domingo, 29 de abril de 2018

1º de Maio: dia de resistência e luta

O 1º de Maio - como Dia Internacional do Trabalhador e da Trabalhadora - “surgiu em 1886, quando trabalhadores ame­ricanos da cidade de Chicago, no dia 1º de Maio, saíram às ruas para lutar por melhores salários, redu­ção da jornada de trabalho (de 13 para 8h diárias) e melhores condi­ções de trabalho. Os patrões, a eli­te política e a polícia reprimiram o movimento prendendo, ferindo e assassinando alguns trabalhadores”.
O movimento espalhou-se rapidamente. No ano seguinte, em 1887, “esse dia foi mar­cado por protestos e lutas em mui­tos países; em 1889, entidades de trabalhadores de diversas par­tes do mundo, reunidos em Paris (França), decidiram transformar o 1º de Maio no dia de homenagem aos trabalhadores de Chicago e de protesto e conscientização da luta dos trabalhadores por direitos so­ciais e trabalhistas, pelo direito à sua livre organização e por liber­dades democráticas”.
No Brasil, “o 1º de Maio passou a ser comemorado a partir de 1917 quando trabalhadores resolveram parar o trabalho para reivindicar direitos. Em 1924, por meio da pressão dos trabalhadores, o pre­sidente Artur Bernardes decretou feriado oficial”.
O que significa comemorar o 1º de Maio hoje? “Em todo o mundo, as contas da crise do capitalismo es­tão sendo jogadas nas costas dos trabalhadores: menos direitos tra­balhistas, salários e serviços pú­blicos; e mais jornada de trabalho, subemprego e desemprego”.
No Brasil, “desde o Golpe de Estado e a posse de Temer, realizados pelos patrões, políticos conservadores e imprensa, aumentaram os ataques aos direitos dos trabalhadores. Mais do que nunca é preciso que o 1º de Maio venha a ser um momento de resistência: forta­lecer os movimentos e lutas dos trabalhadores; construir a unidade dos trabalhadores do campo e da cidade; revogar a Reforma Tra­balhista e a Lei de Terceirização; exigir saúde, educação e transpor­te público de qualidade; e defen­der as liberdades democráticas!” (Fórum Goiano Contra as Reformas da Previdência e Trabalhista. Jornal da Classe Trabalhadora - Ano 2 - Número 4 - Abril de 2018)
Temos hoje no Brasil dois Projetos Sociais (sócio-econômico-político-ecológico-culturais). De um lado, o Projeto Capitalista Neoliberal: o projeto dominante, que - por ser um projeto estruturalmente iníquo e perverso - exclui, descarta e mata. De outro lado, o Projeto Popular: o projeto alternativo, que é necessariamente inclusivo, faz acontecer a sociedade do bem viver e é um projeto em construção.
O 1º de Maio - dia de resistência e luta - deve ser uma manifestação pública, que mostra a unidade dos trabalhadores e trabalhadoras na construção do Projeto Popular. Para fortalecer essa unidade, precisamos criar uma Frente Ampla Nacional Popular (uma Frente de Frentes), que saiba valorizar as diferenças, que seja capaz de incorporar (fazer suas) propostas vindas das diversas Frentes (Frente Brasil Popular, Frente Povo sem Medo, Frente de Esquerda e outras) e que consiga - através do diálogo - definir objetivos comuns.
Hoje, as propostas, que surgiram - e continuam surgindo - nos encontros das diversas Frentes Populares e que contribuíram - e continuam contribuindo - para dar passos concretos na construção do Projeto Popular, deveriam ser assumidas pela Frente Ampla Nacional Popular como suas bandeiras de luta. Entre elas, destaco duas.
Primeira: a necessidade de retomar, no Brasil inteiro, o Trabalho de Base nas Comunidades (sobretudo das periferias das grandes cidades e do meio rural), nos Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras, nos Partidos Políticos Populares e nos Movimentos Sociais Populares, utilizando a metodologia da Educação Popular Libertadora (Paulo Freire). O Trabalho de Base - mesmo que em determinadas situações conjunturais possa ser intensificado em forma de mutirões - deve ser continuo e permanente para que os/as militantes façam a experiência da troca de saberes e da vida compartilhada. Os militantes se formam na práxis: prática e teoria.
Segunda: a realização - em etapas locais, municipais, estaduais e nacional – do Congresso do Povo (proposta que surgiu na 2ª Conferência Nacional da Frente Brasil Popular - 9 e 10 de dezembro/17).
O Congresso do Povo - como processo - é um espaço para que o povo, livre e publicamente, possa se manifestar e dizer, alto e bom som, o que pensa e o que quer, em todas as situações sociais (sócio-econômico-político-ecológico-culturais), como - por exemplo - em tempo de eleições. O Congresso do Povo surge como uma necessidade do Trabalho de Base e, ao mesmo tempo, o fortalece.
            O Trabalho de Base e o Congresso do Povo completam-se mutuamente e são - sobretudo hoje - o caminho para fazer a experiência que outro mundo é possível, para lutar contra toda injustiça e violação dos Direitos Humanos do sistema vigente e para construir, com o povo e para o povo, o Projeto Popular.
            Os cristãos e cristãs, que acreditamos no Projeto de Jesus - o Reino de Deus na história - em nome de nossa cidadania e de nossa Fé, deveríamos estar sempre na linha de frente de todas as lutas por um mundo novo.
            Para aqueles e aquelas que acham que participar dos Movimentos Populares não tem nada a ver com a Fé cristã, lembro o convite do Papa Francisco.
“Soube que são muitos na Igreja aqueles que se sentem mais próximos dos Movimentos Populares. Muito me alegro por isso! Ver a Igreja com as portas abertas a todos vocês, que se envolve, acompanha e consegue sistematizar em cada Diocese, em cada Comissão ‘Justiça e Paz’, uma colaboração real, permanente e comprometida com os Movimentos Populares. Convido-vos a todos, bispos, sacerdotes e leigos, juntamente com as organizações sociais das periferias urbanas e rurais, a aprofundar este encontro” (Discurso do Papa Francisco aos participantes do 2º Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Santa Cruz de la Sierra - Bolívia, 09/07/15).



Venham todos e todas participar do 1º de Maio unificado, da resistência e da luta! Praça Universitária (Goiânia - GO), a partir das 14 horas! Conheça a programação do 1º de Maio em sua cidade!



Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 25 de abril de 2018




sexta-feira, 20 de abril de 2018

Medellín em gotas: 6ª- Vocação original da América Latina


A Introdução às Conclusões de Medellín - em sua última parte - leva-nos a tomar consciência da “vocação original” da América Latina e do Caribe.
Afirma: “Nesta transformação (que é libertação, que é salvação), por trás da qual se anuncia o desejo de passar do conjunto de condições menos humanas para a totalidade de condições plenamente humanas e de integrar toda a escala de valores temporais na visão global da fé cristã, tomamos consciência da ‘vocação original’ da América Latina: ‘vocação de unir em uma síntese nova e genial o antigo e o moderno, o espiritual e o temporal, o que outros nos legaram e nossa própria originalidade’”.
Quanta clareza e quanta profundidade encontramos nesta afirmação! E hoje? Será que nós - como Igreja - temos realmente consciência desta “vocação original” e a vivemos?
Por experiência própria, os bispos constatam: “Nesta Assembleia do Episcopado Latino-americano renovou-se o mistério de Pentecostes. Em torno de Maria como Mãe da Igreja, que com seu patrocínio assistiu a este continente desde sua primeira evangelização, imploramos as luzes do Espírito Santo e perseverando na oração, alimentamo-nos do pão da Palavra e da Eucaristia. Esta Palavra foi intensamente meditada”.
Tendo presente a realidade em que vivemos atualmente, podemos dizer que em nossas Assembleias e em nossos Encontros de Igreja renova-se - na presença de Maria, nossa Mãe - o mistério de Pentecostes?
Reparem o que dizem os participantes da Assembleia: “Nossa reflexão orientou-se para a busca de formas de presença mais intensa e renovada da Igreja na atual transformação da América Latina”. Hoje, temos essa preocupação? Em nossa ação evangelizadora, buscamos “formas de presença mais intensa e renovada na atual transformação da América Latina”? Não somos, muitas vezes, uma Igreja acomodada e alienada, que está por fora (e faz questão de estar por fora) dos desafios que a atual transformação da América Latina e do Caribe nos apresenta?
Os bispos apontam pistas concretas - que continuam plenamente atuais - para um plano de ação evangelizadora. Afirmam: “Três grandes setores, sobre os quais recai nossa solicitude pastoral, foram abordados em sua relação com o processo de transformação do continente. Em primeiro lugar, o setor da promoção do ser humano e dos povos do continente para os valores da justiça, da paz, da educação e do amor conjugal. Em seguida, nossa reflexão se dirigiu para os povos deste continente e suas lideranças (no lugar da palavra “elites” - que se presta a interpretações ambíguas - uso a palavra “lideranças”), que por estarem num processo de profunda mutação de suas condições de vida e de seus valores, requerem uma adaptada evangelização e educação na fé, através da catequese e da Liturgia”.  
Reparem o que os bispos, em sua solicitude pastoral, colocam em primeiro lugar: “o setor da promoção do ser humano e dos povos do continente para os valores da justiça, da paz, da educação e do amor conjugal”. Fazemos o mesmo hoje?
Finalmente - dizem os bispos - “abordamos os problemas relativos aos membros da Igreja. E preciso intensificar sua unidade e ação pastoral através de estruturas visíveis, também adaptadas às novas condições do continente”. E terminam declarando: “As conclusões seguintes são o fruto do trabalho realizado nesta Conferência”.
Em síntese, até o presente - dentro do tema geral “Medellín em gotas” - nas primeiras três gotas destacamos, com algumas reflexões: o “Contexto histórico”, o “Método adotado” e o “Modelo eclesiológico”, que situam social e teologicamente a II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho; nas outras três gotas, o “Centro da atenção da Igreja”, o “Verdadeiro desenvolvimento” e a “Vocação original da América Latina” (incluindo também o Caribe), que são os pontos principais da Introdução aos documentos.
A partir de agora, nas próximas gotas (que, se Deus quiser, serão muitas) destacaremos, sempre com algumas reflexões, os pontos principais (ideias-chave) - que continuam atuais - dos 16 documentos da Conferência: Justiça, Paz, Família e Demografia, Educação, Juventude, Pastoral das massas, Pastoral das lideranças, Catequese, Liturgia, Movimentos leigos, Sacerdotes, Religiosos/as, Formação do Clero, Pobreza da Igreja, Colegialidade, Meios de comunicação social.








Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 18 de abril de 2018
 


segunda-feira, 16 de abril de 2018

Medellín em gotas: 5ª- Verdadeiro desenvolvimento

A Introdução às Conclusões de Medellín afirma ainda: “O fato de a
transformação a que assiste nosso continente atingir com seu impacto todos os níveis
da existência, apresenta-se como um signo e uma exigência”.
E continua: “Nós, cristãos, não podemos deixar de pressentir a presença de
Deus, que quer salvar o ser humano inteiro, alma e corpo. No dia definitivo da
salvação Deus ressuscitará também nossos corpos, por cuja redenção geme agora
em nós o Espírito com gemidos indescritíveis. Deus ressuscitou a Cristo e, por
conseguinte, todos os que creem nele. Através de Cristo, ele está ativamente presente
em nossa história e antecipa seu gesto escatológico não somente no desejo
impaciente do ser humano para conseguir sua total redenção, mas também naquelas
conquistas que, como sinais indicadores, com voz cada vez mais poderosa, do futuro,
vai fazendo o ser humano através de uma atividade realizada no amor”.
Fazendo a memória do passado, lembra-nos: “Assim, como outrora Israel, o
antigo Povo, sentia a presença salvífica de Deus quando ele o libertava da opressão
do Egito, quando o fazia atravessar o mar e o conduzia à conquista da terra prometida,
assim também nós: novo Povo de Deus não podemos deixar de sentir seu passo que
salva, quando se diz o ‘verdadeiro desenvolvimento, que é, para cada um e para
todos, a passagem de condições de vida menos humanas para condições de vida
mais humanas’”.
A Introdução enumera, pois, essas condições. Menos humanas: “as carências
materiais dos que são privados do mínimo vital e as carências morais dos que são
mutilados pelo egoísmo; as estruturas opressoras que provenham dos abusos da
posse do poder, das explorações dos trabalhadores ou da injustiça das transações”.
Mais humanas: “a passagem da miséria para a posse do necessário, a vitória
sobre as calamidades sociais, a ampliação dos conhecimentos e a aquisição da
cultura; o aumento na consideração da dignidade dos demais, a orientação para o
espírito de pobreza, a cooperação no bem comum e a vontade de paz; o
reconhecimento, por parte do ser humano, dos valores supremos e de Deus, que
deles é a fonte e o fim; e em especial, a Fé, dom de Deus acolhido pela boa vontade
dos seres humanos e a unidade na caridade de Cristo, que nos chama a todos a
participar como filhos na vida de Deus vivo, Pai de todos os seres humanos”.
Reparem a profundidade e atualidade das reflexões: as conquistas que “o ser
humano vai fazendo, através de uma atividade realizada no amor”, são “sinais
indicadores” de salvação, que antecipam o “gesto escatológico” de Cristo. E também:
como outrora o antigo Povo de Deus sentia a “presença salvífica” de Deus na
libertação da opressão do Egito e na conquista da terra prometida, assim também nós,
novo Povo de Deus, não podemos deixar de sentir “seu passo que salva”, quando se
diz o “verdadeiro desenvolvimento”, que é, para cada um e para todos, a passagem (=
páscoa) de condições de vida menos humanas para condições de vida mais
humanas”.
A visão de salvação de Medellín supera todo tipo de dualismo e abrange o ser
humano no mundo, na totalidade de suas dimensões e relações: com o mundo (a
criação), com os outros (os semelhantes) e com o Outro absoluto (Deus). Segundo
essa visão, a salvação acontece no processo histórico de libertação - que é um
processo permanente - de tudo o que impede a vida. A salvação é, pois, a realização,
dentro do plano de Deus, do ser humano em sua história pessoal, social e cósmica,
até à plenitude na meta-história. Nisso consiste o sentido da vida do ser humano e
sua felicidade.
Diz o Concílio Vaticano II: “Aprouve a Deus salvar e santificar os seres
humanos, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-
os em Povo que o conhecesse na verdade e o servisse santamente” (Sobre a Igreja -
LG, 9).
Por sua visão de salvação como libertação que acontece e se faz história,
Medellín tornou-se a principal fonte inspiradora da Teologia da Libertação. No mundo,
não existem duas histórias: a história humana e a história da salvação. A história
humana é a história da salvação.
Qual é a visão de salvação (visão teológica mesmo) que nós - como Igreja -
temos hoje? Será que é a de Medellín? Que ação evangelizadora e que prática
pastoral são necessárias para sentirmos a “presença salvífica” de Deus ou “seu passo
que salva” nas lutas de libertação hoje? Mais uma vez, pensemos!




Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br
Goiânia, 11 de abril de 2018



sábado, 7 de abril de 2018

Medellín em gotas: 4ª- Centro da atenção da Igreja


A Introdução às Conclusões de Medellín - que têm como título “A Igreja na atual transformação da América Latina, à luz do Concílio” - começa dizendo que a Igreja “situou no centro de sua atenção o ser humano deste continente, que vive um momento decisivo de seu processo histórico. Assim sendo, não se acha ‘desviada’, mas ‘voltou-se para’ o ser humano, consciente de que ‘para conhecer Deus é necessário conhecer o ser humano’. Pois Cristo é aquele em quem se manifesta o mistério do ser humano”.
Diz também que a Igreja “procurou compreender este momento histórico do ser humano latino-americano (que inclui também o caribenho) à Luz da Palavra, que é Cristo. Procurou ser iluminada por esta Palavra para tomar consciência mais profunda do serviço que lhe incumbe prestar neste momento”.
E hoje? Será que a Igreja coloca realmente o ser humano deste continente latino-americano no centro de suas atenções? Será que procura compreender o momento histórico que estamos vivendo?
Fazendo a memória de sua história, a Igreja diz ainda: “Esta tomada de consciência do presente volta-se para o passado. Ao examiná-lo, vê com alegria a obra realizada com tanta generosidade: seria este o momento de exprimir o nosso reconhecimento a todos aqueles que traçaram o sulco do Evangelho em nossos países e que estiveram ativa e caritativamente presentes nas diversas raças, especialmente indígenas, do continente, àqueles que vêm continuando a tarefa educadora da Igreja em nossas cidades e nossos campos. Reconhece, também que ‘nem sempre’, ao longo de sua história, foram todos os seus membros, clérigos ou leigos, fiéis ao Espírito de Deus; ‘também em nossos tempos, a Igreja não ignora quanto se distanciam entre si a mensagem que ela profere e a fraqueza humana daqueles aos quais o Evangelho foi confiado’ (GS 43)”.
Com realismo e consciência de sua missão, declara: “Acatando o juízo da história sobre estas luzes e sombras, a Igreja quer assumir inteiramente a responsabilidade histórica que recai sobre ela no presente”. Hoje, a Igreja tem essa preocupação?
A Introdução, com muita objetividade, afirma: “Não basta, certamente, refletir, conseguir mais clarividência e falar. E necessário agir. A hora atual não deixou de ser a hora da palavra, mas já se tornou, com dramática urgência, a hora da ação. Chegou o momento de inventar com imaginação criadora a ação que cabe realizar e que, principalmente, terá que ser levada a cabo com a audácia do Espírito e o equilíbrio de Deus”. Hoje, a Igreja faz isso?
Esta Assembleia - continua a Introdução - foi convidada “a tomar decisões e a estabelecer projetos, somente com a condição de que estivéssemos dispostos a executá-los como compromisso pessoal nosso, mesmo à custa de sacrifícios”.
Por fim, reconhece: “A América Latina está evidentemente sob o signo da transformação e do desenvolvimento. Transformação que, além de produzir-se com uma rapidez extraordinária, atinge e afeta todos os níveis do ser humano, desde o econômico até o religioso. Isto indica estarmos no limiar de uma nova época da história do nosso continente. Época cheia de anelo de emancipação total, de libertação diante de qualquer servidão, de maturação pessoal e de integração coletiva. Percebemos aqui os prenúncios do parto doloroso de urna nova civilização”.
Conclui: “Não podemos deixar de interpretar este gigantesco esforço por uma rápida transformação e desenvolvimento como um evidente signo do Espírito que conduz a história dos seres humanos e dos povos para sua vocação. Não podemos deixar de descobrir nesta vontade, cada dia mais tenaz e apressada de transformação, os vestígios da imagem de Deus no ser humano, como um poderoso dinamismo. Progressivamente, este dinamismo leva-o ao domínio cada vez maior da natureza (que - em sentido bíblico - quer dizer: “ao cuidado cada vez maior para com a natureza”), a uma mais profunda personalização e coesão fraterna (de irmãos e irmãs) e também a um encontro com aquele que ratifica, purifica e dá fundamento aos valores conquistados pelo esforço humano”.
Como são atuais essas reflexões! Pensemos!





Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br
Goiânia, 4 de abril de 2018




quinta-feira, 29 de março de 2018

É nas lutas do Povo que a Páscoa acontece

À luz da Fé cristã, a Páscoa (= passagem) é o acontecimento central da história do ser humano e do mundo. Fazer a memória, ou seja, tornar presente hoje a Páscoa de Jesus de Nazaré - que também é a nossa Páscoa - significa fazer acontecer a passagem de condições de vida desumanas ou menos humanas para condições de vida humanas ou mais humanas.
A vida toda de Jesus é Páscoa. “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Para ser Páscoa, Jesus torna-se, de modo entranhável, próximo e solidário com todos e todas os excluídos e excluídas, descartados e descartadas da sociedade.
Ainda no seio de sua mãe, Jesus é “morador de rua”. “Não havia lugar para eles dentro de casa” (Lc 2,7). Nasce, como “sem-teto”, numa manjedoura. Exerce a profissão de carpinteiro. Em sua vida pública, denuncia - com palavras duras e sem medo - a hipocrisia religiosa dos fariseus e mestres da Lei. Sempre se coloca - como defensor - ao lado dos pobres, dos doentes, dos leprosos, dos sofredores e de todos aqueles e aquelas que não têm voz e não têm vez.
Basta lembrar os sete sinais de Jesus narrados por João, que visam libertar as pessoas de todas as barreiras que impedem a vida e a vida em plenitude: Jesus muda a água em vinho (2,1-12); Jesus cura o filho do funcionário do rei (4,46-54); Jesus faz o paralítico andar (5,1-18); Jesus realiza a partilha dos pães (6,1-15); Jesus caminha sobre as águas (6,16-21; Jesus faz o cego de nascença enxergar (9,1-41); Jesus ressuscita Lázaro (11,1-45).
A Páscoa de Jesus completa-se com sua Morte na cruz e com sua Ressurreição, que é a vitória da vida sobre a morte. “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1). “Não existe amor maior do que dar a vida pelos amigos” (Jo 15,13).
“Deus é Amor. Nisto se tornou visível o Amor de Deus entre nós: Deus enviou seu Filho único a este mundo, para dar-nos a vida por meio dele” (1Jo 4,8-9). O ser humano - por ser imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26) - também é Amor, chamado a “amorizar” (impregnar de amor) o mundo e a sociedade na qual vive.
Fazer acontecer a Páscoa é fazer acontecer o Amor onde a vida do ser humano e do mundo é ameaçada, negada e assassinada, como nas situações existenciais: dos Moradores e Moradoras de Rua; dos Catadores e Catadoras de Lixo; dos Encarcerados e Encarceradas; dos Sem-Terra; dos Sem-Moradia; dos Sem-Trabalho; dos Subempregados e Subempregadas; dos Trabalhadores e Trabalhadoras em condição de trabalho escravo; dos Doentes que não são atendidos pela Saúde Pública; dos Doentes que morrem à míngua por falta desse atendimento; das Crianças e Jovens que não têm uma Educação Pública de qualidade; das Crianças e Jovens que se envolvem com as drogas por falta de Políticas Públicas; das Crianças e Jovens que são assassinados por causa desse envolvimento; das Crianças e Jovens abandonados; dos Idosos e Idosas abandonados; das Mulheres marginalizadas e violentadas; do Povo que não tem uma Segurança Pública humanizada; do Povo que não tem um Transporte Público digno; das Vítimas da Fome e Subnutrição; das Vítimas do Tráfico Humano para a exploração no trabalho; das Vítimas do Tráfico Humano para a exploração sexual; das Vítimas do Tráfico Humano para a extração de órgãos; das Vítimas do Tráfico Humano de Crianças e Jovens; das Vítimas da Exploração da Terra e das Águas; das Vítimas da Violência institucionalizada e de toda Violência; de todos e todas os Excluídos e Excluídas, Descartados e Descartadas da sociedade.
Com sua prática, Jesus - o Caminho, a Verdade e a Vida - mostra-nos claramente que - para sermos Páscoa e fazermos a Páscoa acontecer, ou seja, se tornar história - precisamos ser, de modo entranhável, próximos e próximas, solidários e solidárias para com todas as vítimas da violação dos Direitos Humanos e dos Direitos da Mãe Terra. Vivenciamos a proximidade e a solidariedade participando ativamente das lutas do Povo (Movimentos Populares, Sindicatos autênticos de Trabalhadores e Trabalhadoras, Partidos Políticos Populares, Organizações de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos e Outras) por um Mundo Novo: lutas sociais, econômicas, políticas, ecológicas e culturais.
Os cristãos e cristãs - que, por acreditarmos no projeto de Jesus (“vocês são todos e todas irmãos e irmãs” - Mt 23,8), somos (ou queremos ser) seus seguidores e seguidoras - devemos, em nome de nossa consciência cidadã e de nossa Fé, estar sempre na vanguarda de todas as lutas do Povo por um Mundo Novo, sendo militantes aguerridos e corajosos. Infelizmente - digo-o com muita dor no coração - não é sempre isso o que acontece!
“Amem-se uns aos outros, assim como eu amei vocês” (Jo 15,12). Durante a última ceia, depois de lavar os pés dos discípulos, Jesus perguntou: “Vocês compreenderam o que acabei de fazer? E disse: Eu lhes dei o exemplo, para que vocês façam a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,12.15).
Com humildade e gratidão reconhecemos que, muitas vezes, irmãos e irmãs nossos - que não se dizem cristãos e cristãs - são Páscoa e fazem a Páscoa acontecer - se tornar história - mais do que nós. Em diversas ocasiões, eu pude experienciar isso pessoalmente e dou graças a Deus.
Jesus não quer que o grupo dos seus seguidores e seguidoras se torne seita fechada e monopolize sua missão. Toda e qualquer ação que liberta do mal e promove a vida do ser humano e do mundo, é parte integrante da missão de Jesus. “Quem não está contra nós, está a nosso favor” (Mc 9,40).
À luz da Fé, de toda pessoa humana (cristã ou não) - cuja vida (como a de Jesus) sempre foi Páscoa e fez a Páscoa acontecer, se tornar história - em sua passagem última e definitiva para a “vida além da morte”, podemos dizer: “completou a sua Páscoa”.
"Até agora a criação toda geme e sofre dores de parto. E não somente ela, mas também nós, que possuímos os primeiros frutos do Espírito, gememos no íntimo, esperando a adoção, a libertação para nosso corpo” (Rm 8,22-23). Na linguagem bíblica, a palavra “corpo” indica a pessoa humana inteira, em todas as suas dimensões e relações.
Sejamos sempre, no mundo e na sociedade de hoje, Bons Samaritanos e Boas Samaritanas, Profetas e Profetisas da Vida, do Reino de Deus, que é a Boa Notícia de Jesus!
Com essa reflexões - que retomam e aprofundam as do artigo “Fazer acontecer a Páscoa, hoje”, de abril de 2014 - desejo  a todos e a todas uma Feliz Páscoa 2018.




Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br
Goiânia, 28 de março de 2018

sexta-feira, 23 de março de 2018

Medellín em gotas: 3ª- Modelo eclesiológico


Para refletir sobre o modelo eclesiológico da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho de Medellín (1968) - a 3ª gota - sirvo-me da leitura - análise e interpretação - desse importante acontecimento, feita pelo teólogo Clodovis Boff.
O maior fruto da Assembleia de Medellín “foi ter dado à luz a Igreja latino-americana e caribenha como latino-americana e caribenha. Os Documentos de Medellín representam o ‘ato de fundação’ da Igreja da América Latina e Caribe a partir e em função de seus povos e de suas culturas”. Esses textos “constituem a ‘carta magna’ da Igreja do Continente.
Relendo hoje os documentos de Medellín “fica-se impressionado com o vigor e a audácia de sua expressão, ou, para dizer numa palavra, com seu ‘pathos profético’,
típico dos textos originários e fundantes de uma tradição. Aquilo é linguagem de verdadeiros ‘Pais da Igreja’, Pais da Igreja latino-americana e caribenha como tal (Pe. José Comblin)”.
Até Medellín, “a Igreja no Continente era a reprodução do modelo da Igreja europeia, em seu modo de organização, em sua problemática teológica e em suas propostas pastorais. Era uma ‘Igreja-reflexo’ e não uma ‘Igreja-fonte’ (Pe. Henrique. de Lima Vaz)”.
Portanto, podemos dizer que “a Igreja latino-americana e caribenha, mais que ser Igreja da América Latina e do Caribe, era Igreja europeia na América Latina e no Caribe”, ou seja, “uma Igreja em estado de minoridade, tutelada, privada de sua legítima autonomia institucional”. Em outras palavras, a Igreja do Continente, até Medellín, “era substancialmente a extensão da Igreja europeia na América Latina e no Caribe”.
De fato, “num primeiro momento, a Igreja na América Latina e Caribe foi uma Igreja ibérica, espanhola ou portuguesa que fosse. Era, no sentido cultural do termo, uma Igreja ‘colonial’”.
Os grandes Sínodos realizados na América Latina no século XVI, como o do México e o de Lima, “são meras aplicações do Concílio de Trento ao novo Continente. De resto, Trento foi um Concílio extremamente eurocêntrico: ele não viu a América Latina e o Caribe e não disse uma palavra sequer da trágica realidade da destruição dos povos e culturas ameríndias, também pela ausência naquele Concílio dos bispos do Novo Mundo e de sua voz própria”.
Num segundo momento, temos na América Latina e Caribe uma Igreja ‘romanizada’, que era “um modelo de Igreja extremamente centralizado no clero, na prática dos sacramentos e nas devoções de santos recentes e ‘oficiais’, destacando-se a devoção ao Sagrado Coração de Jesus. O I Concílio Plenário Latino-Americano, realizado em Roma em 1899, representou a aplicação direta do Vaticano I ao Continente”.
Foi com o Concílio Vaticano II “que se deram as condições de emergência de uma Igreja continental em sua originalidade e em sua diferença em relação ao modelo da Igreja europeia”. O Vaticano II significou a "deseuropeização" da Igreja e sua abertura verdadeiramente "católica" (Karl Rahner).
À época da realização de Medellín, “quando os modelos de desenvolvimento e os primeiros Regimes de Segurança Nacional, como o do Brasil, não conseguiam mais esconder sua verdadeira natureza elitista e opressiva, várias Igrejas latino-americanas
estavam questionando sua aliança secular com o poder. Medellín, no caminho aberto
pelo Vaticano II, que rompeu a ‘aliança constantiniana’ (M.-D. Chenu), foi decisivo para dar à Igreja da AL o perfil de uma Igreja livre do poder, próxima dos pobres e companheira do povo em sua caminhada libertadora. No Brasil em particular, com o documento do Regional Centro Oeste da CNBB ‘Marginalização de um povo’ e o documento do Nordeste II ‘Ouvi os gritos do meu povo’, a Igreja marcava, de modo resoluto, sua ruptura com o Poder e ao mesmo tempo sua aproximação com o povo pobre”. A Igreja da América Latina e do Caribe “se caracteriza por ser uma ‘Igreja social’: uma igreja profética, dos pobres e libertadora”.
Medellín “constitui ou foi o verdadeiro ‘divisor de águas’ na história da Igreja do Continente, de tal modo que se pode falar do ‘antes de Medellín’ e do ‘depois de Medellín’. Os bispos que fizeram aquela Conferência estavam conscientes da importância histórica daquele momento. Na ‘Introdução às Conclusões’ proclamam explicitamente uma "nova época da história" e a definem precisamente em termos de ‘libertação’”.
As três marcas que constituem a identidade do modelo eclesiológico de Medellín são: a Opção pelos Pobres, a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
A Opção pelos Pobres (Empobrecidos, Excluídos e Descartados) indica o caminho que devemos seguir para sermos a Igreja de Jesus de Nazaré: uma Igreja a partir da “manjedoura” e de tudo o que ela significa hoje.
A Teologia da Libertação é a leitura - análise e interpretação - à luz da Palavra, que as Comunidades cristãs e seus teólogos fazem da Práxis (Teoria e Prática) de Libertação.
As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) são Comunidades “encarnadas” na vida do povo, são um jeito novo e, ao mesmo tempo, antigo de ser Igreja. São “o primeiro e fundamental núcleo eclesial” ou “a célula inicial da estrutura eclesial” (Medellín, XV, 10), que transformam a Paróquia em “um conjunto pastoral unificador das Comunidades de Base” (ib. 13).
E nós? E as nossas Igrejas? O que esse modelo eclesiológico representa para nós? Em outras “gotas” teremos a oportunidade de voltar sobre o assunto.
(Fonte: Clodovis Boff. A originalidade histórica de Medellín: em http://servicioskoinonia.org/relat/203p.htm 1/8).









Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
E-mail: mpsassatelli@uol.com.br
Goiânia, 21 de março de 2018


terça-feira, 20 de março de 2018

Medellín em gotas: 2ª- Método adotado


A II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho de Medellín adotou e vivenciou o método (caminho) de trabalho “ver-julgar-agir” (“analisar-interpretar-libertar”) e “celebrar”. Para fazer algumas reflexões sobre esse método - a 2ª gota” - sirvo-me ainda das informações do historiador e teólogo José Oscar Beozzo.
Em Medellín, o primeiro passo “foi sempre o estudo atento da realidade tanto econômica, política e social, quanto eclesial do Continente latino americano e caribenho” (ver, analisar).
O segundo passo “consistiu em identificar as interpelações que brotavam da realidade, analisando-as à luz da Palavra de Deus, do Vaticano II, do magistério e da experiência de toda a Igreja” (julgar, interpretar).
O terceiro passo - talvez o mais importante - “foi o de propor pistas de ação pastoral, visando transformar, no sentido do Reino de Deus e da libertação dos pobres, a realidade atravessada por estruturas de pecado e pelo clamor e esperança dos pequenos” (agir, libertar).
Para o estudo da realidade, Medellín contou com as contribuições das 8 Conferências preparatórias, com a assessoria do Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais (CERIS), “encarregado de oferecer aos participantes os dados sócio religiosos do Continente e uma análise da sua significação para a pastoral”.
Nas Comissões, o trabalho em grupos “permitiu cruzar a experiência pessoal dos participantes com os dados apresentados, colocar em comum a visão dos bispos com a prática de leigos e leigas, religiosos e religiosas, peritos e teólogos, párocos e observadores não católicos”.
A dinâmica dos trabalhos “previa que os textos elaborados nas Comissões fossem submetidos ao Plenário para sugestões e modificações. Uma vez incorporadas estas sugestões e modificações, deviam ser confiados a uma Comissão de redação, encarregada de sintetizar e fundir os textos das 16 Comissões num único Documento final. A falta de tempo e também a convicção de que a síntese faria perder muito da riqueza dos textos das Comissões, levou à feliz decisão de transformar nas Conclusões da II Conferência a contribuição de cada uma das Comissões, depois de submetidas a um voto do Plenário”.
Pela decisão tomada, os textos finais da Assembleia de Medellín compreendem: a Mensagem aos Povos da América Latina, a Introdução às Conclusões e as Conclusões propriamente ditas (16 Documentos, agrupados em três blocos: Promoção Humana, Evangelização e Crescimento na Fé e Igreja Visível e suas Estruturas).
A Conferência de Medellín “transformou-se num exemplo singular de recepção colegial do Concílio, pelas Igrejas da América Latina e do Caribe”. É “o intento maior realizado pelas Igrejas de todo um Continente para receber o Concílio Vaticano II. Essa dimensão está expressa já no título escolhido para a II Conferência: ‘A Igreja na atual transformação da América Latina, à luz do Concílio’. Em todo acontecimento eclesial, mormente naqueles, como os Concílios, destinados a marcar em profundidade a vida da Igreja, três elementos devem ser tomados em consideração: o evento em si, os documentos nele aprovados e finalmente a sua recepção”.
O método de trabalho adotado na Conferência possibilitou uma recepção do Concílio Vaticano II fiel, mas crítica e, ao mesmo tempo, criativa.
Medellín “caracteriza-se pela radicalidade com que determinadas orientações de fundo do Vaticano II foram plenamente assumidas. A primeira delas é a pastoralidade, que o Papa São João XXIII quis imprimir ao conjunto da obra conciliar. Nem todos os documentos conciliares alcançaram assimilar, plenamente, este horizonte que se encontra melhor expresso naquela que seria chamada de Constituição Pastoral da Igreja no Mundo de Hoje (Gaudium et Spes - GS)”.
Todos os seus 16 documentos “devem ser lidos à luz da pastoralidade. Eles arrancam da preocupação pastoral dos bispos frente à realidade pungente do Continente e terminam sempre com orientações, de caráter prático, para os trabalhos pastorais. Vários deles trazem impresso, no seu próprio título, a dimensão da pastoralidade”. E mais ainda, “esta dimensão constitui, explicitamente, a terceira parte de todos os 16 documentos”
Outra dimensão conciliar, “plenamente vivida por Medellín foi a colegialidade episcopal, não enquanto debate teórico ou aprimoramento de sua definição, mas como exercício prático inovador. Foi todo um Continente que buscou colegialmente a melhor maneira de aplicar o espírito e as determinações da Concílio à vida de suas Igrejas particulares”.
As Conferências Gerais do Episcopado Latino-americano, a partir de Medellín, “ainda que de maneira penosa e sofrendo crescentes restrições por parte de Roma, conquistaram um espaço de realização da colegialidade episcopal, em profunda comunhão com a Sé de Pedro, mas sem abdicar do pleno exercício de sua própria responsabilidade de pastores desta porção do Povo de Deus, deliberando e propondo às suas Igrejas um magistério próprio e investido de autoridade. Esta forma de exercício da colegialidade ganhou um selo excepcional, ao acolher Paulo VI, o pedido expresso pelos bispos de levar imediatamente para suas Igrejas (antes da versão oficial aprovada em Roma) as Conclusões que acabavam de ser aprovadas, em Medellín”.
A Conferência de Medellín constitui, assim, “um modelo alternativo à maneira de se exercer a colegialidade episcopal consubstanciada nos Sínodos dos Bispos, reduzidos à condição de um órgão consultivo do Romano Pontífice. Medellín preservou, na sua inteireza, ao lado da voz papal, a voz dos bispos latino-americanos e caribenhos; ao lado da autoridade petrina e, em harmonia e comunhão com a mesma, a autoridade própria dos bispos; ao lado do magistério pontifício, o magistério próprio das Igrejas locais”.
No exercício da colegialidade, Medellín inovou também em outro sentido. “Uma das intuições, que permitiu a revolução eclesiológica do Vaticano II foi a de ancorar a noção de Igreja na figura do Povo de Deus, lutando-se tenazmente para que este capítulo precedesse o da constituição hierárquica da Igreja, deixando claro que bispos, padres e o conjunto dos batizados formam parte do mesmo Povo de Deus”.
Em Medellín, pela método adotado, trabalharam lado a lado, nas 16 Comissões e Subcomissões, bispos, peritos, padres, religiosos e religiosas, leigos e leigas, além dos observadores não católicos, participando todos ativamente da elaboração dos textos”.
Podemos dizer que “simbolicamente, a Igreja toda estava ali implicada na busca dos caminhos para melhor servir ao povo latino-americano, no sentido de sua redenção e libertação, ainda que nas votações tomassem parte apenas os bispos e outra pequena fração da assembleia constituída pelos padres diocesanos ou religiosos. De todos os modos, o voto, em Medellín, não se restringiu apenas aos bispos. O que ali aconteceu, aponta na direção de que todos os membros do Povo de Deus tenham voz e voto nos assuntos pastorais, seja nos Conselhos pastorais paroquiais e nos Conselhos pastorais diocesanos, seja na prática já consagrada das Assembleias diocesanas para aprovação das diretrizes e prioridades pastorais de uma Igreja particular. Esta noção alargada de colegialidade, implicando o conjunto do Povo de Deus nas responsabilidades pela vida e missão da Igreja esteve esboçada no método de trabalho adotado em Medellín e, em parte, nas votações ali realizadas”.
Em Medellín, o Concílio Vaticano II “não é tomado, nem como ponto de partida e nem mesmo como ponto de chegada”. O ponto de partida “é sempre a realidade do povo e dos países latino-americanos lida como sinais do tempo, onde a voz de Deus se faz ouvir e se torna interpelação premente que exige a resposta generosa da ação pastoral e social”. Como afirma a Introdução às Conclusões da Conferência, "não basta refletir, obter maior clareza e falar. É preciso agir. Esta não deixou de ser a hora da palavra, mas tornou-se, com dramática urgência, a hora da ação".
O Concílio “não é tampouco o ponto de chegada, mas sim as pistas pastorais que nos convocam para agir. Os documentos conciliares entram bem mais, junto com a Palavra de Deus, como um dos elementos de iluminação da realidade e critério para o discernimento evangélico de qual deva ser o nosso juízo sobre esta realidade e qual o nosso compromisso perante a mesma. Processa-se, assim, uma releitura significativa dos textos conciliares que coloca em relevo dimensões que tiveram inclusive dificuldades em encontrar sua plena expressão no desenrolar-se
do Concílio” (Fonte: José Oscar Beozzo. Medellín: inspiração e raízes. Em: http://www.servicioskoinonia.org/relat/202.htm).
Por fim, podemos afirmar que o método de trabalho adotado na Conferência de Medellín vivenciou e levou para a prática a Teologia dos sinais dos tempos do Concílio Vaticano II, que afirma categoricamente: “Para desempenhar sua missão (ou como diz hoje o Papa Francisco: ser ‘Igreja em saída’) a Igreja, a todo momento (reparem: ‘a todo momento’ e não ‘de vez em quando’), deve (reparem também: ‘deve’ e não ‘pode’) perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal modo que possa responder, de maneira adaptada a cada geração, às interrogações eternas sobre os significados da vida presente e futura e de suas relações mútuas. É necessário, por conseguinte, conhecer e entender (reparem ainda: ‘conhecer e entender’) o mundo no qual vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole frequentemente dramática" (A Igreja no mundo de hoje - GS, 4).



Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano

Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 14 de março de 2018



A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos