A II Conferência Geral do Episcopado
Latino-americano e Caribenho de Medellín adotou e vivenciou o método (caminho)
de trabalho “ver-julgar-agir” (“analisar-interpretar-libertar”) e “celebrar”.
Para fazer algumas reflexões sobre esse método - a 2ª gota” - sirvo-me ainda
das informações do historiador e teólogo José Oscar Beozzo.
Em Medellín, o primeiro passo “foi sempre o estudo
atento da realidade tanto econômica, política e social, quanto eclesial do
Continente latino americano e caribenho” (ver, analisar).
O segundo passo “consistiu em identificar as
interpelações que brotavam da realidade, analisando-as à luz da Palavra de
Deus, do Vaticano II, do magistério e da experiência de toda a Igreja” (julgar,
interpretar).
O terceiro passo - talvez o mais importante - “foi o
de propor pistas de ação pastoral, visando transformar, no sentido do Reino de
Deus e da libertação dos pobres, a realidade atravessada por estruturas de
pecado e pelo clamor e esperança dos pequenos” (agir, libertar).
Para o estudo da realidade, Medellín contou com as
contribuições das 8 Conferências preparatórias, com a assessoria do Centro de
Estatística Religiosa e Investigações Sociais (CERIS), “encarregado de oferecer
aos participantes os dados sócio religiosos do Continente e uma análise da sua
significação para a pastoral”.
Nas Comissões, o trabalho em grupos “permitiu cruzar
a experiência pessoal dos participantes com os dados apresentados, colocar em
comum a visão dos bispos com a prática de leigos e leigas, religiosos e
religiosas, peritos e teólogos, párocos e observadores não católicos”.
A dinâmica dos trabalhos “previa que os textos
elaborados nas Comissões fossem submetidos ao Plenário para sugestões e
modificações. Uma vez incorporadas estas sugestões e modificações, deviam ser
confiados a uma Comissão de redação, encarregada de sintetizar e fundir os
textos das 16 Comissões num único Documento final. A falta de tempo e também a
convicção de que a síntese faria perder muito da riqueza dos textos das
Comissões, levou à feliz decisão de transformar nas Conclusões da II
Conferência a contribuição de cada uma das Comissões, depois de submetidas a um
voto do Plenário”.
Pela decisão tomada, os textos finais da Assembleia
de Medellín compreendem: a Mensagem aos Povos da América Latina, a Introdução
às Conclusões e as Conclusões propriamente ditas (16 Documentos, agrupados em
três blocos: Promoção Humana, Evangelização e Crescimento na Fé e Igreja
Visível e suas Estruturas).
A Conferência de Medellín “transformou-se num
exemplo singular de recepção colegial do Concílio, pelas Igrejas da América Latina
e do Caribe”. É “o intento maior realizado pelas Igrejas de todo um Continente
para receber o Concílio Vaticano II. Essa dimensão está expressa já no título
escolhido para a II Conferência: ‘A Igreja na atual transformação da América
Latina, à luz do Concílio’. Em todo acontecimento eclesial, mormente naqueles,
como os Concílios, destinados a marcar em profundidade a vida da Igreja, três
elementos devem ser tomados em consideração: o evento em si, os documentos nele
aprovados e finalmente a sua recepção”.
O método de trabalho adotado na Conferência
possibilitou uma recepção do Concílio Vaticano II fiel, mas crítica e, ao mesmo
tempo, criativa.
Medellín “caracteriza-se pela radicalidade com que
determinadas orientações de fundo do Vaticano II foram plenamente assumidas. A
primeira delas é a pastoralidade, que o Papa São João XXIII quis imprimir ao conjunto
da obra conciliar. Nem todos os documentos conciliares alcançaram assimilar,
plenamente, este horizonte que se encontra melhor expresso naquela que seria chamada
de Constituição Pastoral da Igreja no Mundo de Hoje (Gaudium et Spes - GS)”.
Todos os seus 16 documentos “devem ser lidos à luz
da pastoralidade. Eles arrancam da preocupação pastoral dos bispos frente à
realidade pungente do Continente e terminam sempre com orientações, de caráter
prático, para os trabalhos pastorais. Vários deles trazem impresso, no seu
próprio título, a dimensão da pastoralidade”. E mais ainda, “esta dimensão
constitui, explicitamente, a terceira parte de todos os 16 documentos”
Outra dimensão conciliar, “plenamente vivida por
Medellín foi a colegialidade episcopal, não enquanto debate teórico ou
aprimoramento de sua definição, mas como exercício prático inovador. Foi todo
um Continente que buscou colegialmente a melhor maneira de aplicar o espírito e
as determinações da Concílio à vida de suas Igrejas particulares”.
As Conferências Gerais do Episcopado
Latino-americano, a partir de Medellín, “ainda que de maneira penosa e sofrendo
crescentes restrições por parte de Roma, conquistaram um espaço de realização
da colegialidade episcopal, em profunda comunhão com a Sé de Pedro, mas sem abdicar
do pleno exercício de sua própria responsabilidade de pastores desta porção do
Povo de Deus, deliberando e propondo às suas Igrejas um magistério próprio e
investido de autoridade. Esta forma de exercício da colegialidade ganhou um
selo excepcional, ao acolher Paulo VI, o pedido expresso pelos bispos de levar
imediatamente para suas Igrejas (antes da versão oficial aprovada em Roma) as Conclusões
que acabavam de ser aprovadas, em Medellín”.
A Conferência de Medellín constitui, assim, “um
modelo alternativo à maneira de se exercer a colegialidade episcopal
consubstanciada nos Sínodos dos Bispos, reduzidos à condição de um órgão
consultivo do Romano Pontífice. Medellín preservou, na sua inteireza, ao lado
da voz papal, a voz dos bispos latino-americanos e caribenhos; ao lado da
autoridade petrina e, em harmonia e comunhão com a mesma, a autoridade própria
dos bispos; ao lado do magistério pontifício, o magistério próprio das Igrejas
locais”.
No exercício da colegialidade, Medellín inovou
também em outro sentido. “Uma das intuições, que permitiu a revolução
eclesiológica do Vaticano II foi a de ancorar a noção de Igreja na figura do Povo
de Deus, lutando-se tenazmente para que este capítulo precedesse o da
constituição hierárquica da Igreja, deixando claro que bispos, padres e o conjunto
dos batizados formam parte do mesmo Povo de Deus”.
Em Medellín, pela método adotado, trabalharam lado a
lado, nas 16 Comissões e Subcomissões, bispos, peritos, padres, religiosos e religiosas,
leigos e leigas, além dos observadores não católicos, participando todos ativamente
da elaboração dos textos”.
Podemos dizer que “simbolicamente, a Igreja toda
estava ali implicada na busca dos caminhos para melhor servir ao povo
latino-americano, no sentido de sua redenção e libertação, ainda que nas votações
tomassem parte apenas os bispos e outra pequena fração da assembleia constituída
pelos padres diocesanos ou religiosos. De todos os modos, o voto, em Medellín,
não se restringiu apenas aos bispos. O que ali aconteceu, aponta na direção de
que todos os membros do Povo de Deus tenham voz e voto nos assuntos pastorais,
seja nos Conselhos pastorais paroquiais e nos Conselhos pastorais diocesanos,
seja na prática já consagrada das Assembleias diocesanas para aprovação das
diretrizes e prioridades pastorais de uma Igreja particular. Esta noção
alargada de colegialidade, implicando o conjunto do Povo de Deus nas
responsabilidades pela vida e missão da Igreja esteve esboçada no método de
trabalho adotado em Medellín e, em parte, nas votações ali realizadas”.
Em Medellín, o Concílio Vaticano II “não é tomado,
nem como ponto de partida e nem mesmo como ponto de chegada”. O ponto de
partida “é sempre a realidade do povo e dos países latino-americanos lida como sinais
do tempo, onde a voz de Deus se faz ouvir e se torna interpelação premente que
exige a resposta generosa da ação pastoral e social”. Como afirma a Introdução
às Conclusões da Conferência, "não basta refletir, obter maior clareza e
falar. É preciso agir. Esta não deixou de ser a hora da palavra, mas tornou-se, com dramática urgência, a hora da ação".
O Concílio “não é tampouco o ponto de chegada, mas
sim as pistas pastorais que nos convocam para agir. Os documentos conciliares
entram bem mais, junto com a Palavra de Deus, como um dos elementos de
iluminação da realidade e critério para o discernimento evangélico de qual deva
ser o nosso juízo sobre esta realidade e qual o nosso compromisso perante a
mesma. Processa-se, assim, uma releitura significativa dos textos conciliares
que coloca em relevo dimensões que tiveram inclusive dificuldades em encontrar
sua plena expressão no desenrolar-se
do
Concílio” (Fonte: José Oscar Beozzo. Medellín: inspiração e raízes. Em: http://www.servicioskoinonia.org/relat/202.htm).
Por fim, podemos afirmar que o método de trabalho
adotado na Conferência de Medellín vivenciou e levou para a prática a Teologia
dos sinais dos tempos do Concílio Vaticano II, que afirma categoricamente: “Para
desempenhar sua missão (ou como diz hoje o Papa Francisco: ser ‘Igreja em
saída’) a Igreja, a todo momento (reparem: ‘a todo momento’ e não ‘de vez em
quando’), deve (reparem também: ‘deve’ e não ‘pode’) perscrutar os sinais dos
tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal modo que possa responder, de
maneira adaptada a cada geração, às interrogações eternas sobre os significados
da vida presente e futura e de suas relações mútuas. É necessário, por
conseguinte, conhecer e entender (reparem ainda: ‘conhecer e entender’) o mundo
no qual vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole frequentemente dramática"
(A Igreja no mundo de hoje - GS, 4).
Fr. Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG
Goiânia, 14 de
março de 2018
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