Encontro Mundial de Movimentos Populares - EMMP, 27-29/10/14, Roma, Itália).

E ainda: “Pergunto-me se somos capazes de reconhecer que estas realidades destrutivas correspondem a um sistema que se tornou global. Reconhecemos que este sistema impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social nem na destruição da natureza? Se é assim - insisto - digamo-lo sem medo: queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas. Este sistema é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as Comunidades, não o suportam os Povos.  E nem sequer o suporta a Terra, a Irmã Mãe Terra, como dizia São Francisco” (2º Encontro Mundial de Movimentos Populares - EMMP, 07-09/07/15, Santa Cruz de la Sierra, Bolívia).

Durante o Seminário, num intervalo, os Moradores em Situação de Rua e seus Apoiadores/as, fizeram uma fila com as mãos nos ombros e - parafraseando o canto-refrão “o Povo unido jamais será vencido” -cantaram com toda força “a Rua unida jamais será vencida”. O canto-refrão nos emocionou a todos e todas. É verdade! O Povo, em primeiro lugar, é a “Rua”, “o Povo na Rua e da Rua”!

Esse canto-refrão “a Rua unida jamais será vencida” suscitou em mim - como um forte apelo - o desejo de dar uma sugestão: vamos promover anualmente - com esse canto-refrão como lema - uma grande mobilização no Brasil inteiro (em todos os Estados), coordenada pelo Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), com o apoio e a solidariedade dos Movimentos Sociais Populares, sobretudo dos Movimentos pelo Direito à Moradia - que defendem as Ocupações - como  o Movimento de Trabalhadores/as por Direitos - MTD, Movimento de Trabalhadores/as Sem Teto - MTST, Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas - MLB.

Vocês - Irmãos e Irmãs, Moradores e Moradoras em Situação de Rua que, apesar de todas as adversidades, ainda acreditam na Vida e lutam para mudar a realidade e exigir seus Direitos - são para nós verdadeiros heróis e heroínas. Estamos com vocês! Unidos e unidas na luta! A vitória é nossa!










Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 12 de julho de 2022


sábado, 2 de julho de 2022

A questão da “ideologia” na Igreja (Parte 2)

 

Vimos (na Parte 1) que na história - no tempo e no espaço - todo posicionamento prático e/ou teórico do ser humano é ideológico. O que realmente importa é que seja um posicionamento ideológico que liberte e promova a vida.

Como nos lembra Leonardo Boff, ”todo ponto de vista é a vista de um ponto”. Ora, o ponto de vista da Igreja e de todo cristão ou cristã deve ser - ou deveria ser -  a vista do ponto de Jesus de Nazaré, que é o ponto dos Pobres.

Portanto, para a Igreja e todos os que somos cristãos ou cristãs, ver do ponto de vista de Jesus de Nazaré - seguindo o seu caminho desde a manjedoura até sua morte na cruz e sua Ressurreição - é fazer a Opção pelos Pobres. Lamentavelmente, à expressão “Opção pelos Pobres”, a Igreja acrescentou (com maior frequência nos Documentos mais recentes) a palavra “preferencial” para contentar aqueles (sobretudo padres e bispos) que não entenderam o que essa Opção significa.

Conheço padres e bispos que - quando convidados para participar de Encontros de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) ou de Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), falam de Comunidades Eclesiais (destacando - sobretudo hoje - a palavra “Missionárias”) ou de Pastoral da Juventude, mas nunca pronunciam (parece que há um bloqueio psicológico) as palavras “de Base” ou “do Meio Popular”: palavras perigosas por serem “ideológicas” (leiam: do lado dos Pobres).

Lembro a essa Igreja (para a qual só é “ideológico” o que está do lado dos Pobres) que uma Comunidade Eclesial é Missionária (Comunidade “em saída”) somente se for “de Base”, ou seja, encarnada na vida do Povo, na vida dos Pobres como fez Jesus de Nazaré, que nasceu na manjedoura de um estábulo e - a partir da manjedoura - anunciou a Boa Notícia do Reino de Deus a todos e todas.

Por outro lado (reparem!), essa mesma Igreja usa - de boca cheia e sem nenhum receio de ser “ideológica” - as palavras “Pastoral do empreendedor” (“empreendedor” não é pobre, portanto, não é ideológico), “Grupo de empresários católicos” (“empresários católicos” não são pobres, portanto, não são ideológicos), “Grupo de advogados católicos” (“advogados católicos” - sobretudo se forem “juízes” ou “desembargadores” - não são pobres, portanto, não são ideológicos), e assim por diante. Para essa Igreja, o “perigo” de conotação ideológica só existe em relação aos Pobres, ou seja, para quem fica do lado dos Pobres.

Por fim, pergunto: qual foi o posicionamento “ideológico” de Jesus de Nazaré? Ele ficou do lado dos poderosos ou do lado dos pobres? A resposta encontra-se no motivo que foi apresentado para justificar a sua “criminalização” pelos “desembargadores” da época, com as “bênçãos” do Sinédrio. “Achamos este homem (Jesus) fazendo subversão entre o nosso povo” (Lc 23,2).

Hoje - lamento isso - no prédio do Tribunal de Justiça de Goiás tem até Capela Católica com Sacrário e capelão: uma prática clara e indiscutivelmente inconstitucional. A razão da Capela deve ser para que os “desembargadores católicos” possam rezar diante do Santíssimo Sacramento e (quem sabe!) “assistir” à Missa do capelão recebendo a comunhão, antes de “criminalizar” trabalhadores e trabalhadoras “sem terra” e “sem teto” - ou seja, o próprio Jesus na pessoa dos pobres que lutam pelos direitos sagrados à terra de trabalho e à terra de moradia - assinando “ordens de despejo” (legais, mas injustas, desumanas, antiéticas e anticristãs) de suas Ocupações. Que descaramento! Quanta hipocrisia!

Os cristãos e cristãs perguntemo-nos: que Igreja queremos ser? A dos fariseus hipócritas ou a de Jesus de Nazaré? Que o Espírito Santo nos ilumine e nos transforme em verdadeiros profetas e profetisas da Boa Notícia do Reino de Deus no mundo de hoje. Assim seja!


                                     https://www.pensador.com/frase/NDE1NzU/



                                 Águas e Profecias: Luzes do Meio Popular gerando Vidas



                                                      CEB ao redor da Palavra, em:   https://pjmp.org/teologia-das-cebs


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 26 de junho de 2022




O artigo foi publicado originalmente em: 
https://portaldascebs.org.br/a-questao-da-ideologia-na-igreja-parte-2/

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Uma advertência: despejo legal é crime ético

 

30 de junho de 2022: acaba o prazo da “suspensão legal” dos despejos urbanos e rurais por causa da pandemia da Covid-19.

“Concedo parcialmente a medida cautelar, a fim de que os direitos assegurados pela Lei nº 14.216/2021, para as áreas urbanas e rurais (sobre a suspensão temporária dos despejos), sigam vigentes até 30 de junho de 2022 (Ministro Luís Roberto Barroso. Brasília, 30 de março de 2022).

O prazo da “suspensão legal” está por terminar, mas a Campanha Nacional “DESPEJO ZERO” continua! Queremos agora - e lutamos por ela - a “suspensão ética” (moral) dos despejos, que não tem prazo determinado, mas é para sempre.

Reafirmo: a terra de loteamentos ou outros terrenos urbanos “largados” para fins de especulação imobiliária e a terra de latifúndios rurais improdutivos ou destinados a monoculturas “envenenadas” para fins de exportação e de lucro, pertence a quem precisa dela para morar e/ou trabalhar. Os direitos de toda pessoa humana à terra, ao teto (moradia) e ao trabalho (os três T) são sagrados e, por isso, prioritários.

Denuncio que todo “despejo legal” de moradores e moradoras “sem-teto” de suas Ocupações é “crime ético”. O juiz e o sistema judiciário responsáveis por ele são criminosos.

Com muito respeito e admiração, reconheço que - nesta sociedade tão desigual e tão injusta na qual vivemos - os moradores e moradoras das Ocupações são verdadeiros heróis e heroínas.

Peço, pois, a esses irmãos e irmãs das Ocupações que continuem unidos/as e organizados/as. A terra é deles/as e nós - companheiros e companheiras de caminhada e de luta - estamos com eles/as. Podem contar com o nosso total apoio e a nossa irrestrita solidariedade.

Como irmão, peço ainda aos Movimentos Sociais Populares (Movimento de Trabalhadoras/es por Direitos - MTD, Movimento de Trabalhadoras/es Sem Teto - MTST, Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas - MLB, Movimento Nacional da População em situação de Rua - MNPR) e às Comunidades Cristas, sobretudo CEBs que - respeitando e valorizando as diferenças - estejam sempre unidos/as no apoio aos irmãos e irmãs das Ocupações, servindo com amor. A união faz a força!

Por fim, lembro que todos e todas nós - como cidadãos e cidadãs - temos a obrigação de “desobedecer” a qualquer mandato judicial que “legalize” e “institucionalize” o “crime ético” do despejo.

“Vivemos em cidades que constroem torres, centros comerciais, fazem negócios imobiliários..., mas abandonam uma parte de si nas margens, nas periferias. Como dói escutar que as Ocupações pobres são marginalizadas ou, pior, quer-se erradicá-las! São cruéis as imagens dos despejos forçados, dos tratores derrubando barracos, imagens tão parecidas às da guerra. E isso se vê hoje”.

“Não se entende que o amor pelos pobres está no centro do Evangelho. Terra, Teto (Moradia) e Trabalho (os 3 T) - isso pelo qual vocês lutam - são direitos sagrados. Reivindicar isso não é nada raro. É o Ensino Social da Igreja” (Discurso do Papa Francisco. 1º Encontro Mundial dos Movimentos Populares. 27-29 /10/14, Roma).

Como ser humano e como cristão, termino com uma ADVERTÊNCIA: juízes não cometam o “crime ético” do “despejo legal” e não sejam “criminosos”! Lembrem: Deus é justo e a justiça de Deus não falha!






Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 21 de junho de 2022


terça-feira, 24 de maio de 2022

A questão da “ideologia” na Igreja (Parte 1)

 

Na Igreja (*) - e também na sociedade - toda vez que pessoas, grupos e Movimentos Sociais Populares assumem, clara e publicamente, um posicionamento - prático e/ou teórico - contra a “ordem estabelecida” (ou, melhor, a “desordem estabelecida”), a acusação é sempre a mesma: é ideológico! Ora, por que ser contra a “ordem estabelecida” é ideológico e ser a favor não é ideológico?

Na condição do ser humano - no mundo e com o mundo - não há nenhum posicionamento que não seja ideológico. O ser humano é um ser histórico, situado (no espaço) e datado (no tempo): um ser de busca permanente, um “vir-a-ser”, um ser em construção.

Por isso, toda práxis humana (unidade de prática teórica e teoria prática) é ideológica, ou seja, expressa um posicionamento ideológico. A práxis humana como prática é a “ação” consciente (a ênfase é colocada na “ação” ou militância que - por ser consciente - integra também o conhecimento). A práxis humana como teoria é o “conhecimento” atuante ou militante (a ênfase é colocada no “conhecimento” que - por ser atuante ou militante - integra também a ação).

A ação e o conhecimento (comum, científico, filosófico e/ou teológico) do ser humano acontecem sempre dentro de um contexto histórico concreto, mesmo que sua influência - positiva ou negativa - possa ir além do contexto que os produziu. Isso é válido também quando o objeto da ação e do conhecimento são valores que - à luz da fé - consideramos meta-históricos (absolutos, eternos). A nossa maneira de praticar (viver) e conhecer esses valores é histórica (situada e datada) e, portanto, ideológica.

A ciência (conhecimento científico) - da qual hoje se fala tanto, devido ao grande desenvolvimento que teve nestes últimos tempos - não é neutra. A chamada “neutralidade científica” não existe. A “não-neutralidade” diz respeito não somente ao uso que se faz da ciência - não-neutralidade externa, mas também à maneira como se faz ciência - não-neutralidade interna. A práxis humana do conhecer cientificamente não deve ser confundida com os produtos finais dessa práxis: a televisão, o computador e outros, que são meros objetos.

O que dissemos sobre a não-neutralidade do conhecimento científico vale também - consideradas as caraterísticas de cada tipo de conhecimento -para o conhecimento comum, o conhecimento filosófico e o conhecimento teológico.

Não podemos também confundir “conhecimento comum” com “conhecimento popular”. “Conhecimento comum” é o conhecimento espontâneo, imediato: a maioria dos nossos conhecimentos. “Conhecimento popular” é a ótica do conhecimento: é conhecer desde os pobres, a partir dos pobres. Esse último pode ser comum, científico, filosófico e teológico.

Portanto - diante do exposto - a questão fundamental que se coloca não é saber se um determinado posicionamento - prático e/ou teórico - é ou não é ideológico, mas saber qual é a ideologia que esse posicionamento expressa. É uma ideologia que oprime e leva à morte ou é uma ideologia que liberta e promove a vida do ser humano e do planeta Terra Nossa Casa Comum?

Entre outros possíveis, denuncio um fato que, de alguns anos para cá, está acontecendo na Igreja Crista Católica e que - por ser a minha Igreja - me deixa profundamente indignado e me leva a lutar com todas as forças contra essa maneira de agir.

Vejam! A II Conferência do Episcopado Latino-americano e Caribenho de Medellín (1968) - que aplica os ensinamentos do Concílio Vaticano II à realidade da América Latina e do Caribe - em seus documentos usa com frequência e naturalidade as palavras “Pastoral Popular”, “Comunidade Cristã de Base ou - simplesmente - “Comunidade de Base” (sem a palavra “Cristã” ou “Eclesial”, que - por tratar da “Igreja” - está subentendida).

Ora, no processo de “restauração eclesial” e, sobretudo, “eclesiástica” desses últimos anos (apesar do testemunho evangélico e inovador do nosso irmão o Papa Francisco), a Igreja “Institucional” da América Latina e do Caribe - em suas diversas instâncias - não usa mais as palavras “Popular” e “de Base” por serem - dizem - palavras “ideológicas” ou, com “conotação ideológica” (leiam: do lado dos Pobres!

Que absurdo! Não é uma traição do Evangelho de Jesus de Nazaré? Meditemos! (Continua na Parte 2)

(*) Neste artigo - em duas partes - retomo, com emendas e reformulações, as reflexões teológico-pastorais do artigo “É ideológico!” de março de 2020, por entender que a questão da “ideologia” é fundamental para a visão da Igreja na perspectiva libertadora (Eclesiologia da Libertação) e é um dos seus elementos constitutivos.


A principal força das CEBs: a Fé em Jesus Cristo Libertador


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 22 de maio de 2022



sexta-feira, 29 de abril de 2022

A questão da “radicalidade” na Igreja

 

Todo cristão ou cristã é chamado ou chamada a ser radicalmente ser humano. Ora, enquanto estamos no mundo - no tempo e no espaço - podemos crescer sempre na vivência do humano. Nunca serenos humanos ou humanas demais, nunca exageraremos em ser humanos ou humanas.

"Todo aquele que segue Cristo, o Homem perfeito, torna-se ele também mais ser humano" (GS 41). "A fé esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do ser humano. E, por isso, orienta a mente para soluções plenamente humanas" (GS 11).

No seguimento de Jesus de Nazaré, a radicalidade humana pode ser vivida de muitas maneiras, conforme os carismas (dons) e ministérios (serviços) de cada um e de cada uma.

Em nossa Igreja Católica, um dos caminhos para viver essa radicalidade é a chamada “Vida Religiosa Consagrada”: “Religiosos” - que em sua maioria são também Ministros ordenados - e “Religiosas” das diversas Ordens, Congregações e Institutos.  

Permito-me, agora, fazer alguns questionamentos a respeito dessa terminologia comumente aceita.

Os que, “Religiosos” e “Religiosas”, pertencemos à chamada “Vida Religiosa Consagrada”, não temos o direito de nos apropriar dessas palavras.

Todo ser humano que pratica uma religião é “religioso ou religiosa”, ou seja, tem “vida religiosa”. E ainda: todo cristão ou cristã, batizado ou batizada é “consagrado” ou “consagrada”, ou seja, tem “vida religiosa consagrada”. Aliás, nós ensinamos que o Batismo é a consagração fundamental, que nos torna seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré, continuadores e continuadoras de sua missão no mundo.

Lamentavelmente (como já disse em outras ocasiões), no decorrer da história, criamos uma Igreja com estrutura social de três classes: Hierarquia, Vida Religiosa Consagrada e Laicato.

Precisamos voltar ao Evangelho e acabar com as classes para sermos uma Igreja somente de irmãos e irmãs, como eram as primeiras Comunidades cristãs.

Com isso, não quero dizer que devemos uniformizar tudo. Ao contrário! É justamente numa Igreja de irmãos e irmãs que temos condições de apreciar o valor e a beleza da imensa variedade e diversidade dos carismas (dons) e dos ministérios (serviços), que o Espírito Santo (o Deus Amor) suscita na Igreja. Um dos carismas - que devemos valorizar -  é justamente a Vida Cristã de Particular Consagração”, em resposta a um chamado pessoal de Deus (o novo nome que sugiro para a chamada “Vida Religiosa Consagrada”). Esse “carisma” é um caminho - entre outros - para viver a radicalidade da consagração batismal: “projeto de vida cristã radical”. Ele se desdobra em dois carismas: um comum à toda “Vida Cristã de Particular Consagração” e outro próprio de cada Ordem, Congregação ou Instituto.

Na Igreja, o “projeto de vida cristã radical” pode ser assumido publicamente ou em caráter particular, mas sempre na comunhão eclesial.

Acredito que - se formos uma Igreja de irmãos e irmãs realmente comprometida com o Projeto de Jesus no mundo de hoje, que é o seu Reino, Deus suscitará novas formas de “Vida Cristã de Particular Consagração” e muitas pessoas - das mais diversas formas - farão a experiência do chamado de Deus para viverem o “projeto de vida cristã radical”, por amor aos irmãos e às irmãs a partir dos Pobres.

Considerando a nossa realidade sócio-econômico-político-ecológico-cultural-religiosa, Deus poderá, por exemplo, chamar trabalhadores e trabalhadoras para seguirem mais de perto Jesus de Nazaré - que também foi trabalhador (carpinteiro) - assumindo o “projeto de vida cristã radical” a serviço dos companheiros e companheiras:  nos Movimentos Sociais Populares, nos Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras, nos Partidos Políticos Populares e nos Comitês ou Fóruns de Defesa dos Direitos Humanos e da Irmã Mãe Terra Nossa Casa Comum.

Esses Trabalhadores e Trabalhadoras continuarão vivendo com seus familiares ou - se for por opção deles e delas - em pequenos grupos de base (grupos de vivência). Pessoalmente peço a Deus que nos dê essa graça. Na Igreja e na sociedade atual precisamos muito disso.

Por fim, se ser cristão ou cristã é ser radicalmente ser humano, ser radicalmente cristão ou cristã (vivendo o “projeto de vida cristã radical”) é ser radicalmente ser humano em dobro, com tudo o que isso significa.

“Deus é Amor. Todo aquele/aquela que permanece no Amor permanece em Deus, e Deus nele/nela” (1 Jo 4,16).

Estamos no tempo pascal. Que a Páscoa seja para nós cristãos e cristãs uma realidade de todo dia: Passagem para uma vida de amor sempre mais radical. São estes os meus votos a todos os irmãos e irmãs de caminhada.


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Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 24 de abril de 2022



domingo, 3 de abril de 2022

Pessoas humanas não se despejam

 


“Por um Brasil sem despejos” Como foi amplamente divulgado nas redes sociais, a luta contra os despejos no Brasil continua!

“A suspensão dos despejos, prorrogada pela última vez em dezembro e com validade até 31 de março, se deu no âmbito da ADPF 828 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), impetrada pelo PSOL, o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e outras entidades da sociedade civil”.

Na noite de terça-feira passada, 29 de março, “representantes de Movimentos Sociais Populares, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e 13 parlamentares do PSOL, PCdoB e PT fizeram uma audiência com o ministro Barroso em Brasília.  Foram apresentados, com base em dados da Campanha Despejo Zero e da Abrasco sobre a vigência da pandemia, a urgência de que a liminar seja prorrogada, bem como o impacto humanitário caso aconteçam os despejos em massa no país”.  

Ante o exposto, o Ministro Luís Roberto Barroso tomou a seguinte decisão: “Defiro parcialmente o pedido de medida cautelar incidental, nos seguintes termos:

   1. Mantenho a extensão, para as áreas rurais, da suspensão temporária de desocupações e despejos, de acordo com os critérios previstos na Lei nº 14.216/2021, até o prazo de 30 de junho de 2022;

   2. Faço apelo ao legislador, a fim de que delibere sobre meios que possam minimizar os impactos habitacionais e humanitários eventualmente decorrentes de reintegrações de posse após esgotado o prazo de prorrogação concedido;

    3. Concedo parcialmente a medida cautelar, a fim de que os direitos assegurados pela Lei nº 14.216/2021, para as áreas urbanas e rurais, sigam vigentes até 30 de junho de 2022. Brasília, 30 de março de 2022”.

Caso a liminar - a ADPF 828 - não tivesse sido prorrogada, mais de 132 mil famílias, ou seja, cerca de meio milhão de pessoas poderiam ser “despejadas” à força de suas moradias, no campo e na cidade.

A prorrogação da suspensão dos despejos até 30 de junho de 2022 é uma vitória, embora pequena,

  • das moradoras e moradores das Ocupações com suas lideranças, verdadeiras heroínas e heróis, que lutam pelo direito sagrado à moradia digna;
  • dos Movimentos Sociais Populares, que com sua presença militante apoiam e acompanham a luta por moradia digna: o Movimento de Trabalhadoras/es por Direitos (MTD), o Movimento de Trabalhadoras/es Sem Teto (MTST), o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), o Movimento Nacional da População em situação de Rua (MNPR) e outros;
  • das Comunidades Cristas, sobretudo CEBs, que também apoiam e acompanham essa mesma luta.

Realmente está mais do que provado que o deus do capitalismo neoliberal é obezerro de ouro” de que fala o livro do Êxodo. “Fizeram para si um bezerro de ouro e o adoraram” (Ex. 32,8).

Como ser humano e como cristão, reafirmo: do ponto de vista da Ética Social humana e, sobretudo, cristã (radicalmente humana), todo despejo é antiético e injusto. As pessoas humanas não se despejam e não podem ser tratadas com brutalidade e crueldade. Elas devem ser respeitadas em sua dignidade humana. A própria palavra “despejo” é ofensiva.

Volto a insistir: só existem dois casos nos quais as pessoas podem ser removidas com dignidade de uma Ocupação: se o terreno for de utilidade pública ou de preservação ambiental e - mesmo nesses dois casos - somente depois que estiverem prontas outras moradias dignas para serem ocupadas.

O papa Francisco nos lembra que os três T (Terra, Teto e Trabalho) são direitos sagrados, que estão acima do direito de propriedade.

Portanto, do ponto de vista ético, terras rurais ou urbanas sem função social ou destinadas à especulação imobiliária, pertencem a quem precisa delas para morar e trabalhar. Toda lei que vai contra a ética, é injusta e deve ser desobedecida. É uma questão de “objeção de consciência”!

Em defesa da Vida no Campo e na Cidade! Campanha Nacional DESPEJO ZERO!





Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 01 de abril de 2022


sexta-feira, 1 de abril de 2022

A questão da “sinodalidade” na Igreja (2ª parte)

 

Motivados pelo novo Sínodo (outubro de 2021 - outubro 2023) com o tema "Por uma Igreja Sinodal: comunhão, participação e missão", na 1ª parte deste artigo refletimos sobre o que é “sinodalidade”.

Na 2ª parte, vamos refletir sobre os pilares da sinodalidade: comunhão, participação e missão.

“Deve-se revalorizar entre nós a imagem cristã dos seres humanos”, destacando a liberdade como valor fundamental. “Esta liberdade é a um tempo dom e tarefa. Ela não se alcança verdadeiramente sem a libertação integral e é, em sentido válido, meta do ser humano segundo nossa fé, uma vez que ‘para a liberdade é que Cristo nos libertou’ (Gl 5,1) a fim de que tenhamos vida e a tenhamos em abundância, como ‘filhos/as de Deus e co-herdeiros/as do próprio Jesus Cristo’ (Rm 8,17)” (Documento de Puebla - DP 321).

Ora, “a liberdade implica sempre aquela capacidade que todos temos, em princípio, de dispor de nós mesmos, a fim de irmos construindo uma comunhão e uma participação que hão de se plasmar em realidades definitivas” (DP 322). Isso acontece em três planos inseparáveis: a relação do ser humano com o mundo como cuidador (jardineiro), com as pessoas como irmão/ã e com Deus como filho/a (cf. ib.).

Portanto, é através da unidade indissolúvel desses três planos que “aparecem melhor as exigências de comunhão e participação que brotam desta dignidade. Se no plano transcendente se realiza em plenitude nossa liberdade pela aceitação filial e fiel de Deus, entramos em comunhão de amor com o mistério divino e participamos de sua própria vida. O contrário é romper com o amor filial, repelir e desprezar o Pai. São duas possibilidades extremas  que a revelação cristã chama graça e pecado” (DP 326): graça individual e graça social ou estrutural; pecado individual e pecado social ou estrutural.

“O amor de Deus que nos dignifica radicalmente se faz necessariamente comunhão de amor com os outros seres humanos e participação fraterna; para nós, hoje em dia, deve tornar-se sobretudo obra de justiça para com os oprimidos, esforço de libertação para quem mais precisa. De fato, ‘ninguém pode amar a Deus a quem não vê, se não ama o irmão a quem vê’ (1 Jo 4,20). Todavia a comunhão e a participação verdadeiras só podem existir nesta vida projetadas no plano bem concreto das realidades temporais” (DP 327).

Como Igreja somos chamados a continuar a missão de Jesus de Nazaré no mundo de hoje. “A missão evangelizadora é de todo o Povo de Deus. Esta é sua vocação primordial, ‘sua identidade mais profunda’ (Evangelii Nuntiandi - EN 14). É a sua felicidade. O Povo de Deus com todos os seus membros, instituições e planos existe para evangelizar. O dinamismo do Espírito de Pentecostes anima-o e envia-o a todos os povos. Nossas Igrejas particulares hão de escutar, com renovado entusiasmo, o mandato do Senhor: ‘Ide, pois, e fazei discípulos meus todos os povos’ (Mt 28,19)” (DP 348). Precisamos nos tornar cada vez mais uma “Igreja em saída”.

A Opção pelos Pobres, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a Teologia da Libertação são as três marcas que constituem a identidade do modelo de Igreja que surgiu no contexto da II Conferência de Medellín.

A Opção pelos Pobres (Empobrecidos, Marginalizados, Oprimidos, Excluídos e Descartados) indica o caminho que devemos seguir para sermos a Igreja de Jesus de Nazaré: uma Igreja a partir da “manjedoura” e de tudo o que ela significa hoje.

As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) são Comunidades “encarnadas” na vida do povo, são um jeito novo e, ao mesmo tempo, antigo de ser Igreja. São “o primeiro e fundamental núcleo eclesial” ou “a célula inicial da estrutura eclesial” (Medellín, XV, 10), que transformam a Paróquia em “um conjunto pastoral unificador das Comunidades de Base” (ib. 13).

A Teologia da Libertação é a leitura - análise e interpretação - à luz da Palavra, que as Comunidades cristãs e seus teólogos, fazem da Práxis (Prática e Teoria) de Libertação.

O método (caminho) utilizado é “ver, julgar, agir” (analisar, interpretar e libertar) e celebrar (cf. Clodovis Boff. A originalidade histórica de Medellín: em http://servicioskoinonia.org/relat/203p.htm 1/8).

E nós? Qual é o nosso modelo de Igreja? Que Igreja queremos ser? A comunhão e a participação são uma realidade concreta ou são só palavras? Em nossa missão, assumimos o lado dos pobres? Somos de verdade seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré?



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Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 23 de março de 2022



O artigo foi publicado originalmente em:
https://portaldascebs.org.br/a-questao-da-sinodalidade-na-igreja-parte-2/


A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos