quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Jesus subversivo

 

entre o nosso povo(Lc 23,2) 



Companheiros e companheiras, irmãos e irmãs de caminhada – depois de ouvir o vídeo: https://www.youtube.com › watch (toda a Igreja convocada por bispos e padres) – em consciência sinto a necessidade de fazer, com toda firmeza, uma denúncia: o vídeo citado é baseado na mentira e na hipocrisia do começo até o fim; trata-se de um vídeo repugnante.

Dizem os autores do vídeo: “somos mais de 8.000 padres conservadores”. Que pena!

O vídeo “pede voto para o presidente Jair Bolsonaro (PL) e prega contra ‘o candidato que defende o comunismo ateu’, em suposta alusão ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que não é nem comunista e nem ateu”.

Irmãos e irmãs, lembremos a acusação que os fariseus e mestres da Lei fizeram contra Jesus quando foi preso e condenado à morte na cruz: Achamos este homem fazendo subversão entre o nosso povo (Lc. 23,2).

Os “fariseus e mestre da Lei“ de hoje - disfarçados até de “padres e bispos” - fazem a mesma acusação que fizeram a Jesus contra todos aqueles e aquelas que - mesmo com seus limites humanos e com seus erros - se colocam de corpo e alma: 

  • ao lado e do lado dos “pequeninos” do Evangelho: os pobres, marginalizados, oprimidos, excluídos e descartados do nosso “sistema econômico iníquo” (Documento de Aparecida, 385), perverso, desumano, antiético e anticristão;
  • contra os poderosos e opressores do povo, que são os esteios desse modelo econômico e dessa nossa sociedade baseada na violação institucionalizada dos Direitos Humanos, na injustiça estrutural e na desigualdade gritante, que mata milhões de pobres pela fome e a falta de condições mínimas para uma vida humana digna;
  • e contra os “fariseus e mestres da Lei” de hoje, que - mentindo descaradamente - falam o nome de Deus em vão, deturpam o Evangelho (a Boa Notícia de Jesus de Nazaré) e o usam para naturalizar e legitimar a iniquidade e perversidade de nossa sociedade capitalista neoliberal.  

Meditemos: Hoje, no mundo temos 828 milhões de pessoas passando fome; destas, mais de 33 milhões somente no Brasil. As 8 pessoas mais ricas do mundo possuem tantos bens quanto a metade da população mais pobre (3,6 bilhões de pessoas). As 5 pessoas mais ricas do Brasil têm um patrimônio igual à renda da metade da população mais pobre (106,3 milhões de pessoas). Somente na grande Goiânia - GO, o número de pessoas em situação de pobreza extrema é atualmente de mais de 500 mil pessoas. É esse o pecado social (estrutural) institucionalizado e legalizado que os padres conservadores do vídeo defendem e querem hipocritamente legitimar em nome do Evangelho!

Ouçamos as palavras do papa Francisco aos Movimentos Populares e à Igreja, que continuam plenamente atuais.

Dirigindo-se aos Movimentos Populares, Papa Francisco afirma: “Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas mãos de vocês, na capacidade de vocês se organizarem e promoverem alternativas criativas na busca diária dos ‘3 T’ (trabalho, teto, terra), e também na participação de vocês como protagonistas nos grandes processos de mudança, regionais, nacionais e mundiais”.

Dirigindo-se, pois, à Igreja, Papa Francisco constata: “Soube que são muitos na Igreja aqueles e aquelas que se sentem mais próximos dos Movimentos Populares. Muito me alegro por isso! Ver a Igreja com as portas abertas a todos vocês, que se envolve, acompanha e consegue sistematizar em cada Diocese, em cada Comissão ‘Justiça e Paz’, uma colaboração real, permanente e comprometida com os Movimentos Populares”.

E convida: “Convido-vos a todos, bispos, sacerdotes e leigos (cristãos e cristãs em geral), juntamente com as organizações sociais das periferias urbanas e rurais, a aprofundar este encontro” (2º Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Santa Cruz de la Sierra - Bolívia, 09/07/15).

Será que a Igreja está atendendo ao convite do papa? Em sua grande maioria, infelizmente não!

Por fim, podemos afirmar com certeza que a proposta de vida de Jesus de Nazaré é a mais revolucionária que existe (muito mais que todas as propostas de vida socialistas e comunistas que tivemos até agora). Na proposta de Jesus, todos e todas somos chamados e chamadas a viver como irmãos e irmãs, partilhando tudo o que somos e temos: é o “comunismo” ou “comunitarismo” radical.  

Sejamos seguidores e seguidoras de Jesus de Nazaré!

No segundo turno, votemos 13, o candidato que - hoje - mais se aproxima do Projeto de Vida de Jesus!


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 05 de outubro de 2022

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Amem seus inimigos!

 

“Vocês ouviram o que foi dito: ‘Ame seu próximo e odeie seu inimigo’. Eu, porém, lhes digo: Amem seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem, para que vocês sejam filhos/as de seu Pai que está no céu. Porque ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e injustos” (Mt 5,43-45).

O amor que Jesus de Nazaré nos pede é um amor sem limites, é um amor que não exclui ninguém, é um amor radical.

Ora, se Jesus nos pede para amar os nossos inimigos, quer dizer que existem inimigos e que nós temos inimigos. Enquanto seguidores e seguidoras de Jesus, perguntemo-nos: quais são os nossos inimigos? A resposta é clara: são todos aqueles/as que com sua maneira de agir e pensar sustentam e reproduzem um projeto de sociedade e de mundo (a Irmã Mãe Terra Nossa Casa Comum) estruturalmente iníquo, perverso, injusto, desumano, antiético e anticristão: o Anti-Reino de Deus.

No meio político - sobretudo político-partidário - costuma-se dizer: “os políticos que pensam diferentemente de nós devem ser tratados como adversários e não como inimigos”. Não é bem assim! Essa afirmação precisa ser esclarecida. Vejamos!

Como seres humanos temos fundamentalmente dois projetos de vida para nós mesmos e para o mundo: um projeto humano natural (e natural humano) que humaniza naturalizando (e naturaliza humanizando), e um projeto desumano antinatural (e antinatural desumano) que desumaniza desnaturalizando (e desnaturaliza desumanizando). É o projeto ético e o projeto antiético, que - à luz da fé - é também projeto cristão ou projeto anticristão: o Reino de Deus ou o Anti-Reino de Deus.

Os/as que nos comprometemos com o primeiro projeto somos objetivamente inimigos/as dos/as que se comprometem com o segundo projeto. Entre nós podemos ter diferenças e divergências quanto aos passos a serem dados e aos meios a serem utilizados para fazer acontecer o projeto na história do ser humano e do mundo. Porém, por termos o mesmo projeto, somos adversários e não inimigos.

Concretamente, os/as que nos comprometemos com o Projeto Social (sócio-econômico-político-ecológico-cultural-religioso) Popular (projeto fraterno, comunitário e socialista) somos objetivamente inimigos/as dos/as que se comprometem com o Projeto Capitalista Neoliberal. Não há possibilidade de aliança (que é comunhão de projetos), mas somente de acordos pontuais em casos muito especiais e, às vezes, por motivos opostos.

Exemplificando, entre os/as que estão comprometidos/as com Projeto. Capitalista Neoliberal e que, portanto, são nossos inimigos e inimigas - temos:

  • Os que se apresentam como pessoas de bem e - com a maior frieza e indiferença - defendem e apoiam o trabalho escravo doméstico, rural e empresarial.
  • Os que - adoradores do deus dinheiro (o deus capital) - de maneira cruel e perversa, exploram os trabalhadores/as com salários miseráveis. No mundo - conforme foi amplamente divulgado - temos atualmente 828 milhões de pessoas passando fome; destas, mais de 33 milhões somente no Brasil. As 8 pessoas mais ricas do mundo possuem tantos bens quanto a metade da população mais pobre (3,6 bilhões de pessoas). As 5 pessoas mais ricas do Brasil têm um patrimônio igual à renda da metade da população mais pobre. Na grande Goiânia, o número de pessoas em situação de pobreza extrema é atualmente de mais de 500 mil pessoas. Quanta desigualdade, injustiça, fome, miséria, falta de moradia, de trabalho e de condições de vida digna para a maioria do povo! É o pecado social ou estrutural institucionalizado e legalizado!
  • Os magistrados - juízes e desembargadores - que, com a maior insensibilidade e o maior descaramento, aumentam seus próprios salários, recebendo - muitos deles - mais de R$ 100.000 por mês. Como podemos confiar na justiça desses magistrados?

Todas essas pessoas e outras não são somente nossos adversários, mas nossos inimigos. Apesar disso, como seres humanos e, sobretudo, como cristãos e cristãs (radicalmente seres humanos) devemos amá-las, orar a Deus por elas e pedir por sua conversão (como aconteceu com Zaqueu no encontro com Jesus). Lembremos: a única maneira de amar os inimigos -  opressores do povo - é ser contra o seu projeto de vida.

Por fim, nas próximas eleições, antes de votar perguntemo-nos: dentro daquilo que “as condições objetivas nos permitem hoje”, quais são os partidos e os candidatos/as realmente comprometidos/as com o Projeto Popular? Votemos nesses partidos e nesses candidatos/as!



 


https://www.ecodebate.com.br/2013/05/03/ba- empresa-de- alimentos-e-processada-por-trabalho-escravo/


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 02 de setembro de 2022


domingo, 28 de agosto de 2022

A Missão Goiânia visita as Ocupações

 

Segundo dados divulgados pela Campanha Despejo Zero em maio deste ano, Goiás possui 2.756 famílias ameaçadas de despejo e outras 1.623 despejadas, além de 976 em Ocupações, com despejos suspensos temporariamente: até 31 de outubro deste ano.

Para muitas pessoas e famílias de nossa sociedade capitalista - profundamente injusta e de uma desigualdade estrutural gritante - as Ocupações são o único caminho para conquistar legitimamente (sublinho: legitimamente) o Direito à moradia.

De 17 a 19 de agosto, representantes do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), da Campanha Despejo Zero, da Plataforma Dhesca e do Fórum Nacional de Reforma Urbana em Goiás realizaram a Missão Goiânia, visitando famílias das Ocupações ameaçadas de despejo e pessoas em Situação de Rua na capital e na região metropolitana.

As Ocupações visitadas foram: do Povo Trabalhador (Teresópolis de Goiás), Solar Ville, Nova Canaã e Alfredo Nasser (Goiânia), Beira da Mata e Alto da Boa Vista (Aparecida de Goiânia).   

Os membros da Missão Goiânia participaram também da Reunião ordinária do Comitê interestadual de Monitoramento de Políticas Públicas para a População em Situação de Rua (CIAMP); de Roda de Conversa com a mesma População; e ainda de Roda de Conversa com famílias do Assentamento Popular Dom Tomás de Formosa - GO; de Reunião com a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e com a Secretaria Estadual de Administração.

Por fim, no dia 19 (sexta-feira) participaram da Audiência Pública na Câmara Municipal de Goiânia, presidida pelo vereador Mauro Rubem (PT), da Comissão de Saúde e Assistência Social da Casa. Participou também do debate, a vereadora Aava Santiago (PSDB), presidenta da Comissão de Direitos Humanos da mesma Casa.

Acompanhamos os membros da Missão Goiânia - em suas Visitas, Reuniões, Rodas de Conversa e Audiência Pública - representantes do:

  • Rodas de Conversa e Audiência Pública - representantes do:
  • Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno,
  • Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD),
  • Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST),
  • Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM),
  • Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR),
  • Programa de Extensão (Educação, Saúde e Direito à Cidade) do Instituto Federal Goiano (IFG), e da:
  • Universidade Estadual de Goiás (UEG) e
  • Comissão de Saúde e Assistência Social da Câmara Municipal de Goiânia,

Getúlio Vargas do CNDH informou que o Relatório das visitas, em Goiânia, será concluído em dois meses. Fez algumas recomendações e destacou: “Em nossa missão, aqui, o que vimos é que (além do direito à Moradia) são muitos os Direitos Humanos violados”. Segundo ele, as famílias que vivem em Ocupações ou em Situação de Rua, em Goiânia e na região metropolitana, não têm água; não conseguem atendimento em Unidades de Saúde, nem vagas para as crianças em Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs) e Escolas, porque não podem “apresentar um CEP”.

(Cf. https://www.jornalonlinenossavoz.com/2022/08/em-audienciapublica-camara-discute.html; https://ohoje.com/noticia/politica/n/1430632/t/camara-discute-violacao-de-direitos-de-pessoas-em-situacao-de-rua/)

A Resolução Nº 17 do CNDH, de 06 de agosto de 2021, logo no início - em destaque - “reconhece como conduta contrária aos Direitos Humanos a realização de despejos, remoções e deslocamentos sem ordem judicial e dispõe medidas preventivas e soluções garantidoras de Direitos Humanos”.

Permito-me uma observação crítica - que considero de fundamental importância - ao texto da Resolução. Os despejos de pessoas e famílias de suas Ocupações são uma “conduta contrária aos Direitos Humanos” não só “sem ordem judicial”, mas também “com ordem judicial”.

A questão dos despejos, antes de ser jurídica, é ética (humana). Inclusive - por se tratar de pessoas - a própria palavra “despejo” é ofensiva e seu uso é uma “conduta contrária aos Direitos Humanos”.

Do ponto de vista ético, só existem três razões para “remover com dignidade” (não “despejar”) pessoas humanas de uma Ocupação; se a área for:

  • de risco,
  • de preservação ambiental,
  • e de utilidade pública.

Mesmo nestes três casos, a remoção só pode ser realizada depois que estiverem prontas outras moradias - provisórias ou definitivas - para serem ocupadas.

Todo despejo - mesmo com ordem judicial - é injusto e antiético. Despejo nunca mais!


Visita à Ocupação Beira da Mata em Aparecida de Goiânia -18/08/22
https://www.maisgoias.com.br/



                                                                             Foto: Divulgação/Câmara Municipal - 19/08/22  




Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 27 de agosto de 2022


A Ética hoje

 

Seguem, a partir de agora, algumas reflexões teológico-pastorais sobre a Ética na perspectiva libertadora.

Neste primeiro artigo - de caráter introdutório - trato da questão da Ética hoje e, no final, apresento as linhas fundamentais da proposta de Ética da Libertação, que pretendo desenvolver posteriormente.

A questão da Ética, na sociedade e cultura contemporânea, voltou a ser central. Desde as décadas de 1980 e 1990 fala-se:

- da "necessidade cultural de Ética" (Viano, C. A. (Org.). Teorie etiche contemporanee. Bollati Boringhieri, Torino, 1990, p. 11);

- do "retorno à Ética" e das "tendências e ambiguidades de tal fenômeno" (Angelini, G. Ritorno all'Etica? Tendenze e ambiguità di un fenomeno recente, em "Il Regno" 14 (1990) 438-449);

- da "emergência da Ética" (VV. AA. L’ Etica nel Pensiero contempoaneo. Mucchi, Modena, 1989, p.7);

- do “renascimento da Ética", da "urgência da reflexão ética" e da "atenção com a qual são considerados e discutidos os problemas éticos", que "envolvem a vida e a qualidade da vida das gerações presentes e futuras" (Da Re, A. Il ritorno dell'Etica nel Pensiero contemporaneo. Gregoriana, Padova, 1988, p. 9-17);

- da "necessidade de um projeto de Ética mundial" e de "uma Moral ecumênica em vista da sobrevivência humana” (KÜNG, H. Projeto de Ética Mundial. Uma Moral ecumênica em vista da sobrevivência humana. Paulinas, São Paulo, 1993).

Pergunta-se, pois: “como pensar a Ética a partir das contradições de um mundo que produz uma ciência e seus intelectuais dedicados a pesquisar, no mesmo espaço e ao mesmo tempo, princípios de vida e armas de morte?” (VV. AA. Ética. Companhia das Letras, São Paulo, 1992).

Pergunta-se, pois: “como pensar a Ética a partir das contradições de um mundo que produz uma ciência e seus intelectuais dedicados a pesquisar, no mesmo espaço e ao mesmo tempo, princípios de vida e armas de morte?” (VV. AA. Ética. Companhia das Letras, São Paulo, 1992).

Para o Ser humano de hoje, "trata-se de compreender o processo epocal que tornou incertas a solidez e a estabilidade na transmissão dos valores e das normas achadas evidentes, pelo qual perderam eficácia os habituais critérios de legitimidade, os princípios reconhecidos para estabelecer aquilo que é bem e aquilo que é mal”.

As mudanças produzidas por essa transformação - que são muitas - podem ser descritas como:        

- “passagem de uma sociedade tradicional, que prescrevia comportamentos socialmente apreciados e aceitos sem discutir sua legitimidade, a uma sociedade pós-tradicional, na qual temos sistemas morais baseados não em prescrições sociais, mas em preferências individuais”; ou como:

- “passagem de uma sociedade de diferenciação estratificada, na qual a pertença a um estrato comportava a aceitação de uma moral no âmbito de uma mais geral subordinação desta última à religião, a uma diferenciação funcional, que reconhece ao ser humano maiores liberdades em relação ao seu ambiente social, inclusive a liberdade de comportar-se de maneira não racional e não moral" (L’Etica nel pensiero contemporâneo, op. cit., p. 7).

É nesta realidade complexa e contraditória que surge a Ética da Libertação. Ela elabora - e emite - juízos de valor desde o ponto de vista dos Pobres (a partir dos Pobres, na ótica dos Pobres): empobrecidos, marginalizados, oprimidos, excluídos e descartados. É este, aliás, o ponto de vista de Jesus de Nazaré e do Evangelho: a Boa Notícia do Reino de Deus.  

Propriamente falando, a Ética da Libertação não é um dos ramos da Filosofia e/ou da Teologia da Libertação, mas é o tema que a perpassa. Por ser “intrinsecamente moral”, o ético é uma dimensão “constitutiva” ou “consubstancial” de toda a Filosofia e/ou Teologia da Libertação.

Mesmo, porém, tendo como fonte de inspiração uma realidade particular, seu valor é universal, porque a Ética da Libertação é Ética da Vida e da Vida em plenitude para todos os seres humanos e para a Irmã Mãe Terra Nossa Casa Comum.  

A proposta de Ética da Libertação - que irei aprofundar nas próximas reflexões teológico-pastorais - é vivida e tematizada em torno de três eixos: o ser humano, o ser humano como ser práxico (prático-teórico e teórico-prático) e o ser humano práxico como ser ético.

Portanto - além deste que situa historicamente a Ética da Libertação - estão previstas três séries de artigos.


Paulo Meneses e Outros
A Hora da Ética Libertadora, 1985
Traça Livraria e Sebo





Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 26 de agosto de 2022


O artigo foi publicado originalmente em:
https://portaldascebs.org.br/a-etica-hoje/


terça-feira, 2 de agosto de 2022

A questão da “obediência” na Igreja

 


Termino - ao menos por enquanto - a terceira e última série de reflexões teológico-pastorais sobre a Igreja na perspectiva libertadora, abordando a questão da “obediência” na Igreja.

Jesus, como ser humano, “foi obediente até a morte e morte de cruz” (Fl 2,8) por estar em plena e total “comunhão” com o Pai. “Pai, se queres, afasta de mim este cálice. Contudo, não se faça a minha vontade, mas a tua” (Lc 22,42). Jesus, “embora sendo Filho, sofrendo aprendeu o que é obedecer. Levado à perfeição, tornou-se a fonte da salvação eterna para todos/as os/as que lhe obedecem” (Hb 5,8-9).

Com sua vida, Jesus nos mostra que ser obedientes significa estar:

  • em plena comunhão com Deus e
  • totalmente disponíveis para realizar o seu Projeto no mundo, que é o Reino

Todos e todas nós cristãos e cristãs - cada um e cada uma de acordo com sua vocação particular - somos chamados e chamadas a viver, teórica e praticamente, essa obediência.

Aqueles e aquelas que na Igreja e, sobretudo, na “Vida Cristã de Particular Consagração” (Vida Religiosa Consagrada) são chamados e chamadas a exercer o ministério da Coordenação nos diversos níveis devem ser mais obedientes do que os outros e as outras.

Por objeção de consciência - às vezes - para sermos obedientes, temos que praticar a “desobediência civil” e/ou “religiosa”, como fez o próprio Jesus.

Na Igreja - que é (ou, deveria ser) uma Comunidade de irmãos e irmãs “em comunhão”, iguais em dignidade e valor - as relações entre as pessoas e entre os diferentes ministérios (serviços) devem ser relações de “comunhão”: “comunhão eclesial”.

Ora, nas relações de “comunhão” não há espaço para relações de “dependência”, de “submissão”, de “subordinação”, de “subserviência”, de “dominação”, de “inferioridade” ou “superioridade”. Todos e todas - na diversidade dos carismas (dons) e ministérios (serviços) - são sujeitos eclesiais conscientes e responsáveis de suas opções, atitudes e atos. “A cada um/uma é concedida a manifestação do Espírito para o bem comum” (1Cor 12,7).  

Na Igreja, as palavras “obediência”, “autoridade”, “poder”, não têm (ou, não deveriam ter) o mesmo sentido que têm na sociedade, sobretudo na sociedade capitalista neoliberal de hoje. "Vocês sabem: aqueles que se dizem governadores das nações têm poder sobre elas, e os seus dirigentes têm autoridade sobre elas. Mas, entre vocês não deve ser assim: quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servidor de vocês, e quem de vocês quiser ser o primeiro, deve tornar-se o servidor de todos" (Mc 10,42-44).

Há tempo, um conhecido jurista escreveu com certa ironia: “por incrível que pareça, a palavra ‘superior’ ainda é usada somente no meio militar e no meio religioso”. É lamentável!

Ninguém é “superior” a ninguém e a última razão do agir humano é sempre a consciência da pessoa, que deve ser respeitada.

 

Infelizmente, na Igreja e - de maneira especial - na “Vida Cristã de Particular Consagração” (Vida Religiosa Consagrada), a “obediência” tornou-se às vezes (felizmente, não sempre) uma questão meramente jurídica e formal, que violenta a consciência das pessoas e não tem nada a ver com o Evangelho.

Para exemplificar, cito dois casos. Primeiro: “Irmã Maria” (nome fictício) é transferida pela “Superiora” Provincial da Casa onde mora atualmente no Brasil para outra, em outro país. Depois de muita reflexão e oração, a Irmã diz à “Superiora” que em consciência, pela idade avançada e outras razões pessoais, não está em condições psicológicas de aceitar a transferência. Mesmo assim, em nome da obediência, a “Superiora” mantém a transferência e a Irmã, seguindo sua consciência, decide deixar a Congregação e continuar com o seu compromisso de doação exclusiva a serviço do Reino de forma particular.

Segundo caso: Frei Pedro (nome fictício) é transferido pelo “Superior” Provincial da Casa Religiosa onde mora atualmente para outra, em outro lugar, para assumir uma nova responsabilidade pastoral. O Frei está passando por um período de graves problemas pessoais e a única coisa da qual precisa no momento é toda atenção, compreensão e carinho dos irmãos. Mesmo assim, em nome da “obediência”, o “Superior” mantém a transferência, sem medir as possíveis consequências de seu ato.

Essa obediência meramente “jurídica e formal” - que não respeita a consciência das pessoas, a última razão do agir humano - é uma violação dos Direitos Humanos. Meditemos!

Observação: Com o próximo artigo, começarei algumas reflexões teológico-pastorais sobre a Ética, sempre na perspectiva libertadora. Serão - prevejo eu - três séries de reflexões: sobre: o Ser humano, o Ser humano práxico (prático-teórico e teórico-prático) e o Ser humano ético.

Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 26 de julho de 2022





quarta-feira, 13 de julho de 2022

A Rua unida jamais será vencida!

 

A Equipe de Coordenação do Movimento Nacional da População em Situação de Rua de Goiás (MNPR-GO), animada por Eduardo de Matos, ex-morador de Rua - com o apoio de Movimentos Sociais Populares, Organizações de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos e da Irmã Mãe Terra Nossa Casa Comum, e também do Ministério Público de Goiás - promoveu o “Festival da Cultura e Inclusão da População em Situação de Rua” (6 e 7 deste mês de julho: Rua do Lazer - Centro - Goiânia - GO) e o VI Seminário Povos de Rua: resistência, arte, liberdade e cuidados - a construção da cidadania com os Povos de Rua (dia 8 deste mesmo mês: Auditório do MPGO - Goiânia - GO).

No Seminário foram debatidos e aprofundados diversos temas, como: o Direito de ser cuidado nos espaços de Rua; os Direitos dos usuários de drogas que vivem na Rua; População em Situação de Rua, Movimentos Sociais Populares, Direitos Humanos, Estado e Políticas Públicas; Garantindo Cuidados e Defendendo a Vida nos Espaços da Cidade.

O Seminário - por sinal muito bem organizado - renovou a esperança dos nossos Irmãos e Irmãs que moram em Situação de Rua presentes e de todos nós - seus Apoiadores e Apoiadoras - que também participamos.

A questão dos População em Situação de Rua - como nos lembrou Pe. Júlio Lancelotti (da Pastoral de Rua de São Paulo - SP) em sua comunicação virtual - não é meramente pessoal, mas sobretudo estrutural. Vivemos numa sociedade estruturalmente injusta e desigual. O sistema econômico capitalista neoliberal é iniquo: não só explora, mas descarta os trabalhadores e trabalhadoras, sobretudo os mais pobres, como se fossem lixo.

Segundo Relatório da ONU, lançado no dia 6 deste mês de julho, “o total de pessoas afetadas pela fome em todo o mundo aumentou em 150 milhões desde o início da pandemia da Covid-19, alcançando 828 milhões, em 2021” (O Popular, 07/07/22, p. 9). No Brasil, temos atualmente 33,1 milhões de pessoas passando fome. Que perversidade humana!

Precisamos - unidos/as e organizados/as - lutar para mudar esse sistema, construindo uma nova sociedade, um Mundo Novo de Irmãos e Irmãs, Filhos e Filhas do mesmo Pai-Mãe que é Deus.

“Hoje - diz o papa Francisco - ao fenômeno da exploração e da opressão, soma-se uma nova dimensão, um matiz gráfico e duro da injustiça social; os que não podem ser integrados, os excluídos são resíduos, ‘sobrantes’. Essa é a cultura do descarte (...). Isso acontece quando, no centro de um sistema econômico, está o deus dinheiro e não o ser humano, a pessoa humana. Sim, no centro de todo sistema social ou econômico, tem que estar a pessoa, imagem de Deus, criada para dar o nome às coisas do universo. Quando a pessoa é deslocada e vem o deus dinheiro, acontece essa inversão de valores” (1º Encontro Mundial de Movimentos Populares - EMMP, 27-29/10/14, Roma, Itália).

E ainda: “Pergunto-me se somos capazes de reconhecer que estas realidades destrutivas correspondem a um sistema que se tornou global. Reconhecemos que este sistema impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social nem na destruição da natureza? Se é assim - insisto - digamo-lo sem medo: queremos uma mudança, uma mudança real, uma mudança de estruturas. Este sistema é insuportável: não o suportam os camponeses, não o suportam os trabalhadores, não o suportam as Comunidades, não o suportam os Povos.  E nem sequer o suporta a Terra, a Irmã Mãe Terra, como dizia São Francisco” (2º Encontro Mundial de Movimentos Populares - EMMP, 07-09/07/15, Santa Cruz de la Sierra, Bolívia).

Durante o Seminário, num intervalo, os Moradores em Situação de Rua e seus Apoiadores/as, fizeram uma fila com as mãos nos ombros e - parafraseando o canto-refrão “o Povo unido jamais será vencido” -cantaram com toda força “a Rua unida jamais será vencida”. O canto-refrão nos emocionou a todos e todas. É verdade! O Povo, em primeiro lugar, é a “Rua”, “o Povo na Rua e da Rua”!

Esse canto-refrão “a Rua unida jamais será vencida” suscitou em mim - como um forte apelo - o desejo de dar uma sugestão: vamos promover anualmente - com esse canto-refrão como lema - uma grande mobilização no Brasil inteiro (em todos os Estados), coordenada pelo Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), com o apoio e a solidariedade dos Movimentos Sociais Populares, sobretudo dos Movimentos pelo Direito à Moradia - que defendem as Ocupações - como  o Movimento de Trabalhadores/as por Direitos - MTD, Movimento de Trabalhadores/as Sem Teto - MTST, Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas - MLB.

Vocês - Irmãos e Irmãs, Moradores e Moradoras em Situação de Rua que, apesar de todas as adversidades, ainda acreditam na Vida e lutam para mudar a realidade e exigir seus Direitos - são para nós verdadeiros heróis e heroínas. Estamos com vocês! Unidos e unidas na luta! A vitória é nossa!










Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 12 de julho de 2022


sábado, 2 de julho de 2022

A questão da “ideologia” na Igreja (Parte 2)

 

Vimos (na Parte 1) que na história - no tempo e no espaço - todo posicionamento prático e/ou teórico do ser humano é ideológico. O que realmente importa é que seja um posicionamento ideológico que liberte e promova a vida.

Como nos lembra Leonardo Boff, ”todo ponto de vista é a vista de um ponto”. Ora, o ponto de vista da Igreja e de todo cristão ou cristã deve ser - ou deveria ser -  a vista do ponto de Jesus de Nazaré, que é o ponto dos Pobres.

Portanto, para a Igreja e todos os que somos cristãos ou cristãs, ver do ponto de vista de Jesus de Nazaré - seguindo o seu caminho desde a manjedoura até sua morte na cruz e sua Ressurreição - é fazer a Opção pelos Pobres. Lamentavelmente, à expressão “Opção pelos Pobres”, a Igreja acrescentou (com maior frequência nos Documentos mais recentes) a palavra “preferencial” para contentar aqueles (sobretudo padres e bispos) que não entenderam o que essa Opção significa.

Conheço padres e bispos que - quando convidados para participar de Encontros de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) ou de Pastoral da Juventude do Meio Popular (PJMP), falam de Comunidades Eclesiais (destacando - sobretudo hoje - a palavra “Missionárias”) ou de Pastoral da Juventude, mas nunca pronunciam (parece que há um bloqueio psicológico) as palavras “de Base” ou “do Meio Popular”: palavras perigosas por serem “ideológicas” (leiam: do lado dos Pobres).

Lembro a essa Igreja (para a qual só é “ideológico” o que está do lado dos Pobres) que uma Comunidade Eclesial é Missionária (Comunidade “em saída”) somente se for “de Base”, ou seja, encarnada na vida do Povo, na vida dos Pobres como fez Jesus de Nazaré, que nasceu na manjedoura de um estábulo e - a partir da manjedoura - anunciou a Boa Notícia do Reino de Deus a todos e todas.

Por outro lado (reparem!), essa mesma Igreja usa - de boca cheia e sem nenhum receio de ser “ideológica” - as palavras “Pastoral do empreendedor” (“empreendedor” não é pobre, portanto, não é ideológico), “Grupo de empresários católicos” (“empresários católicos” não são pobres, portanto, não são ideológicos), “Grupo de advogados católicos” (“advogados católicos” - sobretudo se forem “juízes” ou “desembargadores” - não são pobres, portanto, não são ideológicos), e assim por diante. Para essa Igreja, o “perigo” de conotação ideológica só existe em relação aos Pobres, ou seja, para quem fica do lado dos Pobres.

Por fim, pergunto: qual foi o posicionamento “ideológico” de Jesus de Nazaré? Ele ficou do lado dos poderosos ou do lado dos pobres? A resposta encontra-se no motivo que foi apresentado para justificar a sua “criminalização” pelos “desembargadores” da época, com as “bênçãos” do Sinédrio. “Achamos este homem (Jesus) fazendo subversão entre o nosso povo” (Lc 23,2).

Hoje - lamento isso - no prédio do Tribunal de Justiça de Goiás tem até Capela Católica com Sacrário e capelão: uma prática clara e indiscutivelmente inconstitucional. A razão da Capela deve ser para que os “desembargadores católicos” possam rezar diante do Santíssimo Sacramento e (quem sabe!) “assistir” à Missa do capelão recebendo a comunhão, antes de “criminalizar” trabalhadores e trabalhadoras “sem terra” e “sem teto” - ou seja, o próprio Jesus na pessoa dos pobres que lutam pelos direitos sagrados à terra de trabalho e à terra de moradia - assinando “ordens de despejo” (legais, mas injustas, desumanas, antiéticas e anticristãs) de suas Ocupações. Que descaramento! Quanta hipocrisia!

Os cristãos e cristãs perguntemo-nos: que Igreja queremos ser? A dos fariseus hipócritas ou a de Jesus de Nazaré? Que o Espírito Santo nos ilumine e nos transforme em verdadeiros profetas e profetisas da Boa Notícia do Reino de Deus no mundo de hoje. Assim seja!


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                                 Águas e Profecias: Luzes do Meio Popular gerando Vidas



                                                      CEB ao redor da Palavra, em:   https://pjmp.org/teologia-das-cebs


Marcos Sassatelli, Frade dominicano
Doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP)
Professor aposentado de Filosofia da UFG

Goiânia, 26 de junho de 2022




O artigo foi publicado originalmente em: 
https://portaldascebs.org.br/a-questao-da-ideologia-na-igreja-parte-2/

A palavra do Frei Marcos: uma palavra crítica que - a partir de fatos concretos e na escuta dos sinais dos tempos aponta caminhos novos